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6.4.10

Reflexões sobre o sexo, parte 2

continuando da parte 1...

A força motriz

Assim como Montaigne, um outro filósofo de renome que veio depois inquietou-se com o “pudor filosófico” em relação ao sexo. Schopenhauer era particularmente perplexo com o poder que a atração sexual exercia na vida de qualquer pessoa de sua época, do mais humilde e ignorante ao mais nobre e educado:

“O amor (...) interrompe a cada momento o mais sério dos trabalhos e algumas vezes deixa perplexos, mesmo que por alguns instantes, os cérebros mais geniais. Ele não hesita (...) em interferir nos negócios do estadista e nas investigações do intelectual. Ele sempre encontra meios furtivos de introduzir seus bilhetes apaixonados e cachos de cabelos do ser amado até mesmo nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos... Ocasionalmente, exige o sacrifício da saúde, dos bens, da posição social ou da felicidade.”

Porque afinal o homem, o mais racional dos animais, insistia em comportar-se, de tempos em tempos, como um animal no cio? Como pôde a razão, a divina razão, permitir tal irracionalidade – como sabemos, mesmo nas instituições mais sacras? O filósofo alemão encontrou uma resposta surpreendentemente atual, considerando-se a sua época (1788-1860):

“Porque uma ninharia como essa exerce papel tão importante (...)? Não devemos nos deter em pormenores insignificantes; ao contrário, a relevância deste assunto está em plena harmonia com a sinceridade e o empenho que lhe dedicamos. Toda relação amorosa tem um objetivo primordial (...) que, na verdade, se sobrepõe a qualquer outro projeto humano. É, portanto, digna de ser encarada com profunda seriedade.

O que caracteriza este objetivo é nada menos que a criação da próxima geração (...); a existência e organização específica da raça humana no futuro.”

Antecipando o que a genética viria a confirmar posteriormente, Schopenhauer teorizou que era a própria força motriz da vida, da perpetuação da espécie, que influenciava a razão dos homens mais sensatos, através de um inconsciente que tinha os seus próprios planos. Mas em sua imaginação, foi mais além, afirmando que esta vontade inconsciente tentava estabelecer uma harmonia entre as características físicas e mentais de homens e mulheres:

“Todos desejam, por intermédio de seu par, eliminar suas próprias fraquezas, defeitos e desvios do padrão, para que não sejam perpetuados ou transformados em completa anormalidade no filho que será gerado.”

Pela lógica peculiar do filósofo do amor, um homem de queixo e nariz protuberantes iria se sentir atraído – ainda que de forma inconsciente – por uma mulher de face delicada e nariz pequeno. Da mesma forma, um homem tímido e pacato se interessaria por uma mulher extrovertida e neurótica. Assim a força da vida tendia para uma harmonia de características, e os opostos deveriam se atrair, ainda que sem saber...

Por isso Schopenhauer foi mais um a decretar a separação entre o casamento e a felicidade: pares de características opostas estavam fadados a um relacionamento tempestuoso. Porém, toda a desarmonia que é a causa da infelicidade de sua relação é compensada pela harmonia de características de sua prole. Segundo esta curiosa teoria, a vida não estaria mais interessada na felicidade e no “amor eterno” do casal do que na garantia da reprodução e uma prole harmônica e “balanceada”.

Interessante notar as similaridades desta filosofia com as idéias defendidas por Dawkins em seu célebre “O Gene Egoísta”, e mesmo com as teorias controversas da Psicologia Evolutiva. Seriam os genes espécies de homúnculos capazes de controlar nossa vontade – senão pelo inconsciente, ao menos pelos instintos sexuais?

Não é preciso tornar a ciência mística, nem recorrer a idéias sedutoras da filosofia para explicar tal problema... Ora, é certo que muitos de nós cedem facilmente aos instintos e a atração sexual, mas serão todos? E seria a explicação do desejo da perpetuação da espécie válida para todos os casos, mesmo os de relações homossexuais? O que dizer então dos seres assexuados, seriam eles abençoados ou amaldiçoados?

Schopenhauer não conseguia vislumbrar na força motriz da vida mais do que uma espécie de escravidão dos sentidos:

“A vida da maioria dos insetos não passa de um esforço incessante de preparar a alimentação e a moradia da futura prole, que sairá de seus ovos. Depois de ter consumido o alimento e ter passado para o estágio de crisálida, a prole começa uma existência cuja finalidade é cumprir novamente, e desde o princípio, a mesma tarefa (...); não podemos deixar de indagar qual o resultado de tudo isso (...); não há nada a revelar, apenas a satisfação da fome e do instinto sexual e (...) uma pequena recompensa momentânea (...), ocasional, entre necessidades e esforços infindáveis.”

Tivesse este amável pensador lidado com a vida de uma forma um pouco mais realista, e não pessimista, talvez tivesse repensado sua teoria. Não é que Schopenhauer – ou mesmo a genética – estivessem errados; Obviamente a razão cambaleia ante os instintos sexuais em quase todos nós, a força motriz que impele todos os seres adiante neste sistema-natureza tem uma função muito específica, que somente na era moderna pôde ser vislumbrado em toda a sua grandeza: não apenas proliferar a vida, não apenas sobreviver, mas evoluir!

Toda vida se auto-organiza, constrói a si mesma e se melhora através de mecanismos belíssimos, que segundo Darwin “tendem a perfeição”. Mas a vida não é só um mecanismo, ela também é um sentido. E seres conscientes, aqueles que descobriram os “mistérios do bem e do mal” e foram expulsos do Éden, parecem sim ser perfeitamente capazes de, senão racionalizar, ao menos compreender o sentido por trás desta força que nos impele sempre à frente.

Nem todos são ou foram escravos dessa vontade inconsciente, deste mítico “gene egoísta”: há que se lembrar dos santos (os verdadeiros, como São Francisco de Assis), dos grandes artistas (como Da Vinci, que trabalhou tanto que não parece ter tido tempo para o sexo) ou mesmo dos grandes cientistas (que ao invés da arte pictórica, dedicaram-se a arte dos números). E ainda que se diga que estes foram muito raros, certamente não poderemos dizer o mesmo dos assexuados e muito menos dos homossexuais, que certamente não pretendem proliferar a espécie (pelo menos, não fisicamente).

Eis que a força motriz da vida, o inconsciente sexual de Schopenhauer, o “gene egoísta” de Dawkins, nada mais é do que uma energia de vontade. Quando deixada sem controle (como a respiração inconsciente), vem bater as portas da razão de tempos em tempos, causando um caos orquestrado que objetiva a proliferação da vida física.

Entretanto, quando bem compreendida e vivenciada, quando pode ser experienciada como a respiração consciente da meditação transcendental, tal energia de vontade pode ser – senão exatamente controlada – ao menos redirecionada para objetivos diversos. Alguns diriam até, objetivos mais elevados, se esta fosse uma questão de simples julgamento.

A vontade com que Einstein buscou os pensamentos divinos, a vontade com que Da Vinci pintou e criou, a vontade com que São Francisco de Assis entregou-se a uma vida de caridade... Todas essas vontades (toda essa energia) foram de tal forma redirecionadas para um objetivo elevado, que certamente poderemos dizer que nesses casos às “interrupções irracionais” da atração sexual praticamente inexistiram [1]. Eis que alguns seres tiveram mais o que fazer desta vida; Não apenas sobreviver, mas viver – e evoluir, passo a passo, sempre à frente...

***

[1] Alguém pode lembrar que Einstein teve uma vida sexual bastante ativa. O mesmo poderia-se dizer, talvez, de Francisco de Assis antes da conversão. Mas o que estou querendo dizer é que tais seres viveram imbuídos de um "objetivo maior", uma busca por sentido, e passaram bem longe de serem escravos de um instinto de atração sexual.

***

Crédito da foto: Joan Tomas

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5 comentários:

Blogger Unknown disse...

sei que não tem muito haver com o tema proposto mas vocé ja ouviu falar do livro de Marcelo Gleiser criação imperfeita?

7/4/10 20:52  
Anonymous lucas disse...

ops,botei o apelido da minha mãe por acidente

7/4/10 21:03  
Blogger raph disse...

Eu gosto muito de Marcelo Gleiser, desde "A dança do universo" e "O fim da Terra e do Céu", já vi esse livro novo dele na livraria do aeroporto, mas ainda não sei quando vou ter tempo de ler, está na minha lista.

Sobre a "criação imperfeita", a ciência já demonstrou que nem todas as espécies tem "mecanismos perfeitos", por exemplo as plantas fazem clorofila utilizando o espectro luminoso intermediário da luz solar, poderiam usar outro espectro e obter mais energia, etc.

Por outro lado, a perfeição não deixa de ser uma abstração humana, e segundo o próprio Darwin a evolução das espécies "tende a perfeição"... Mas que perfeição será essa? A natureza tem um plano?

Isso os próprios cientistas responderam:

http://textosparareflexao.blogspot.com/search/label/Chris%20Impey

Abs
raph

8/4/10 11:47  
Blogger tatti disse...

Acredito que a energia sexual "libido", por assim dizer, não desaparece em alguns casos, como o sábio que se refugia nos livros ou o santo que se entrega as experiências místicas. Acredito que nesses casos a energia sexual é "sublimada" através de outros comportamentos/ideais.
Tomamos o exemplo de Teresa D'Ávila, freira, santa, doutora da Igreja que viveu durante o Renascimento Espanhol.
Teresa era uma teóloga que exalava um misticismo intenso, que podia sentir no seu corpo a presença de Deus. Seus êxtases e levitações são conhecidos. Lendo os seus poemas, observei que todo aquele fervor da santa, possuía uma espécie de sexualidade sublimada, um "erotismo divino", no qual fica difícil distinguir dor, fé e prazer, como comprova a célebre estátua em sua homenagem feita por Bernini em Roma.

24/5/13 21:53  
Blogger raph disse...

Tatti, penso que ocorra exatamente dessa forma... Sendo que, no caso das mulheres, talvez tal tipo de experiência (isto é, a "sublimação da energia sexual") seja ainda mais intensa do que no caso dos homens.

Abs
raph

26/5/13 17:51  

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