Animais, espíritos e deuses
Nosso Lar é o segundo filme que trata da obra de Chico Xavier a alcançar grande sucesso comercial em 2010. É sempre interessante ver mais uma leva de reações variadas em menos de um ano: há aqueles que tratam Chico como um santo e fazem das salas de cinema um destino de romarias; há aqueles – que se julgam céticos – que ficam de cabelo em pé com o seu sucesso e elaboram as mais criativas teorias de charlatanismo, ainda que adorem ignorar que ele doou todo o direito autoral pela vendagem de suas obras para a caridade [1]; há aqueles – os mais divertidos, admito – que afirmam que espiritismo é proibido pela bíblia (embora seja um termo criado a menos de 2 séculos) e que Chico e Kardec fazem parte de uma conspiração “maçônica” liderada pelo próprio Capeta (ou algo assim)... E claro, há também os parcimoniosos: espíritas e espiritualistas que o admiram, mas não o tomam como santo ou infalível; céticos reais que consideram as hipóteses de autoengano, criptomnésia [2] ou até mesmo algum tipo estranho de esquizofrenia...
Pois é, eu não vou aqui entrar nessa discussão, até mesmo porque o que não falta na web hoje em dia são sites e blogs a estender as premissas do último parágrafo em debates intermináveis – onde 99% das pessoas já entram com a opinião solidificada, em todo caso... Não, eu vou retornar a um assunto que já havia abordado num outro artigo sobre Nosso Lar: a possibilidade dos textos de Chico conterem algumas intrigantes antecipações do futuro (digo, no plano físico). Não estou falando de algo dúbio como a possibilidade da arquitetura de Nosso Lar ter inspirado a Brasília, mas de algo um tanto mais profundo.
Uma das continuações de Nosso Lar, o livro Missionários da Luz, foi publicado em 1945. É um relato de experiências pessoais vividas por André Luiz (espírito que Chico afirma ter ditado ambos os livros) no plano espiritual, em sua grande maioria acompanhado por Alexandre, seu "instrutor". Para ir diretamente ao ponto, vou trazer a vocês dois trechos deste livro:
“A fim de esclarecer André Luiz quanto às causas profundas da existência da vampirização [3], Alexandre esclarece:
– Porque tamanha estranheza? – perguntou o cuidadoso orientador – e nós outros, quando nas esferas da carne? Nossas mesas não se mantinham à custa das vísceras dos touros e das aves? A pretexto de buscar recursos proteicos, exterminávamos frangos e carneiros, leitões e cabritos incontáveis. Sugávamos os tecidos musculares, roíamos aos ossos. Não contentes em matar os pobres seres que nos pediam roteiros de progresso e valores educativos, para melhor atenderem a Obra do Pai [4], dilatávamos os requintes de exploração milenária e infligíamos a muitos deles determinadas moléstias para que nos servissem ao paladar, com a máxima eficiência. O suíno comum era localizado por nós, em regime de ceva, e o pobre animal, muita vez à custa de resíduos, devia criar para nosso uso certas reservas de gordura, até que se prostrasse, de todo, ao peso de banhas doentias e abundantes. Colocávamos gansos nas engordadeiras para que hipertrofiassem o fígado, de modo a obtermos pastas substanciosas destinadas a quitutes que ficaram famosos [5], despreocupados das faltas cometidas com a suposta vantagem de enriquecer os valores culinários. Em nada nos doía o quadro comovente das vacas-mães, em direção ao matadouro para que nossas panelas transpirassem agradavelmente. Encarecíamos, com toda a responsabilidade da ciência, a necessidade de proteínas e gorduras diversas, mas esquecíamos de que nossa inteligência, tão fértil na descoberta de comodidade e conforto, teria recursos de encontrar novos elementos e meios de incentivar os suprimentos proteicos ao organismo, sem recorrer às indústrias da morte. Esquecíamo-nos de que o aumento dos laticínios para enriquecimento da alimentação, constitui elevada tarefa, porque tempos virão, para a humanidade terrestre, em que o estábulo, como o lar, será também sagrado. ” (Missionários da Luz, 23. ed., p. 41)
Apesar da linguagem excessivamente formal e de termos que afugentam certos céticos antes que possam completar a leitura, há que se analisar este trecho (apenas um de tantos outros) de forma mais profunda... Quão simples é bater no peito e afirmar que somos espíritas, que estamos evoluindo “a passos largos”, etc.; Quão difícil é encarar a nós mesmos no espelho e perceber como ainda estamos tão adormecidos, tão anestesiados para uma vida verdadeiramente espiritual.
O movimento moderno de direitos animais pode ser traçado no início da década de 70. Um grupo de filósofos da Universidade de Oxford começou questionar porque o status moral dos animais não-humanos era necessariamente inferior à dos seres humanos... O resto da história muitos devem conhecer, mas será que alguém realmente se preocupava com direitos animais em 1945? Decerto eram muito poucos, decerto não era algo que aparecia na mídia e tampouco era assunto de debate político.
Não tenho a pretensão de levantar mais questões além das que já foram levantadas neste trecho de Missionários da Luz. Leiam e releiam com calma, e encontrarão ali muitas sementes que só vieram a florescer em nosso mundo, na chamada “humanidade terrestre”, muitos anos depois. E também, é claro, muitas sementes que até hoje anseiam por florescer... Ao invés disso, e também para demonstrar que grandes almas sempre estiveram conectadas a tais assuntos essenciais da sacralidade da existência e de toda a vida no planeta, trago a vocês um outro trecho, deste vez de Leon Tolstói em The First Step (O Primeiro Passo):
“O carneiro vivo estava ali deitado, tão silencioso quanto o morto e inflado, a não ser por sacudir nervosamente o rabo curto e os lados a se alçarem com mais rapidez que de costume. O soldado baixou gentilmente, sem esforço, a cabeça levantada; o açougueiro, sem parar de conversar, agarrou com a mão esquerda a cabeça do carneiro e cortou-lhe a garganta. O animal tremeu, e o rabinho endureceu e parou de abanar. O camarada, enquanto esperava o sangue correr, começou a reacender o seu cigarro, que se apagara. O sangue corria, e o carneiro começou a agonizar. A conversa continuou sem a mínima interrupção. Era horrivelmente revoltante.”
Sim, há muitos que vivem sem enxergar quase nada a sua frente... Tratam seres como se fossem coisas, e muitas vezes tratam as coisas como se fossem deuses. E vivem como numa batalha feroz pela sobrevivência, e morrem sem quase ter realmente vivido.
O problema não é consumir a carne. O problema é achar que os animais são meros produtos de uma enorme fábrica, e que o fato de termos condições de submetê-los ao nosso domínio nos exime da responsabilidade de nós mesmos sermos para eles como deuses incentivadores, e não demônios exterminadores.
***
[1] Segundo reportagem da Superinteressante de Abril de 2010 sobre o filme Chico Xavier, o médium doou cerca de 670.000 reais por ano a caridade (de forma direta ou indireta), e contentou-se em viver com sua escassa aposentadoria de funcionário público (de baixo escalão) até o fim da vida. Não foi o que seu filho adotivo fez: ele hoje detém os direitos autorais do pai.
[2] Distúrbio de memória que faz com que as pessoas se esqueçam que conhecem uma determinada informação. Entretanto, não explicaria a exatidão de descrições históricas, por exemplo, desconhecidas da própria história de sua época, e descobertas em pesquisas posteriores.
[3] Como é comum em vários livros que Chico afirma terem sido ditados pelo espírito André Luiz, há uma extensa análise do suposto fenômeno de obsessão, em que um espírito literalmente influencia o pensamento de outro, e “vampiriza” as sensações físicas provenientes de suas ações (por exemplo, sentir o gosto de bebida alcoólica). Não sei se a analogia que o espírito faz entre a “vampirização” e o consumo de carne faz algum sentido, acredito que ele estava se referindo a nossa “vampirização” da natureza como um todo, através do consumo predatório e na maior parte das vezes excessivo e desnecessário – prejudicial para nós mesmos, portanto.
[4] Acho que vale mencionar um trecho da Carta do Chefe Seattle aqui: “O destino de vocês é um mistério para nós. O que vai acontecer quando todos os búfalos forem sacrificados? O que vai acontecer quando os recantos secretos da floresta estiverem passados com o odor de inúmeros homens e a vista das colinas verdejantes se macular com os fios que falam? Será o fim da vida e o começo da sobrevivência.”
[5] Se você pretende começar a reduzir seu consumo de “produtos animais”, comece pelo patê de fígado de ganso. Se não sabe como ele é feito, pesquise na web. Se sabe como ele é feito, e continua a comer, lamento por você...
***
Crédito da foto: jimluci (Temple Grandin, autista savant e especialista em comportamento animal, talvez uma das pessoas vivas com maior compreensão de como e de que forma os animais sentem; Trabalha para que o abate de gado seja feito da forma menos traumática possível)
Marcadores: artigos, artigos (91-100), Chico Xavier, direitos animais, espiritismo, espiritualidade, natureza, Nosso Lar, Tolstói
6 comentários:
Acredita , O que é coincidência?
Me veio varias duvidas em minha mente nos últimos dias sobre aborto, quando começa a vida, como quebrar o ciclos do karma e acabei chegando nesse livro, Missionários da luz. Ontem eu estava lendo essas parte dos animais achei muito interessante também.
Fica a esperança de um dia as pessoas verem os animais como parte do grande espirito, dando a eles o respeito que é de justiça.
Que legal Samuel, eu adoro quando aparecem essas sincronicidades entre os posts do blog e alguma coisa que os leitores estão pesquisando...
É bem complicado analisar o espírito animal do ponto de vista reencarnacionista. Sistemas naturais a parte (quando o predador age naturalmente dentro de um sistema controlado, como homens selvagens e mesmo os modernos que fazem uma pecuária mais "humanista"), de certa forma os animais são ainda mais crianças que nossas crianças, e ainda mais inocentes também... E como temos tratado nossas crianças ultimamente?
Pois é, por isso que é complicado... Acho que o trecho do livro de Tolstói resume bem o sentimento.
Abs
raph
O ser humano está mais para "homem das cavernas" do que "homem sábio", acaba agindo como um câncer no planeta. Mas isso vai mudar um dia.
Gostei do texto, vc me recomendou ele a algum tempo já ( pela coluna no site do DelDebbio ), mas eu demoro para criar 'coragem' para ler em casa e como no trabalho não abre blogspot fica dificil ler la, poderia arriscar um proxy, mas é arriscar demais. O que recomendaria por exemplo para uma pessoa que pratica atividade fisica e consome mais proteina que o normal ? E por exemplo no caso do ovo e do leite, teria o mesmo problema de vampirização ou não ? Seria uma forma de usurparmos o que é 'deles' ?
Oi Gustavo,
O meu artigo é mais uma reflexão sobre a necessidade de reconhecermos os animais como espíritos, seres como nós, e não meros "objetos de consumo".
Mas, quando a relação do consumo de carne com práticas espiritualistas e mágicas, isso vai muito de acordo com o sistema que está praticando...
No geral, acredito que com o tempo nessas práticas passamos, no mínimo, a perceber quando o consumo excessivo de carne nos prejudica. Mas não sou adepto a posturas radicais - tento comer menos carne gradualmente, hoje em dia me limito a carne de vaca, frango e peixe, mas carne somente 1x por semana se possível.
Já é um começo...
Abs
raph
Obrigado pela indicação dos vídeos :)
Temos que ter consciência de que o mudo não muda da água para o vinho de uma só vez, mas sempre, passo a passo... O importante é continuar dando passos a frente, mesmo que curtos.
Abs
raph
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