Onde estarão os memes, parte 4
A natureza não nos deixará relaxar
O geneticista norte-americano Dean Hamer parece ter uma predisposição inata à polêmica. Em 1993, afirmou ter descoberto um trecho do DNA, que batizou Xq28, supostamente responsável pela homossexualidade masculina. A descoberta lançou à fama e depois ao escárnio (quando outros cientistas falharam em replicá-la, já em 1999) o campo da genética comportamental, do qual é pioneiro.
Ultimamente Hamer voltou à carga, metendo a mão numa área literalmente sagrada. Em seu livro "O Gene de Deus" (Ed. Mercuryo), Hamer tenta sustentar que a crença em um criador também é geneticamente determinada. Antecipando as críticas, Hamer disse logo que não se trata de "o" gene, mas de "um gene entre vários". E, ah, não é exatamente Deus, mas uma predisposição à crença, que ele chama de "espiritualidade". Em todo caso, segundo ele, “O Gene de Deus” é um título que vende muito mais...
O tal gene, isolado por Hamer e sua equipe no Instituto Nacional do Câncer, nos EUA, é identificado pela sigla vmat2. Ele estaria envolvido no transporte de uma classe de mensageiros químicos do cérebro conhecidos como monoaminas, do qual o mais famoso é a serotonina, a molécula do bem-estar. Algumas drogas como o ecstasy e o prozac também influenciam o humor alterando os níveis de serotonina no sistema nervoso. Será que a fé se resume a isso?
É precisamente esse tipo de tratamento ultra-superficial do assunto que permitiu que a ciência moderna chegasse a uma visão mecanicista do homem, e do funcionamento da mente. Mas nosso atual estudo se resume a questão da possibilidade de que características psicológicas e comportamentais possam ser passadas de geração a geração, e evoluir de forma darwinista, precisamente como os genes. Portanto, se gente como Dean Hamer tivesse comprovado que algum gene, seja ele qual for, pode ser o responsável pela transmissão desse tipo de característica – no caso, a homossexualidade ou a espiritualidade – teríamos uma grande comprovação de que os genes, afinal, não transmitem apenas características físicas adiante, e que os memes nada mais seriam do que características ocultas dos genes, sendo passadas adiante pela reprodução humana.
Esse dia, porém, ainda não chegou; E, pelo que temos visto dos “grandes estudos” de gente como Hamer, a tendência é que nunca chegue: os genes, como qualquer geneticista aprendeu na faculdade, transmitem mesmo apenas características físicas. Caberá aos memes, ou a outras teorias, solucionar o problema da transmissão de características não-físicas pelas gerações humanas.
O psiquiatra suíço Carl G. Jung desenvolveu o conceito de inconsciente coletivo – uma parte da mente, compartilhada por todos, como produto da ancestralidade. Para ele, esse inconsciente inclui os arquétipos (conceitos universais inatos), como mãe, Deus, herói, etc., detectáveis na forma de mitos, símbolos e instinto. Presume-se que ele via o inconsciente coletivo como um tipo de memória popular, corporificado na estrutura do cérebro. Ora, que o cérebro de um recém-nascido obtenha registros em seu hipocampo, trazendo memórias armazenadas por seus ancestrais, nem seria um grande problema científico, contanto que fossem detectadas as partículas responsáveis por tal transmissão. Nesse caso, a grande diferença da teoria de Jung para a teoria de Dawkins é que o inconsciente coletivo pode mesmo abrigar memórias e costumes de toda a espécie, e não apenas dos memes que foram passados adiante na reprodução.
E temos aí uma enorme quantidade de informação “mitológica” a “flutuar pelo ar” e influenciar diretamente os costumes e a cultura dos seres humanos. Continua inexplicado, continua oculto, continua profundamente místico – exatamente como os memes.
Nesse ponto o bom observador deve ter percebido o grande dilema: por um lado, cientistas, psicólogos e antropólogos têm percebido e reconhecido que, sem dúvida, certas características não-físicas são transmitidas adiante ao longo da evolução humana; por outro lado, as únicas unidades materiais detectadas, os genes, não explicam o mecanismo de tal processo. Portanto, qual a grande diferença entre os que acreditam em memes e no inconsciente coletivo, e os reencarnacionistas e espiritualistas em geral?
Muitos dos que se dizem “materialistas” imaginam que a máxima da teoria do materialismo – “tudo o que existe é matéria” – coloca esta maneira de ver o mundo automaticamente acima das demais, que crêem no “imaterial”. Mal sabem que existem muitos espiritualistas que crêem piamente que “tudo o que existe é matéria”, da mesma forma que os materialistas. A única diferença é que certos espiritualistas crêem que os 96% de matéria não detectada no universo (porque não interage com a luz, segundo a teoria da Matéria Escura) podem explicar muito do que é desconhecido do materialismo, que por seu lado, crê piamente que o mecanismo de tudo o que existe, incluindo a mente humana, já pode ser compreendido apenas analisando-se os 4% da matéria já detectada.
A grande diferença entre esse tipo de espiritualista (alguns diriam, moderno) e o materialista, é que o último já se dá por satisfeito com o que já foi detectado pela ciência, enquanto o primeiro dedica a vida a desvendar os segredos da matéria fluida, não-detectada. É nesse sentido que se diz que a consciência, ou o que quer que forme seu processo, pode perfeitamente sobreviver após o fim da vida corpórea, assim como decerto já vivia anteriormente ao nascimento – dessa forma se explicariam fenômenos como experiências de quase morte, crianças que se lembram de “vidas passadas”, e outros ramos mais próximos da parapsicologia do que da auto-proclamada “ciência oficial”.
Obviamente que o fato de tais teorias espiritualistas virem sempre envoltas em questões teológicas e, segundo muitos céticos, “pseudo-científicas”, afasta muitos cientistas de seu estudo, temerosos com a possibilidade de serem conhecidos como “cientistas espiritualistas” – algo que a comunidade científica aparentemente condena, apesar de ficar por vezes igualmente aparente que muitos deles ignoram completamente o que exatamente significa ser um espiritualista.
Porém, como já foi dito por mim em outros artigos, a natureza nunca se comportou da maneira que “achávamos que iria se comportar”. Segundo Richard Feynman, “a imaginação da natureza é muito maior que a do homem, ela nunca nos deixará relaxar”. É provável que tanto os adeptos da memética quanto os reencarnacionistas vejam o mundo através de uma lente ainda desfocada, talvez o futuro da ciência e do espiritualismo ainda nos esconda mecanismos naturais tão belos e extravagantes, tão simples e transcendentes, que nossa imaginação não seja capaz de vislumbrá-los, e nossa racionalidade não seja capaz de compreendê-los.
Que as lentes se interponham. Que venha o futuro!
***
Crédito da foto: [topo] Divulgação (Richard Feynman), [ao longo] Hikabu (arquétipos)
Marcadores: artigos, artigos (41-60), ceticismo, ciência, Dawkins, Dean Hamer, espiritualidade, evolução, Jung, Matéria Escura, materialismo, memes, parapsicologia, psicologia, reencarnação, Richard Feynman
10 comentários:
Aos que se interessaram pelo problema da evolução cognitiva não poder se explicada por genes, mas não concordam com a hipótese da reencarnação, ler também:
http://textosparareflexao.blogspot.com/2010/05/astrologia-genetica.html
"Para ele, esse inconsciente inclui os arquétipos (conceitos universais inatos), como mãe, Deus, herói, etc., detectáveis na forma de mitos, símbolos e instinto"
Sobre os animais.
As palavras símbolos e instinto me fizeram me lembram de uma passagem que vi em um livro evolucionista (O Macaco Nu ou O gene Egosísta, não me lembro) onde o autor discorre sobre o ritual do pavão em relação à fêmea, onde este exibe sua bela cauda e ela escolhe cuidadosamente a mais pomposa. Menciona a complexa e desconhecida reação em cadeia que os fótons que refletem a cauda do macho incendeiam ao bater nos olhos da fêmea, conduzindo-a para a escolha (ou não). Casos assim são comuns na natureza e imediatamente pensei nesse tipo de instinto como um sistema primitivo de interpretação simbólica, no sentido de algumas características representarem/simbolizarem maior vigor, saúde, etc. Estaria ocorrendo nos animais um arcaico sistema de interpretação de símbolos? Mesmo se assumirmos que são simplismente ações que se manteram por serem positivas/recompensadoras evolutivamente, existe um mecanismo pelo qual faz-se a identificação, mesmo que a escolha seja por acidente ou inconsciente. Claro que é algo muito limitado, no entanto há um princípio operativo de considerável inteligência fazendo associações: penas bonitas significam/simbolizam boa prole. Os instintos são mesmo intrigantes.
Oi Franco,
Agora você tocou num tema profundo, que eu não tive ainda coragem de falar... Mas já que mencionou...
Acredito que seja mais ou menos isso que disse mesmo. Recentemente os cientistas fizeram um manifesto falando sobre sua conclusão científica de que pelo menos todos os mamíferos e aves (além de alguns outros animais, como polvos) têm consciência - embora obviamente não se compare a nossa.
Esse "instinto estético" do pavão também pode ser encontrado num tipo de pássaro raro (se não me engano de Madagascar, mas eles aparecem no episódio da série "Vida", da BBC, sobre aves) onde os machos passam boa parte da vida construindo uma "instalação artística" com sementes, flores e outros objetos da floresta. Esta "instalação" serve para sedução das fêmeas, que só copulam com os "melhores artistas".
É intrigante pois fica um tanto evidente que "algum arremedo de linguagem estética" se passa ali, e ao que parece é tudo "carregado" pelo instinto.
No espiritualismo diz-se que os animais são como grupos de espíritos em formação, em conjunto, e que somente nos primatas e, mais fundamentalmente, no ser humano, que o espírito adquire uma individualidade própria. Talvez parte de nosso senso estético seja mesmo muito mais antigo do que a própria história humana, talvez isso seja algo tão complexo (admirar "o que é belo"), que somente o tempo em que fomos homo sapiens não seja suficiente para explicar como tal potencialidade se desenvolveu.
Mas eu não tenho ainda como escrever sobre isso, pois não posso dizer que tenha todos os elementos para construir um texto minimamente sólido sobre o tema...
Abs
raph
Eu tenho a série. E mais interessante ainda é que cada macho tem seu estilo próprio, as decorações variam muito e são realmente muito críticos/criteriosos, quando por exemplo nascem alguns fungos num esterco coletado e ele os remove.
É...seria muito bacana mesmo um artigo sobre isso. Não precisa fazer somente relacionado à interpretação simbólica, pode juntar fatos intrigantes dos animais e relacioná-los ao que diz ciência e espiritualismo. Como o vídeo de um hipopótamo salvando uma gazela de um crocodilo, certamente uma bizarrice. Seria o surgimento da compaixão? Também nunca vi nada dizendo sobre a dinâmica do espírito, tpw, quais os estágios, quantas vidas em média se passa reencarnando na mesma espécie, sobre quais espécies o espírito passa, qual o critério para mudar de espécie, enfim... a gnose nos diz que temos um 'crédito' de 108 vidas humanas. Oque acontece depois?
Mas enfim... é um assunto muito bacana, mesmo.
Já ia me esquecendo, outra coisa que também parece ter uma relação com a linguagem simbólica é a linguagem corporal, uma de nossas características animais mais fascinantes. Já me peguei várias horas divagando sobre qual é o motivo do corpo ter que sempre se expressar muitas vezes de maneira que o mensageiro não deseja (como no caso de denunciar uma mentira). Sem contar o farto de que emitimos e recebemos esses estimulos visuais e suas representações de modo insconsciente. Parece que o motivo se encontra na sua utilidade nquanto animais mais primitivos, quando ainda não haviamos adquirido a linguagem verbal sofisticada, no entanto não se trata apenas disso, de uma linguagem inferior, mas enriquecedora e complementar. Vc deve saber que as pessoas se orientam e formam suas opniões a respeito das outras baseadas muito mais em seus movimentos, em COMO ela fala, se move... do que no propriamente é dito.
Com certeza, inclusive acabou de passar no Café Filosófico da TV Cultura (Domingo 09/09) uma palestra de um coreógrafo que falava de como nossas posturas corporais tem muito a ver com nossa cultura e com "a linguagem do corpo".
Também não podemos esquecer da incrível capacidade humana de reconhecer expressões faciais desde o nascimento. Parece que nossas interações sociais, e o jogo da "verdade e mentira", ajudaram muito a catapultar nossa cognição. Foi preciso, afinal, que soubéssemos nos colocar no lugar "do outro", para compreender se "o outro" queria ou não nos enganar.
Até hoje, no Big Brothers da vida, a falsidade é muitas vezes o "pecado capital". Não sem razão :)
Abs
raph
Oi Franco,
Eu tava pensando em unir essa questão do "senso estético intuitivo" com outras questões que já tinha anotado para tentar falar no blog, e acho que vai acabar sendo a próxima série de reflexões...
Me deseje sorte :)
Abs
raph
Sencacional.
Opa, aguardo ansioso. Sorte :)
Ótimo texto Raph, assim como a série toda!
Me fez pensar em qual seria o motivo das crianças nascerem chorando (e muito rs), ao menos a grande maioria delas.
Abraço,
Juliano.
Bem, em existindo a reencarnação, é bem provável que tenhamos mais medo de nascer (de novo) do que de "morrer" :)
Abs!
raph
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