Dançando com ciganos, parte 1
Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).
Na faculdade conheci a Amanda, que além de ser uma bela garota tão interessada em artes quanto eu [1], ainda apareceu num belo dia com O livro dos espíritos na mochila... Conversa vai e conversa vem, acabei descobrindo que os pais dela não somente eram espíritas, como a própria mãe, Madalena, era uma médium ostensiva desde a infância. Apesar deles morarem num bairro afastado na zona oeste do Rio de Janeiro, consegui convencer a Amanda e trazer seus pais numa das reuniões semanais do Teatro Vannucci, no Shopping da Gávea, perto da minha casa na zona sul da cidade. Conforme já havia dito em outro conto desta série, os encontros espiritualistas ecumênicos deste teatro foram, para mim, como uma espécie de “missa semanal” por muitos anos [2]...
Ainda me lembro quando os avistei no corredor do shopping. Era óbvio que o casal um pouco mais velho que andava junto com a minha colega de faculdade eram seus pais, mas conforme a Amanda ainda não tinha me visto, seria improvável que qualquer um dos dois me reconhece-se a certa distância naquele corredor. No entanto, assim que me viu a mãe dela mal conseguiu tirar o olhar de mim – ela me parecia estar até mesmo apreensiva [3]. Somente quando a sua filha me viu e me apresentou, que ela pareceu relaxar.
Então assistimos juntos a palestra espiritualista do dia, rezamos e meditamos junto com todos os presentes ao final, e depois fomos comer um lanche no shopping. Só então pude compreender o motivo do “estranhamento” de Madalena com minha presença: seu marido, Jânio, me explicou pacientemente que ela costuma ver espíritos desencarnados desde pequena, e que até hoje, até aquele preciso momento, isso ocorria. Madalena chegava a evitar sair sozinha na rua, porque as vezes não tinha como saber se estava vendo ou até mesmo conversando com um espírito desencarnado – era necessário alguém encarnado ao seu lado, para que ela pudesse se certificar: “você está vendo alguém ali ao lado?”.
Pode parecer até mesmo uma situação cômica, do tipo de “causos do Chico Xavier”, mas na vida real esse tipo de coisa estava longe de ser engraçada ou trivial, pelo menos para a própria Madalena. Foram necessários muitos anos de desenvolvimento da própria mediunidade, de auto conhecimento e meditação, para que ela pudesse deixar de ser “alguma louca varrida” e pudesse viver normalmente. É claro que muitos céticos vão resumir casos assim como patologias mentais, mas o que importa nesse caso é que o espiritismo efetivamente possibilitou que Madalena pudesse levar uma vida (quase) normal, ao ponto de parecer uma dona de casa perfeitamente normal, não do tipo que vê espíritos por todo o lado (apesar de ver).
Na verdade a certa altura da conversa eu já havia percebido que a mãe da minha colega era uma das médiuns mais “capacitadas” que já havia encontrado pessoalmente [4] – apesar de não demonstrar nenhuma capacidade intelectual acima de média, e de se expressar com linguagem simples, ela exalava sabedoria por todos os poros, e principalmente pelo olhar. Ela me explicou porque ficou particularmente apreensiva ao me ver: “Com o tempo aprendi a reconhecer os desencarnados, mas algumas pessoas as vezes parecem estar desencarnadas; Não sei se é pelo que estão pensando a sua volta, pelo olhar, pela forma de caminhar, mas você ali no corredor me parecia mais um espírito do que uma pessoa”.
“Mas que tipo de espírito, um bonzinho né?” – perguntei, sem pensar muito no que estava dizendo.
“Bonzinho ou mauzinho, isso a gente nunca sabe não é? O que eu vi era uma névoa em volta da sua cabeça, daquele tipo formada por pensamentos meio que fora desse mundo, sabe como é? O tipo de coisa em que os espíritos se interessam bem mais do que nós...”
E ela não poderia estar mais correta. Como qualquer artista, espiritualista, ou poeta, eu na minha juventude passava mais tempo pensando em coisas de um outro mundo do que propriamente deste... Apesar das contas para pagar, apesar do casamento e do futebol, acho que até hoje isso ainda não mudou tanto assim.
Segundo a Amanda, o mais impressionante daquela noite toda não foi o fato de sua mãe ter me confundido com um espírito desencarnado, mas sim o fato de que Jânio, o seu pai, havia “ido com a minha cara”. E, segundo ela, o seu pai era um tanto carrancudo e raramente gostava a primeira vista de quaisquer amigos dela (principalmente amigos homens, sabem como é)... Isso significava, em suma, que eles estavam dispostos a me levar para passar um final de semana numa chácara no interior do estado, onde ocorreria um encontro semestral de um grande grupo espiritualista da zona norte do Rio. Ela me disse que “provavelmente alguns deles iriam incorporar ciganos” – e eu, é claro, aceitei na hora!
» Na continuação, a festa mais estranha da minha vida (até aqui)...
***
[1] Ambos cursávamos Gravura (Belas Artes), na UFRJ.
[2] Ver o conto “Orando em teatros”.
[3] Até hoje certos médiuns me olham dessa maneira, principalmente os que nunca me viram antes. É um olhar um tanto específico, mas até hoje não tive coragem de perguntar o que exatamente eles estão vendo...
[4] Pelo menos 80% ou mais dos médiuns ostensivos que tive a oportunidade de conhecer pessoalmente eram mulheres. Acredito que muitos espiritualistas devem ter chegado a números parecidos, ao menos aqui no Brasil. Waldemar Falcão, por exemplo, descreve algumas delas no seu excelente Encontros com médiuns notáveis (Ed. Nova Era).
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Crédito da foto: Oliver Rossi/Corbis (essa pessoa não é a Madalena do conto).
Marcadores: contos, contos (41-50), espiritualidade, festa estranha, mediunidade
2 comentários:
Os ciganos não apareceram nesta parte 1, mas havia até me esquecido do título :-)
E acabei pensando em várias coisas engraçadas que poderiam explicar a névoa em volta da sua cabeça :-)
Mas falando (escrevendo na verdade) sério agora, o que seriam esses pensamentos? Você até os descreveu como um outro mundo, e o que não são (contas, casamento que entendi como obrigações/responsabilidades, futebol).
Muito bom!
Abraço.
Oi Juliano, são pensamentos "metafísicos" que a maior parte dos artistas, filósofos, cientistas, espiritualistas e, principalmente, poetas e sonhadores em geral, têm em meio ao "dia a dia". As vezes ganhamos apelidos carinhosos, como "autista", por exemplo :)
É por conta deles que, quando consulto a cigana no decorrer desta série, pergunto algo como "O que eu gostaria muito de saber é acerca da natureza do tempo. É verdade que ele é somente uma parte do espaço?", ao invés de algo como "Queria saber se sicrana gosta de mim mesmo, ou seria de fulano?" :)
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