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1.9.10

Vinte contra um, parte 1

O filósofo francês René Descartes é considerado o fundador do dualismo moderno. Para ele, o mundo material estaria separado do campo da mente, que abrange os pensamentos, as emoções, o prazer e a dor. Se as coisas da “mente” não têm tamanho, forma nem movimento, elas podem interagir com o mundo material, de forma que os pensamentos são capazes de causar ações, e os estímulos materiais, pensamentos. Segundo Descartes, essa interação ocorreria na glândula pineal, um pequeno núcleo cerebral que, à época, não se acreditava ter outra função.

Os monistas aparentemente representam o extremo oposto do dualismo cartesiano. Segundo o monismo, a consciência é parte do universo material, sendo idêntica à atividade cerebral relacionada a ela. Desenvolveu-se quando se aperfeiçoaram os mecanismos cognitivos, mas apenas como resultado destes, e não por qualquer outro propósito... Enquanto os dualistas creem que o cérebro nada mais é do que um rádio capaz de sintonizar a mente através da glândula pineal (ou através do cérebro como um todo), os monistas confiam em outra aposta: a de que é o rádio que gera as suas próprias ondas.

Segundo o filósofo americano John Searle, a consciência poderia ser imaginada como um “quarto chinês”: neste quarto estariam armazenados todos os dicionários e regras de gramática associados ao idioma chinês. Dentro dele haveria um homem capaz de traduzir e responder às questões escritas em chinês manipulando esses recursos, apesar de não saber falar uma única palavra nessa língua. Então, alguém que enviasse a frase “Como está o dia hoje para você?” poderia receber a resposta “Horrível!”, no mesmo idioma. Visto de fora, poderia parecer que o homem no interior “entendeu” a questão, mas Searle argumenta que esse comportamento não é suficiente para a compreensão. Da mesma forma, um computador nunca poderia ser descrito como “tendo uma mente” ou “compreendendo”. Outros filósofos argumentam que a compreensão consciente seja tão somente o processo de “se comportar como se entendesse”.

Se o homem do “quarto chinês” fosse tão somente um autômato cerebral capaz de levar e trazer mensagens, talvez o dualismo de Descartes faça todo o sentido afinal: o que quer que interprete as informações enviadas por nossos sentidos, e as envie de volta através de respostas complexas e emocionais, este sim seria o pianista da consciência. A consciência não geraria a si mesma, mas antes seria o som das teclas de quem dedilha o piano cerebral com maior ou menor desenvoltura... De fato, apesar da ciência moderna estar se intrometendo cada vez mais em nosso cérebro, o “gerador dos pensamentos” ainda não foi localizado em parte alguma. Vemos, sem dúvida, um baile frenético de eletricidade dentre bilhões de neurônios, e às vezes conseguimos associar um fluxo elétrico a uma resposta consciente, mas não quer dizer que saibamos de onde se originou efetivamente a resposta – principalmente quando ela tange questões morais e complexas.

Por isso esta questão é chamada de “o problema difícil da consciência”. Compreender as respostas reflexivas, ou comandos motores, etc., isso é até mesmo trivial quando comparado às respostas que envolvem uma interpretação da personalidade, uma resposta moral... Ainda assim, os críticos do dualismo cartesiano encontraram um caso estranho, ocorrido há muito tempo atrás, mas que possuí boa base de relatos de testemunhas, e com ele (e praticamente apenas ele) criaram uma teoria que postula que nossa moral, afinal, é apenas fruto do agitar de partículas em nosso lóbulo frontal.

Em “O erro de Descartes”, por exemplo, o cientistas português António Damásio vale-se especificamente deste caso para sustentar sua crítica ao dualismo... No ano de 1848, Phineas Cage, respeitado trabalhador de uma companhia ferroviária americana, teve a parte frontal do cérebro perfurada por uma barra de ferro, que usava para comprimir pó explosivo. Ele sobreviveu, com poucos danos à maioria de suas faculdades. Entretanto, houve drástica mudança de comportamento. De homem educado, responsável e respeitador, tornou-se perigoso, rude e socialmente irresponsável. Os mais próximos (testemunhas do caso) notaram que ele “não era mais o Cage”. A mudança devia-se, segundo os médicos, aos danos cerebrais. Reconstruções modernas (toda a gama de gráficos 3D que possam imaginar) demonstram que o ferimento afetou o lóbulo frontal – associado à sensibilidade moral.

Você deve estar imaginando que, ainda que o lóbulo frontal seja o responsável por nossas respostas morais, se a consciência for um “quarto chinês”, é bem possível que apenas o tradutor interno tenha sido prejudicado, e que isso nada teria a ver com a mente. Ou seja, o rádio estaria avariado, captando as ondas de forma errônea... Claro que essa discussão seria infindável. Não seria o “quarto chinês” argumento suficiente para encarar os defensores do monismo que se baseiam nesse acidente de 1848 como principal evidência. Seria preciso uma evidência tão forte quanto a favor do dualismo...

Em 1974, o bioquímico e psiquiatra canadense Ian Stevenson nos trouxe 20 evidências. Todas consideradas as evidências mais fortes dos milhares de casos estudados em diversos continentes nas décadas anteriores. Ian estudava crianças, mais precisamente as que afirmavam se lembrar de vidas passadas. Seu livro lançado naquele ano se chamava “20 casos sugestivos de reencarnação”.

Ora, não eram casos de evidência baixa: desde crianças que se lembravam de nomes de parentes e até do endereço de suas casas em vidas passadas, até crianças que relatavam terem tido mortes violentas na última encarnação, e traziam marcas de nascença exatamente onde os ferimentos letais os levaram a morte na última vida. Tudo registrado e, principalmente, estudado, de forma genuinamente científica... Se uma criança se lembra de uma vida passada, é necessário considerar que a informação registrada no cérebro de sua última vida foi transmitida, de alguma forma estranha, para um outro cérebro, um novo cérebro. Quando falamos nisso, estamos aparentemente dando um xeque-mate no monismo.

Na continuação, o que Carl Sagan tinha a dizer sobre o assunto, e os possíveis pontos de encontro entre o monismo e o dualismo.

***

Crédito da foto: Ryan Southen (um quarto chinês)

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3 comentários:

Anonymous Ronaud disse...

Virei fã dos seus textos. Aguardo a continuação...

1/9/10 20:43  
Blogger Adriano Bello disse...

Oi Rafael, excelente texto, como sempre! Eu, particularmente, sou fã de Descartes. Apesar de todas as críticas ao seu dualismo, foi a dissociação entre consciência e matéria que acabou permitindo avanço mais rápido da ciência numa época em que a igreja interferia em tudo. Com o dualismo, os assuntos científicos (materialistas) se desvencilharam dos religiosos (consciência) e puderam evoluir com mais tranquilidade. Mas concordo que agora é hora de juntar as peças de novo. A ciência fica muito limitada se desconsidera assuntos da consciência e da espiritualidade dentre suas hipóteses.

Forte abraço!

Adriano.
http://despertardoengenheiro.blogspot.com/

1/9/10 22:06  
Blogger raph disse...

Obrigado pessoal, na continuação vou falar exatamente sobre como o dualismo e o monismo tem alguns pontos em comum, se analisados com a mente um pouco mais aberta...

Abs
raph

1/9/10 23:18  

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