Vinte contra um, parte 2
Quando falamos em crianças que se lembram de vidas passadas, reencarnação, assuntos “espirituais”, há muitos cientistas de baixa curiosidade e céticos de negação a priori que preferem ignorar o assunto totalmente. Para estes, praticamente não existe diálogo possível... A aposta no monismo já foi efetuada há tempos, e eles estão apenas esperando o resultado da roleta.
Mas felizmente tivemos cientistas e céticos que, mesmo considerando o monismo com carinho, não se absteram de analisar a lógica por detrás de estudos científicos como os de Ian Stevensson, talvez por serem seres de alta curiosidade. Em “O mundo assombrado pelos demônios” – para muitos a “bíblia” do ceticismo – Carl Sagan menciona os estudos de Ian como o tipo de pesquisa heterodoxa que mereceria uma atenção mais cuidadosa da comunidade científica: “crianças pequenas as vezes reportam detalhes de uma vida anterior, detalhes que quando analisados revelam-se precisos, e um conjunto de informações que não poderiam saber de nenhuma outra forma que não a reencarnação.”
Sagan, no entanto, explica que ele mesmo não crê na reencarnação. Apenas crê que a pesquisa de Ian era válida, era científica, e que por isso mesmo merecia uma análise mais cuidadosa... Talvez a reencarnação fosse apenas uma resposta simplista para um fenômeno que escapava ainda ao entendimento da ciência; Talvez a reencarnação existisse de fato, mas operasse através de um mecanismo totalmente desconhecido, inclusive dos espiritualistas que creem que ele opera de forma X ou Y; Talvez a explicação remetesse ao inconsciente coletivo de Jung ou aos memes de Dawkins, embora em todo caso essas teorias sejam tão ou mais místicas quanto à da reencarnação.
Retornemos então ao embate entre monismo e dualismo: será que as vinte evidências de Ian Stevensson colocam o caso de Phineas Cage em xeque? Ora, é claro que em todos esses casos, o que temos são um misto de evidências subjetivas e objetivas, mas em número de casos teríamos uma proporção de vinte para um... Ainda que tenhamos diversos outros casos clínicos de pessoas que sofreram uma alteração moral devido a danos ao cérebro – e decerto teremos muitos casos interessantes nos relatos dos livros do psicanalista Oliver Sacks –, sempre teremos também inúmeros outros casos de crianças que lembram vidas passadas a estudar, afinal elas nunca param de nascer! Some-se a isso os estudos de experiências de quase morte em que há relatos de experiência consciente enquanto o cérebro estava sem nenhuma atividade detectável por instrumentos, e temos aí uma longa discussão pela frente... Muito embora o dualismo pareça estar sempre em clara vantagem, essas estatísticas não serão de muita relevância para a maioria das pessoas que já possuem uma opinião ou uma aposta formalizada: dualismo ou monismo.
Por isso eu achei que seria interessante trazer alguns pontos em comum entre estas duas teorias:
Primeiro, tanto o monismo quanto o dualismo são teorias. Sim, teorias conceituais. Não há prova científica nem experimentação em laboratório que tenha comprovado que o cérebro seja a única origem do processo de consciência. Ainda que tudo o que exista seja matéria, e que não haja nada de imaterial na mente, ainda assim segundo a própria ciência, através da teoria da matéria escura, apenas cerca de 4% da matéria e energia do universo interagem com a luz e foram detectadas por nossos instrumentos “físicos” – ou seja, a mente pode ser material, mas formada por parte desses 96% de matéria e energia que nos são ainda profundamente desconhecidos.
O que nos leva ao segundo ponto. Ora, muito embora o monismo seja essencialmente a crença e que mente e cérebro são a mesma coisa, e que não possam existir em separado, no fundo todos sabem que o que os monistas não podem aceitar é que haja algo de puramente imaterial em nossa essência mais íntima. Ou, em outras palavras, praticamente todo monista é um materialista... Mesmo o polêmico físico Amit Goswami, com suas teorias que defendem um monismo reencarnaciosta (ver, por exemplo, “A física da alma”), não deixa de ser ele mesmo um materialista espiritualista.
Mas, e se os monistas ouvissem de alguns dos espiritualistas (existem vários tipos, acreditem) que o espírito também é formado de matéria? Será que a partir de então o dualismo não será para eles uma possibilidade, no mínimo, plausível?
Vejamos a pergunta #82 do Livro dos Espíritos de Allan Kardec: “É certo dizer que os espíritos são imateriais?” – Para surpresa de muitos, os próprios espíritos que ditavam as respostas para as jovens médiuns que auxiliavam o cientista francês trouxeram a seguinte resposta: “Imaterial não é o termo apropriado; incorpóreo, seria mais exato; pois deves compreender que, sendo uma criação, o espírito deve ser alguma coisa. É uma matéria quintessenciada, para a qual não dispondes de analogias, e tão eterizada que não pode ser percebida pelos vossos sentidos.”
Ou seja, embora seja uma resposta a favor do dualismo (o espírito é incorpóreo e portanto pode viver fora do corpo), é da mesma forma uma resposta a favor do materialismo. Se a tal matéria eterizada não soa bem aos ouvidos dos cientistas atuais, talvez soasse melhor se falassem em matéria escura, não detectada, fluida, etc. Ocorre que no século 19 o termo “matéria escura” ainda não havia sido cunhado...
O que isso tudo quer dizer? Acredito que, primordialmente, que devemos estudar todos os ramos de conhecimento humano, e todas as teorias – sejam científicas, espiritualistas ou filosóficas – antes de bradarmos convictos que “apenas a nossa aposta é a correta”... Até mesmo porque objetivamente, tanto o monismo quanto o dualismo, tanto o materialismo quanto o espiritualismo, não passam de apostas. Tudo o que temos de concreto é a companhia uns dos outros. Que não tornemos a vida de cada um mais sofrida com discussões inúteis onde cada um já traz suas opiniões e apostas formalizadas a priori, mas que aproveitemos essa divina diversidade de seres e ideias para que, ainda que em meio à dúvida, possamos construir uma sociedade onde os seres apenas dialogam sobre ideias, e não tem nenhuma boa razão para se exterminar por conta de opiniões contrárias e apostas no preto ou no vermelho. A roleta ainda está a girar!
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Crédito da foto: Renata Nunes
Marcadores: artigos, artigos (91-100), Carl Sagan, crianças que lembram vidas passadas, espiritismo, espírito, espiritualidade, Ian Stevenson, materialismo, reencarnação
5 comentários:
Rapaz, excelente texto.
Essa "curiosidade" da qual você fala é a GRANDE virtude do cientista, muito bem observado. Não só é irritante ouvir um cético categorizando previamente qualquer evento mediúnico como esquizofrenia, como chega a dar dó. Um julgamento prévio sem investigação é o quê mesmo? Ah, sim, preconceito, não?
"Talvez a reencarnação existisse de fato, mas operasse através de um mecanismo totalmente desconhecido" É isso!!! Seja lá o que possa ser o pós morte (se é que há rs), não fazemos absolutamente nenhuma idéia do que seja sua natureza mais íntima e detalhada. Definitivamente, ninguém sabe de nada rs
... ainda está a girar.
Faltou voce falar do mal de alzheimer,e de outras doenças da mente.Mas o texto ta até bem para uma defesa do dualismo.
Oi Ronauld,
A curiosidade perante o mundo a nossa volta é uma virtude não só para cientistas como para filósofos, religiosos e espiritualistas em geral... Gosto muito da frase de Sto. Agostinho: "crer para compreender, compreender para crer" - isso leva a uma vida de descobertas sem fim :)
Quando cientistas estudam a mediunidade e percebem que tem "parentesco" com a esquizofrenia, NO ENTANTO admitem que tem algo de estranho, pois nenhum esquizofrenico volta ao normal de uma hora pra outra, enquanto a grande parte dos médiuns estudados "deixa de ser esquizofrenico" ao sair de seus "transes mediúnicos", daí temos cientistas verdadeiramente curiosos em ação.
Ou de baixa curiosidade simplesmente acham que médiuns e esquizofrenicos "são tudo a mesma coisa"... São do mesmo time que incluem toda cura mediúnica na "conta" do efeito placebo (embora ninguem saiba exatamente como opera esse efeito).
Enfim, acho que já deu para captar o que quero dizer :)
Abs!
raph
Oi cotrim,
As doenças da mente que causam demência podem ser consideradas uma "avaria" no aparelho cerebral. Então da mesma forma que alguém que amputa a perna não pode caminhar, e o rádio quebrado não capta mais onda nenhuma, o cérebro em processo de demência captará cada vez menos os comandos da mente, ou os captará de forma errônea.
Resta saber se a mente apenas fica "esquecida" dentro de regiões do cérebro, ou se ela independe dele e apenas o "pilota"...
Nos livros de Oliver Sacks temos alguns casos assim, e tantos outros como de autistas e amnésicos e etc. - Mas é interessante como em alguns tratamentos não ortodoxos, principalmente com música, eles "retornam" a ser parte do que eram quando saudáveis. Por exemplo, amnésicos lembram-se de eventos esquecidos, e dementes retornam parcialmente ao normal, etc.
E olha que Sacks não é nenhum espiritualista da vida, embora seja um homem pleno de espiritualidade.
Ver, por exemplo:
http://textosparareflexao.blogspot.com/2010/03/tecendo-sentidos.html
Abs!
raph
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