Dançando com ciganos, parte 3
Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
E a festa continuou... Ao ritmo de músicas latinas, espanholas, ciganas, espíritos dançavam em meio à mata carioca, úmida, a refletir uma lua cheia em céu límpido, estrelado, infinito. Quantos e quantos espíritos já dançaram nesta terceira pedra do sol, quantas e quantas vidas nômades encontraram refúgio em nosso planeta, quantas ainda por chegar...
Quando digo que espíritos dançavam, é por não saber ao certo se eram os médiuns encarnados a dançar, ou espíritos de outrora, ou de agora, daqui ou de algum lugar, pegando emprestado seus corpos para que dançassem como seres humanos uma vez mais. Como disse, segundo meus colegas de faculdade, quase todos estavam emprestando gentilmente seus corpos. Mas eu não – eu não queria, não poderia, perder aquela dança.
Para mim a dança, sobretudo a espiritual, é uma espécie de ritual em movimento. Quando estou nesse estado, de dançarino da vida, alguma coisa em mim, alguma coisa maravilhosa, passa a influenciar meus passos, meus movimentos, meus pensamentos... Para lhes dizer a verdade, minha relação com a dança é tão intensa (apesar de eu ter iniciado somente lá pelos 16 anos, num casamento de minha família), que eu jamais poderia acreditar em um Deus que não soubesse dançar.
No entanto, nunca gostei de decorar passos de dança, assim como nunca gostei de decorar orações. Para mim a maior oração é aquela que se faz no ato de viver no amor, e a maior dança é aquela que reflete o agitar de nossa própria alma, ao vivenciar este amor.
E aquela poesia noturna continuou...
Quando os ciganos dançam
Saias e lenços vermelhos
Bailam pelo ar
Estamos no mesmo passo
No mesmo ritmo
Todos a amar
Sob a proteção de Sara
Dos astros
E do mar
Destinados a felicidade
Banhados pela luz
De um tênue luar [1]
Até que a música cedeu lugar às consultas com os médiuns (incorporados). Foi nesse momento que me aproximei da fila que se formava em torno de Madalena, e enquanto aguardava minha vez, fiquei de olhos e ouvidos bem abertos para tudo o que era perguntado, e respondido...
Uma coisa que constatei na época, e que até hoje me intriga quando visito centros espíritas, espiritualistas, umbandistas, e festas espirituais em geral, é como as pessoas perguntam sobre coisas pequenas, mundanas, praticamente irrelevantes se comparadas com a divina oportunidade de conversarmos por alguns momentos com entidades que parecem habitar o outro lado do véu, nalguma outra dimensão... “Como vai minha situação no trabalho, será que serei demitido este ano?”; “Queria saber se sicrano gosta de mim mesmo, ou seria de fulano?”; “Você acha que esse ano é um bom ano para iniciar meu novo negócio?” – nada disso me parece importante perto de tal fenômeno.
Além disso, muitas vezes (talvez a maioria) um médium não estará realmente incorporando outro espírito, mas o seu próprio, seja alguma parte inconsciente, seja alguma personalidade de outra vida – o que é conhecido usualmente como animismo. Se usamos tal comunicação para perguntar perguntas como estas, melhor seria consultar um psicólogo, um filósofo, talvez um leitor de tarô, e não um ser que veio de outra dimensão da natureza para nos visitar... Apesar de que, muitas vezes, tampouco haverá ser algum ali para nos responder, apenas o animismo do próprio médium.
E como eu não estava ali somente para dançar, mas, sobretudo, para observar e aprender algo de útil, quando veio a minha vez de dialogar com Madalena, lhe trouxe uma pergunta um pouco mais profunda do que as demais:
“O que eu gostaria muito de saber é acerca da natureza do tempo. É verdade que ele é somente uma parte do espaço? E, sendo assim, é verdade que vocês aí de cima conseguem visualizar outras partes do tempo, ou seja, o nosso futuro aqui na Terra?”
O espírito que habitava Madalena me olhou de uma forma doce e respondeu, como se houvesse uma espécie de “tradução simultânea” sendo realizada, enquanto ela buscava as palavras certas para seus pensamentos:
“Jovem, não existe em cima e embaixo, nem o que passou e o que vai passar, existe só amor. Tudo isso aqui, toda essa festa, toda essa música, é só pelo amor que tudo existe...”
Sem refletir muito sobre a resposta dada, prossegui:
“Mas, e como é isso? Porque estamos aqui desse lado, vivendo no tempo? Se já sabem do futuro, tudo já foi escolhido por nós? Somos fantoches?”
“Não! Vocês têm isso... Como que chamam aí? Vontade! Vocês têm vontade! Então, vocês é que escolhem, a gente só observa... Mas, sobre o futuro, jovem, é melhor não saber... Ainda não podem saber... Seria muito, muito ruim, que soubessem quando vão morrer... Têm muito medo, vocês daí, de morrer...”
E já estava terminando meu tempo com ela, então parti para a pergunta que jamais poderia ter deixado de fazer:
“Mas, e quem é você? É algum guia de Madalena?”
“Não... Eu sou guia é das águas... Eu cuido de um lago no Japão há muitos, muitos anos atrás... Acho que... Isso, mais de mil anos atrás! Adeus, é hora de retornar.”
E o que posso dizer é que até hoje estou refletindo sobre aquela última resposta de quem quer que seja que pegou Madalena emprestada [2].
***
[1] Trecho de um poema que escrevi na época, Festa cigana.
[2] Sendo que, o máximo a que cheguei em relação ao assunto se encontra relatado em minhas Reflexões sobre o tempo. Já se acharam estranho um espírito da natureza oriental estar freqüentando uma festa cigana, lembro que os ciganos se originaram de migrações da Índia para a Europa há 1.500 anos; E, independente disso, é muito comum que entidades de egrégoras diversas operem certo “turismo espiritual” em egrégoras alheias – ou, em outras palavras, o mundo é um só.
***
Crédito da foto: knulp (Torii de Shirahige, Shiga, Japão)
Marcadores: ciganos, contos, contos (41-50), dança, espiritualidade, festa estranha, Japão, mediunidade, tempo, vontade
6 comentários:
Rafael,
Pela resposta, parece que se tratava de um ser do reino elemental.
Mas não ficou claro no seu texto se ele vem cuidando do lago a 1000 anos, ou se cuidou do lago a 1000 anos atrás.
Gostei muito dos seus relatos.
Obrigado por compartilhar suas vivências.
Oi Hiro, obrigado.
Pois é, ela falou "eu cuido de um lago há 1000 anos", mas realmente isso pode ter sido problema de uso da linguagem - a qual o espírito disse mais de uma vez "ser complicada de utilizar".
É interessante pois isso pode resolver o enigma hehe, para variar pode ter sido algo bem mais simples. Acho que poderia ser um espírito da natureza que cuidou, ou vem cuidando, de um lago há 1000 anos, e em ambos os casos o enigma está solucionado.
O meu "problema" era em imaginar que estava conversando com um ser que vivia no passado. Mas agora acho que era só problema de linguagem mesmo... Não que isso fosse o mais importante da história, mas fico feliz de ter encontrado uma solução mais plausível e simples agora :)
Abs!
raph
Bacana o seu relato, cara!
Só achei bem vaga a resposta que a entidade deu. Dá a impressão que ela fugiu da pergunta.
Geralmente as respostas sobre as "grandes questões", como "o sentido da vida", "como são criados os espíritos" ou "o que é exatamente o tempo", são mesmo vagas, dentre outras razões por, provavelmente, serem respostas que estão além da linguagem, ou ao menos além da linguagem humana :/
Abs!
raph
Ah sim, claro, ainda cabe lembrar de que os espíritos falam apenas do que sabem, e por mais que a tal entidade provavelmente compreendia melhor ao tempo do que eu, não quer dizer que ela o compreendia **inteiramente** :)
Muito, muito bom :-)
Obrigado por compartilhar Raph!
Abraço.
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