Reflexões sobre a linguagem, parte 3
Os nomes de Deus
Apesar do conselho do Tao Te Ching, a maioria das doutrinas religiosas insistiu em dar nome ao inominável, e com isso toda a espécie de conflito e desentendimento foi gerado ao longo dos tempos: Krishna, Jeová, Deus, Alah, Brâman, vários nomes que pretendem encerrar o mesmo conceito, quando em realidade cada ser tem o seu próprio conceito sobre qualquer um desses nomes. Ora, mesmo o “Zeus” de Epicteto já não era o mesmo Zeus da mitologia grega, e sim um “Deus dos deuses”.
Mas neste artigo, vamos manter a palavra Deus para designar o conceito de Absoluto – ou qualquer outro nome que queira dar, o nome não importa tanto, e sim o que você compreende por tal conceito.
Tanto a forma capitalizada do termo Deus quanto seu diminutivo, que vem a simbolizar divindades, deidades em geral, tem origem no termo latino para Deus, divindade ou deidade. Português é a única língua românica neolatina que manteve o termo em sua forma nominativa original com o final do substantivo em "us", diferentemente do espanhol dios, francês dieu, italiano dio e do romeno, língua que distingue Dumnezeu, criador monoteísta, e zeu, ser idolatrado.
O latim Deus e divus, assim como o grego διfος ("divino") descendem do Proto-Indo-Europeu deiwos ("divino"), mesma raiz que Dyēus, a divindade principal do panteão indo-europeu, igualmente cognato do grego Ζευς (Zeus). Na era clássica do latim o vocábulo era uma referência generalizante a qualquer figura endeusada e adorada pelos pagãos.
Já o ateísmo veio de uma origem etimológica intimamente ligada ao termo Deus. Originado do grego ãθεος (atheos), era aplicado a qualquer pessoa que não acreditava em deuses, ou que participava de doutrinas em conflito com as religiões estabelecidas. Com a disseminação de conceitos como a liberdade de pensamento, do ceticismo científico e do subseqüente aumento das críticas contra as religiões, a aplicação do termo passou a ter outros significados.
Tendo essas informações em mãos, talvez vocês concordem comigo quando afirmo que a discussão sobre a existência de Deus, ou seja, se ele existe ou não existe, é uma das atividades intelectuais mais inúteis que já foram inventadas... Ora, cada um tem a sua visão de Deus – mesmo entre os que atacam sua existência, há de haver antes uma concepção do que seria o objeto a ser atacado. Daí se tira que discutem sobre a existência de conceitos distintos, e dificilmente chegarão a alguma conclusão prática. Será sempre um embate de persuasão – um querendo persuadir o outro – e não um embate de razão.
Talvez isso fique melhor compreendido se pararmos para analisar os inúmeros conceitos que as pessoas têm de Deus: uns crêem que ele criou o Cosmos e interfere diretamente em cada evento, respondendo orações e enviando revelações proféticas a certos iluminados; outros crêem que após ter criado tudo o que existe, ele delegou a resolução dos eventos as leis da natureza, e deixou os seres decidirem seu destino por si mesmos. Ora, somente entre o teísmo e o deísmo já existem inúmeras divisões e sub-conceitos para o que significa Deus. Se formos entrar na questão das doutrinas abraâmicas, fica ainda mais complexo: para muitos cristãos, Jesus foi uma espécie de avatar de Deus; Para os muçulmanos Jesus foi mais um na linhagem de profetas, porém apenas homem; Já para certos judeus Jesus não passa de um herege... e assim vai, não quero nem entrar nas definições para “Deus pessoal” e “Deus impessoal”.
Se formos considerar as origens do ateísmo, tampouco chegaremos a algum lugar. Segundo a origem do termo, Jesus era um ateu para os sacerdotes judeus de sua época, visto que para eles ele deturpava os princípios de sua tradição religiosa. Mesmo em se considerando a origem do termo “religião”, ainda não chegaremos a lugar algum: Do latim re-ligare, significa literalmente "re-ligação", mas é comumente interpretado como "re-ligação aos deuses ou ao Cosmos". Também é associado ao termo em latim religio, usado na Vulgata, que pode ser interpretado como "reverência ao Deus dos deuses", embora aqui o termo já esteja intimamente ligado a uma crença específica. Obviamente o termo original pode ter inúmeras interpretações. Nem todas serão tão parecidas, mas certamente nenhuma delas pretenderá estabelecer o religare como uma crença em específico: aqui todos podem participar do mesmo religare, cada um a sua maneira e sem o intermédio de hierarquias eclesiásticas (ekklesia = “igreja”). Seria então um caminho espiritual, por assim dizer. Andamos, andamos, e no fim o Tao já havia definido isso tudo da melhor forma.
Que o caminho é próprio de cada um: pouco importa se crêem ou descrêem em um conceito, visto que esse conceito é também próprio de cada um. Antes discutir sobre problemas específicos e muito mais profundos do que se digladiar pela existência de um dentre infinitos conceitos: “Porque existe algo, e não nada?”; “O que é liberdade afinal?”; “Como surgiu a vida?”; “O que é a consciência?”; “O que é justiça?” – estes são alguns dos problemas, algumas das questões primordiais que procuro expor as pessoas, porque se fosse militante da existência ou não existência de um conceito que, no fim das contas, só mesmo eu compreendo a minha maneira, e ninguém mais, não haveria diálogo possível, e sim apenas uma batalha de persuasão. Não haveria troca de idéias, apenas a imposição das mesmas. Não acredito que assim se faça filosofia, que assim possamos nos conhecer melhor.
Melhor amar a diversidade de conceitos para algo tão grandioso quanto o Absoluto. Tão grandioso que não se pode delimitá-lo nem empacotá-lo em uma doutrina de crença ou descrença – o máximo que se pode fazer, penso eu, é admitir que se trata de um caminho, um caminho pelo qual andamos sozinhos, e o máximo que podemos fazer é trocar idéias sobre o que vemos ao longo. Cada um, porém, vê o Cosmos a sua maneira, e esta é a essência de sua grandiosidade, o assombro perante o infinito a vista.
Perguntemos "o que é Deus para você?" ao invés de afirmar "Deus é assim!" - é a melhor maneira de se fazer amigos, e não inimigos.
***
Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (detalhe da pintura no teto da Capela Sistina, por Michelangelo); [ao longo] Finizio (religiosos cristãos de tradições distintas participando da mesma cerimônia religiosa - ecumenismo)
Marcadores: artigos, artigos (41-60), ateismo, debates, Deus, ecumenismo, estoicismo, existência, linguagem, religião, Tao Te Ching
7 comentários:
Esse é um dos seus melhores textos,que trata do ponto principal de diversos debates,a existencia ou não de Deus,como era de se espera voce permanece neutro e faz com que seu texto possa ser apresiado por agnosticos com eu.
desculpe,eu errei no final,o ´´como´´ ficou ´´com´´.
Muito obrigado, era exatamente isso que gostaria de passar.
Muito legal o seu texto, não só para um agnóstico, mas também para um espírita como eu. Acabei de ler o post sobre "Allan Kardec: racista" e afirmo: todos nós ainda estamos longe da "Verdade" (até os Espíritos).
Muito bom o seu blog. Parabéns!
Abraços
Pois é Iuri, mesmo os espíritos falam somente do que sabem... Que bom que não nascemos sabendo de tudo, e que Deus insistiu que viéssemos ao seu encontro por nosso próprio mérito.
Abs e obrigado :)
raph
Uma das coisas que são minha marca é que quando minhas idéias conflitam com as outra pessoa, entro em um debate no qual não chego ponto algum.
Na verdade, acredito que se trata de mais uma batalha de persuasão, e não de razão. No entanto, não consigo evitá-lo na maioria das vezes.
Oi Estefferson,
Mas isso é bastante comum, particularmente para quem vai adquirindo bastante conhecimento.
Por isso também escrevi essa série. Eu aprendi que vale mais a pena começar os debates pedindo que as pessoas definam o significado de alguns termos e/ou conceitos chaves, do que partir para um debate pressupondo que todos interpretam tais termos da exata mesma forma (o que não é, quase que sempre, o que ocorre).
Por isso melhor começar assim:
"O que é Deus ou o Cosmos para você?"
ou ainda...
"Porque existe algo, e não nada?"
do que começar com...
"Porque Deus existe? Porque não existe?" etc.
Abs
raph
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home