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15.1.10

Reflexões sobre a linguagem, parte 1

Nosso maior dom

Há quem se pergunte qual o maior dom do ser humano: os sentidos, a visão que nos possibilita nos maravilhar com o mundo, a audição que nos permite ouvir a sinfonia das esferas? Talvez não os sentidos, mas o amor que nos une a todos os seres, a razão que nos permite compreender o elegante mecanismo da natureza? Bem, pergunte a um antropólogo, e ele lhe dirá sem pestanejar: a capacidade de interpretar símbolos, o que nos possibilita o uso da linguagem.

A capacidade de interpretar a realidade é o que nos permite compreender aos quantas de luz que os olhos nos enviam, ou as ondas sonoras que nos chegam pelos ouvidos – porém, ao contrário das espécies irracionais, nosso cérebro também é capaz de desenvolver linguagens a partir desses dados enviados, e associar conceitos físicos e, principalmente, metafísicos, aos símbolos. Sem essa capacidade dificilmente nossa arte, religião e ciência teriam se desenvolvido, e estaríamos até hoje caçando animais com machados de lasca de pedra, todos invariavelmente feitos da mesma forma mecânica, pois a criatividade também praticamente inexistiria.

Entretanto, ainda hoje sabemos que nossa linguagem nem sempre é apurada o suficiente para descrever certos conceitos. A tradição religiosa oriental é conhecida por ser afoita a nomear as coisas por palavras, numa tentativa de reafirmar a beleza de se nomear livremente o mundo. Dessa tradição vem a célebre frase: “Cavalo branco não é cavalo”, de Gong Sunlong, um retórico chinês que viveu entre 320 e 250 a.C. – Com a frase, ele quer demonstrar que recusa a idéia de que as categorias do pensamento que formam e/ou são formadas pelas palavras estejam realmente vinculadas à realidade concreta. Ou seja, o genérico “cavalo” nada tem a ver com o cavalo singular e concreto (branco, a título de exemplo) que esteja sendo observado através dos olhos.

No caso de um cavalo, talvez este pensamento seja exagerado: se cada pessoa escolhesse um nome diferente para nomear um cavalo, ou que seja – um cavalo branco que não é mais apenas cavalo, as linguagens seriam pessoais, e a comunicação entre duas pessoas já seria complexa; Imaginem então a comunicação entre uma vila ou grande cidade – seria praticamente impossível. Portanto, é inevitável que a linguagem se torne um “ditador” de conceitos, e o máximo que podemos fazer é nos valer das metáforas para tentar dizer “algo além” do que pode ser dito com as palavras.

O primeiro verso do Tao Te Ching, obra primordial do taoísmo, afirma que “O nome que pode ser dito não é o Nome eterno. No principio está o que não tem nome (o Tao).” – Ora, o Tao é um nome peculiar, ele é o nome do que não tem nome, pois é indizível, impossível de se conter em uma palavra, pois se trata não apenas de um conceito (por mais complexo que seja), mas de uma experiência. O Tao significa não somente a origem de tudo, mas o caminho em busca desse conhecimento primordial, em suma: a chamada experiência religiosa.

Na fé primitiva, o conhecimento ritual não tendia a se dar, evidentemente, por escrito. A novidade do Oriente Médio foi a fé no livro e, com ela, veio a configuração do discurso ritual, que o Ocidente esquematizou numa liturgia em parte devedora da estrutura oratória clássica. A retórica se firmou, nas religiões que dão peso ao verbo, como um campo importante da construção da religiosidade. A experiência religiosa, intransferível, foi, é e continuará subjetiva. Mas ao ser comunicada, ao ser partilhada em comunidade, a experiência mística segue princípios de persuasão.

No Ocidente, a religião está intimamente atrelada à linguagem, a evangelização. No Oriente, embora seja igualmente subjetiva, a religião é muito mais um caminho pessoal do que algo que se possa propagar adiante por discursos e sermões, ou mesmo por livros sagrados. Para a tradição oriental, livros sagrados geralmente são guias que tem de ser decifrados por cada um, e os líderes religiosos podem no máximo aconselhar sobre as melhores práticas nesse caminho.

Porém, religião à parte, a linguagem é também o meio primordial pelo qual as artes e as ciências são, respectivamente, comunicadas e codificadas. Impossível interpretar a arte sem o contato com símbolos (embora nem sempre sejam palavras); Impossível transmitir e organizar a ciência sem o uso de códigos simbólicos, como números e equações.

Outra característica importantíssima da linguagem é o seu correto uso em discussões e debates. Não é raro discussões ferozes serem travadas pelos motivos errados, simplesmente porque as pessoas não se entendem quanto ao significado das palavras que usam. Já citamos o amor, que certamente é outra palavra cujo conceito ainda não foi totalmente compreendido, a despeito dos esforços de poetas e religiosos ao longo da história.

Serão os conceitos universais possíveis de serem corretamente compreendidos e encerrados em palavras, em linguagem? É isso que veremos a seguir...

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Leitura recomendada: “A pré-história de mente”, de Steven Mithen (Editora Unesp); “Revista Língua Especial: Religião e Linguagem”, artigos “O nome do Tao”, por Inty Mendoza, e “A retórica do pregador”, por Luiz Costa Pereira Junior (Editora Segmento).

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Crédito da imagem: Bettmann/CORBIS (tabela alquímica de elementos)

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4 comentários:

Blogger Stepherson Darkchet disse...

Essa diferença que existe entre um símbolo e o que ele tenta expressar, o seu significado, também é falada em "O Poder do Mito", quando Campbell fala que as melhores coisas que existem você não consegue pensar sobre elas. As segundas melhores são as coisas sobre as quais você pensa, que são referências a essas coisas sobre as quais você não consegue pensar. E o terceiro lugar fica com as coisas que você consegue expressar com palavras ou arte.

21/11/11 14:21  
Blogger raph disse...

Bem lembrado Estefferson, eu concordo inteiramente com Campbell nesse sentido :)

Abs
raph

21/11/11 14:23  
Blogger Stepherson Darkchet disse...

E adicionalmente, veja que as coisas que você consegue expressar já são uma aproximação dos seus pensamentos, que por sua vez são uma aproximação do que aquilo é na realidade.

Ou seja, o que as pessoas usam para se expressar é uma aproximação de uma aproximação do objeto concreto.

Por isso, não me admira que existam tantos desentendimentos, pois se as expressões usadas são longínquas da realidade e cada um interpreta um símbolo de uma maneira, é natural que isso ocorra.

Certo que devemos, não de forma impositiva claro, ou talvez até de forma impositiva, mas sempre com cuidado, alertar as pessoas sobre a natureza da linguagem.

21/11/11 14:27  
Blogger raph disse...

Perfeito.

Por isso que esta série termina com o post "os nomes de Deus"... Pois "Deus" talvez seja o conceito, ou a palavra, ou o nome, para o qual haja mais interpretações diversas, sendo que muitas vezes as pessoas se digladiam em seu nome, e as vezes nem têm concepções tão distantes umas das outras assim.

E, abaixo de Deus, tudo o mais...

21/11/11 14:35  

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