Mitos, ciência e religiosidade
Texto de Marcelo Gleiser no Caderno Mais! da Folha de São Paulo (11/04/10). As notas ao final são minhas.
Começo hoje com a definição de mito dada por Joseph Campbell, uma das grandes autoridades mundiais em mitologia: "Mito é algo que nunca existiu, mas que existe sempre" [1]. Sabemos que mitos são narrativas criadas para explicar algo, para justificar alguma coisa. Na prática, não importa se o mito é verdadeiro ou falso; o que importa é sua eficiência.
Por exemplo, o mito da supremacia ariana propagado por Hitler teve consequências trágicas para milhões de judeus, ciganos e outros. O mito que funciona tem alto poder de sedução, apelando para medos e fraquezas, oferecendo soluções, prometendo desenlaces alternativos aos dramas que nos afligem diariamente.
A fé num determinado mito reflete a paixão com que a pessoa se apega a ele. No Rio, quem acredita em Nossa Senhora de Fátima sobe ajoelhado centenas de degraus em direção à igreja da santa e chega ao topo com os joelhos sangrando, mas com um sorriso estampado no rosto. As peregrinações religiosas movimentam bilhões de pessoas por todo o mundo. É tolo desprezar essa força com o sarcasmo do cético. Querendo trazer a ciência para um número maior de pessoas, eu me questiono muito sobre isso.
Como escrevi antes neste espaço, os que creem veem o avanço científico com uma ambiguidade surpreendente: de um lado, condenam a ciência como sendo materialista, cética e destruidora da fé das pessoas. "Ah, esses cientistas são uns chatos, não acreditam em Deus, duendes, ETs, nada!"
De outro, tomam antibióticos, voam em aviões, usam seus celulares e GPSs e assistem às suas TVs digitais. Existe uma descontinuidade gritante entre os usos da ciência e de suas aplicações tecnológicas e a percepção de suas implicações culturais e mesmo religiosas. Como resolver esse dilema?
A solução não é simples. Decretar guerra à fé, como andam fazendo alguns ateus mais radicais, como Richard Dawkin, não me parece uma estratégia viável. Pelo contrário, vejo essa polarização como um péssimo instrumento diplomático. Como Dawkins corretamente afirmou, os extremistas religiosos nunca mudarão de opinião, enquanto um cientista, diante de evidência convincente, é forçado eticamente a fazê-lo. Talvez essa seja a distinção mais essencial entre ciência e religião: o ver para crer da ciência versus o crer para ver da religião [2].
Aplicando esse critério à existência de entidades sobrenaturais, fica claro que o ateísmo é radical demais; melhor optar pelo agnosticismo, que duvida, mas não nega categoricamente o que não sabe. Carl Sagan famosamente disse que a ausência de evidência não é evidência de ausência. Mesmo que estivesse se referindo à existência de ETs inteligentes, podemos usar o mesmo raciocínio para a existência de divindades: não vejo evidência delas, mas não posso descartar sua existência por completo, por mais que duvide dela. Essa coexistência do existir e do não-existir é incômoda tanto para os céticos quanto para os crentes. Mas talvez seja inevitável.
A ciência caminha por meio do acúmulo de observações e provas concretas, replicáveis por grupos diferentes. A experiência religiosa é individual e subjetiva, mesmo que, às vezes, seja induzida em rituais públicos. Como escreveu o psicólogo americano William James, a verdadeira experiência religiosa é espiritual e não depende de dogmas. Apesar de o natural e o sobrenatural serem irreconciliáveis, é possível ser uma pessoa espiritualizada e cética [3].
Einstein dizia que a busca pelo conhecimento científico é, em essência, religiosa. Essa religião é bem diferente da dos ortodoxos, mas nos remete ao mesmo lugar, o cosmo de onde viemos, seja lá qual o nome que lhe damos.
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[1] Acredito que Campbell quis dizer que o mito existe fora do tempo, em essência, e porisso existe sempre. É a essência de verdade dos grandes mitos que sobrevive (sempre), independente do formato e da cultura de onde se originaram. Não sei se o Gleiser entendeu dessa forma...
[2] Grande parte das pessoas parece não compreender direito nem o que é ciência nem o que é religião. Ciência é o conhecimento da realidade detectável por sentidos ou instrumentos, não sendo nem materialista nem espiritualista. Religião é a religação, a busca pela compreensão de Deus ou do Cosmos, não sendo ela em si presa a nenhuma igreja ou doutrina, pois o caminho é livre, é o caminho de cada um... Não concordo com o "ver para crer" nem com o "crer para ver" - seria melhor dizer: a compreensão do Mecanismo da natureza (em vendo, se compreende) e a compreensão do Sentido da natureza (em compreendendo, se vê). Ou como dizia Sto. Agostinho: crer para compreender, compreender para crer.
[3] Esta também era a opnião de Carl Sagan em “O mundo assombrado pelos demônios”:
“Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra. A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King. A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas.
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Crédito da foto: Site oficial de Marcelo Gleiser
Marcadores: agnosticismo, autores selecionados, autores selecionados (41-60), Carl Sagan, ceticismo, ciência, espiritualidade, fé, Marcelo Gleiser, mitologia, religião
3 comentários:
Vi a reprodução de suas notas finais no Sedentário, pelo @deldebbio.
Parabéns, excelentes observações!
Valeu Kentaro, é muito bom saber que cientistas, espiritulistas, céticos, materialistas e dualistas ainda assim tem muitos pontos em comum sobre o que dialogar, contanto que o dogma passe longe :)
Abs
raph
Agradecendo o link do Marcelo Del Debbio no megablog Sedentário e Hiperativo, segue sua explicação (nos comentários) sobre a diferença entre Mito e Religião:
"Um mito (do grego “mithós”) é uma narrativa de caráter simbólico, relacionada a uma dada cultura. O mito procura explicar a realidade, os principais acontecimentos da vida, os fenômenos naturais, as origens do Mundo e do Homem por meio de deuses, semi-deuses e heróis.
Ao mito está associado o rito. O rito é o modo de se pôr em ação o mito na vida do Homem – em cerimônias, danças, orações, sacrifícios).
O termo “mito” é, por vezes, utilizado de forma pejorativa para se referir às crenças comuns (consideradas sem fundamento objetivo ou científico, e vistas apenas como histórias de um universo puramente maravilhoso) de diversas comunidades. No entanto, até acontecimentos históricos se podem transformar em mitos, se adquirem uma determinada carga simbólica para uma dada cultura.
O mito é uma veste para uma observação da realidade. Hoje em dia, artistas de televisão e filmes e cantores e big-brothers substituiram os deuses. Mitos são fantásticos… o problema dos mitos é quando os macaquinhos do planeta passam a acreditar na LITERALIDADE deles… achar que Adão e Eva são de verdade, que a arca de Noé existiu, Dilúvio, Torre de Babel e assim por diante…
Já a religião é uma tentativa de se explicar o que a ciência não consegue explicar. Por exemplo: o que acontece depois que morremos? a ciência ortodoxa não tem a menor idéia, porém, ao longo da história da humanidade, centena de milhares de relatos de comunicação entre os vivos e os mortos acontecem.´São fatos, experiencias empíricas, relatos, lendas, textos, etc… um volume enorme de informação que nos diz que alguma coisa acontece com o espírito depois que morremos. Porém, como não há uma certeza de nada, ao longo das eras, os hierofantes (antigamente sábios e líderes religiosos eram as mesmas pessoas) tentavam explicar o que viam e observavam através de analogias e símbolos (o mito da Fênix, que trata de morte e renascimento, por exemplo). Quando tentavam passar para estas pessoas o que viam/entendiam muitas delas não conseguiam ultrapassar os símbolos e ficavam no aspecto literal (como os ateus e crentes de hoje em dia). Daí surge o aspecto eXotérico (com X) ou externo de uma religião, que é seguida pela massa e ridicularizada pelos descrentes naquilo (daí a alegação que “mito é a religião do outro”)."
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