O problema da criança e do câncer
Trecho do Projeto Ouroboros
(P.) Bem, antes que nossa amiga procure me refutar, devo deixar claro que o conceito de “deus ausente” será sempre uma meia-verdade, pois da mesma forma que ele não intercede diretamente nos eventos de sua criação, pode-se dizer que também intercede a cada momento, na manutenção das leis naturais que, bem ou mal, permaneceram estáveis desde o início deste universo. É principalmente por conta disso que a ciência existe, afinal se as leis da natureza mudassem com o tempo, ou tivessem comportamentos diferentes de acordo com uma dada região do espaço-tempo, seria provavelmente impossível elaborar um estudo consistente das mesmas. Ou, em outras palavras, E=mc² será sempre E=mc², não importa o tempo ou a região do universo.
(S.) Correto, é bom deixar isto sempre claro a todos.
(P.) Entretanto, o mero fato de Deus manter, por exemplo, a lei da gravidade funcionando, não necessariamente explica toda a sua justiça divina. Ou pelo menos, não evidencia uma justiça que seja inteiramente compatível com o nosso senso de justiça, humano.
Eu explico: conforme combinamos há algum tempo, eu concordei em considerar a possibilidade da existência de Deus, para que pudéssemos prosseguir no debate de seus atributos... Muito bem, eu não estou arrependido de acompanhá-los nessa empreitada, pois muito embora continue não encontrando evidências para a crença em um deus pessoal, concordo que há algo de sagrado e profundamente misterioso na vida, na forma com a qual resíduos de estrelas se reuniram para formar tantas e tão complexas máquinas moleculares que insistem em desafiar a entropia do Cosmos. Até que surgiu o ser humano e sua consciência, com características tão maravilhosas e insondáveis que é praticamente uma pequena “heresia” chamá-lo de máquina de células. Sim, concordo que sejamos muito mais do que isso, e concordo igualmente que ainda teremos uma longa via pela frente, até que possamos desvendar sequer uma pequena parte de nosso mecanismo mental e do processo de consciência.
Portanto, a vida sendo tão sagrada, a vida sendo a principal função do sistema-natureza, pela lógica era de se esperar que um Deus justo fizesse tudo ao seu alcance para preservá-la, da mesma forma que é a reação natural de toda mãe a preservação e proteção de seus filhos...
(I.) Interrompe.
Perdoe-me, meu amigo, mas não foi exatamente esta a nossa conclusão há pouco? Ora, se todos somos emanações de Deus, ou como O. gosta de chamá-lo – da substância-primeira –, então me parece que aquele que cria e possibilita a vida é automaticamente seu maior protetor e preservador.
(P.) De certa forma, concordo plenamente contigo. É impossível discordar que, num universo onde nada se cria e tudo se transforma, estamos então todos conectados, e todos somos originários de um mesmo “ponto” no espaço-tempo. Todos somos constituídos de “partículas-irmãs”, por assim dizer, todas filhas da singularidade que iniciou o espaço-tempo. Nesse sentido, é óbvio que Deus é justo, e que suas leis são justas.
Mas, por outro lado, este deus poderia ser chamado de natureza, e apenas natureza... Porém, segundo a idéia de Deus pessoal que muitos dos humanos acreditam, ele nos criou a sua imagem e semelhança, e nos inseriu na Terra como seres humanos. Isso nos traz diversos problemas lógicos que não podem ser desconsiderados.
O primeiro deles é até mesmo óbvio: como conciliar a teoria da evolução das espécies com esta criação incessante de Deus?
(I.) Como já lhes disse, não desconsidero a teoria de Darwin-Wallace. Entretanto, ela jamais teve quaisquer intenções de explicar a origem da vida ou da consciência humana... Ora, e o que é a alma além da consciência humana? O que ocorre, há meu ver, é que esta teoria explica a evolução física das espécies, mas nada nos diz acerca das almas criadas pelo ser divino.
(P.) Bem, mas receio que a discussão sobre a existência da alma nos tomaria um outro tanto de tempo...
(O.) Concordo, sugiro que pulemos esta discussão por agora. Considere então, P., a alma como uma possibilidade lógica. Ao menos por enquanto, pois suspeito que seu argumento independa da existência ou inexistência da alma humana.
(P.) Está certo, você tem razão. Independe mesmo em realidade...
Digamos então, caro I., que a evolução física se dê ao largo da criação incessante dessas almas. Você sustenta então que cada alma humana é criada por Deus e então enviada para habitar um corpo recém-nascido?
(I.) Certamente. Chegará o dia em que a ciência se renderá a tal explicação, pois que existem características da alma humana que estarão sempre fora do alcance da explicação mecanicista com a qual muitos estudiosos do cérebro procuram explicar nossa consciência e nosso livre-arbítrio.
(P.) Muito bem, quero lembrar novamente que estou deixando a discussão sobre a natureza da alma humana para outro momento... Ainda assim, sua resposta já é o suficiente para que eu coloque uma pergunta central nessa discussão, uma pergunta que é capaz de abalar os alicerces da crença em um Deus justo!
(I.) Ora, pois faça a pergunta então...
(S.) Muitos foram os sábios que afirmaram que as perguntas são mais importantes do que as respostas... São as perguntas que nos movem sempre à frente!
(O.) Sorri.
Bem, eu já imagino o que vai perguntar... Tem a ver com crianças, não?
(P.) Acena com a cabeça em concordância.
Mais precisamente com recém-nascidos, com aquelas almas que têm poucos segundos de vida, seja no útero materno ou já fora dele, mas que já são herdeiras de uma carga maldita, um destino infeliz...
Respondam-me então, como um Deus justo pode criar uma alma destinada a habitar o corpo de uma criança que nasce com câncer [1]?
***
[1] Conforme a nota existente no livro: Gostaria de deixar claro que não é minha intenção “justificar” ou ditar uma razão infalível pela qual uma criança nasce com doenças como o câncer (e outras tantas doenças até piores, que é desnecessário citar aqui). O cerne da discussão irá girar em torno da justiça divina, que é um conceito importantíssimo do livro, mas que é no fundo apenas um conceito. Qualquer que seja a resposta para esse problema, jamais será minha intenção afirmar que um evento desses deva ser “aceito” sem sofrimentos, como se fosse uma coisa normal e/ou corriqueira. Não é, é algo extremamente trágico, e esta discussão procura trazer um consolo filosófico para a questão, sem pretender encerrar o assunto e muito menos fazer julgamentos do tipo: “a criança nasceu assim porque merecia” ou “foi a vontade de Deus”... Achamos que tais respostas serão sempre equivocadas, pois se trata de um assunto que deve ser abordado mais pela emoção do que pela razão. Afinal, apenas o amor pode realmente consolar – ainda que o amor sob a razão.
Obs: Aqui no blog eu estive "preparando terreno" para este post do Projeto Ouroboros. Para qualquer um que tenha se sensibilizado com a questão, recomendo levar em consideração estes outros posts: "Definição da saudade" e "O homem que pede pelo pior".
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Crédito da foto: Jackson Rubem
Marcadores: Deus, existência, filosofia, justiça, medicina, Projeto Ouroboros
1 comentários:
Estou adorando seus textos.
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