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24.11.11

Educação secular, parte 1

Texto de Alain de Botton em “Religião para ateus” (Ed. Intrínseca), tradução de Vitor Paolozzi – Trechos das pgs. 95 a 100. A introdução e os comentários ao final são meus.

Introdução
Neste livro provocativo (e muito corajoso), Alain, que se declara ateu, defende que à sociedade secular têm muito o quê aprender com os aspectos positivos das grandes instituições religiosas. Aspectos esses que podem muito bem sobreviver mesmo quando Deus é deixado de lado. Neste trecho em específico ele faz uma comparação entre a atual educação secular, e a educação cristã...

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Temos familiaridade suficiente com as principais categorias das humanidades, da maneira como são entendidas nas universidades seculares – história, antropologia, literatura e filosofia –, assim como com os tipos de perguntas que aparecem nos exames: Quem foram os carolíngios? Onde surgiu a fenomenologia? O que Emerson queria? Sabemos também que esse esquema deixa os aspectos emocionais de nossas personalidades para se desenvolverem espontaneamente, ou no mínimo de maneira privada, talvez quando estivermos como nossas famílias ou em solitárias caminhadas pelo campo [1].

Em contraste, o cristianismo se ocupa desde o início com nosso lado interior e confuso, declarando que nenhum de nós nasce sabendo como viver; somos, por natureza, frágeis e caprichosos, sem empatia e atormentados por fantasias de onipotência, estando a uma distância enorme da capacidade de reunir até mesmo uma fração do bom senso e da calma que a educação secular toma como ponto de partida para sua pedagogia [2].

O cristianismo está focado em ajudar uma parte de nós que a linguagem secular tem dificuldade até mesmo em nomear, que não é exatamente a inteligência ou a emoção, nem o caráter ou a personalidade, mas outra entidade, ainda mais abstrata, ligada a todas essas de maneira imprecisa e diferenciada delas por uma dimensão ética e transcendental adicional – e à qual podemos nos referir, seguindo a terminologia cristã, como alma. Tem sido a tarefa essencial da máquina pedagógica cristã cultivar, tranquilizar, confortar e guiar nossas almas.

Ao longo da história, o cristianismo se dedicou a longos debates acerca da natureza da alma, especulando como poderia ser sua aparência, onde se localizaria e a melhor forma de educá-la. Na sua origem, os teólogos acreditavam que ela se assemelhava a um bebê em miniatura inserido por Deus na boca de uma criança no momento do nascimento. Na outra extremidade da vida do indivíduo, a hora da morte, o bebê-alma seria, então, expelido pela boca. [...] Uma boa alma era aquela que conseguira encontrar respostas apropriadas para as grandes questões e tensões da existência, uma alma marcada por virtudes pias, como fé, esperança, caridade e amor.

Por mais que possamos discordar da visão do cristianismo com relação àquilo de que nossa alma necessita, é difícil invalidar a provocativa tese subjacente, que não parece ser menos relevante no domínio secular que no religioso – a tese de que temos em nós um núcleo precioso, infantil e vulnerável, que deveríamos nutrir e cuidar ao longo de sua turbulenta jornada pela vida [3].

Por seus próprios padrões, o cristianismo, portanto, não tem escolha senão colocar sua ênfase educacional em questões explícitas: Como podemos viver juntos? Como toleramos os defeitos dos outros? Como aceitar nossas próprias limitações e amainar a raiva? Um grau de didatismo zeloso é mais uma exigência que um insulto. A diferença entre a educação cristã e a secular se revela com particular clareza nos respectivos métodos característicos de instrução: a educação secular fornece aulas, o cristianismo, sermões.

Em termos de intenção, poderíamos dizer que uma se preocupa em transmitir informação, a outra, em mudar nossa vida. Pela própria natureza, os sermões assumem que seus ouvintes estão perdidos, de alguma maneira importante. Os títulos dos sermões de um dos mais famosos pregadores da Inglaterra do século XVIII, John Wesley, já mostram o cristianismo procurando oferecer conselhos práticos a respeito de uma série de desafios comuns da alma: “Sobre seu gentil”, “Sobre manter-se obediente aos pais”, “Sobre visitar os enfermos”, “Sobre a cautela com a intolerância”. Por mais que seja improvável que os sermões de Wesley seduzam ateus por meio de seus conteúdos, eles tiveram sucesso, assim como um bom número de textos cristãos, em categorizar o conhecimento sob títulos úteis.

Ao passo que, a princípio, Matthew Arnold, John Stuart Mill e outros tinham a esperança de que as universidades pudessem fornecer sermões seculares que nos informassem como evitar a intolerância e como encontrar coisas valiosas a dizer ao visitarmos pessoas doentes, esses centros de aprendizado nunca ofereceram o tipo de orientação no qual as igrejas se focaram, a partir de uma crença de que a academia não deveria fazer quaisquer associações entre obras culturais e sofrimentos individuais [4].

Seria uma afronta chocante à etiqueta universitária perguntar o que um livro de literatura [não religiosa] poderia nos ensinar de útil sobre o amor, ou sugerir que os romances de Henry James possam ser lidos como parábolas sobre se manter honesto em um escorregadio mundo mercantil. Contudo, a busca por parábolas é exatamente o que se encontra no núcleo da abordagem dos textos cristãos.

O próprio Wesley era um homem profundamente erudito [...] Ele possuía um grande conhecimento textual de Levítico e Mateus, Coríntios e Lucas, mas citava versos desses apenas quando podiam ser integrados em uma estrutura parabólica e usados para aliviar as tribulações de seus ouvintes. Assim como todos os pregadores cristãos, ele via a cultura principalmente como um instrumento, observando quais regras gerais de conduta cada passagem bíblica poderia exemplificar e promover.

» Na continuação, o Dpto. de Relacionamentos, o Instituto de Morrer e o Centro para o Autoconhecimento :)

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[1] Em entrevista num programa brasileiro, o médico Patch Adams (que é ateu), diz que costuma perguntar as pessoas que encontra: “Qual é sua estratégia de amor para a vida?”. Dentre jornalistas, médicos, cientistas, etc., normalmente ninguém sabe responder...

[2] É que não somos exatamente máquinas que se auto educam pelo mero registro e computação de informações sobre o mundo. No fundo, todos sabemos que somos seres que interpretam informações e têm sentimentos específicos sobre o mundo, que precisam ser encarados, expostos, analisados, “apaziguados”, etc. Embora qualquer educador secular provavelmente já saiba disso, ele raramente saberá como ensinar nesse formato. E, assim então, tudo permanece como está – até que venha a primavera.

[3] Você pode estar agora se perguntando se de Botton é realmente ateu. Sem dúvida: ele chega a dizer que cresceu com a certeza de que Deus não existia. A questão é que de Botton é um grande filósofo e, talvez mesmo por conta disso, um ateu sem preconceitos com as coisas “irracionais”.

[4] Arnold e Mill foram defensores dos objetivos da educação após o Iluminismo. Segundo Arnold a universidade era “um lar para o que melhor foi dito e pensado no mundo”. Para Mill, “o propósito das universidades não é produzir advogados, médicos ou engenheiros competentes. É criar seres humanos capazes e cultos”. E, voltando a Arnold, uma educação cultural deveria inspirar em nós “um amor pelo vizinho, um desejo de acabar com a confusão humana e diminuir sua miséria”. Infelizmente, até hoje a educação secular está algo distante desses objetivos essenciais.

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Crédito da imagem: Hulton-Deutsch Collection/Corbis

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2 comentários:

Anonymous Mariana disse...

Sério, raph, como você chega a esses livros?

Estou terminando agora "O Futuro de Deus" e já vi que vou ter que comprar esse aí também...

Tenha mais consideração com o bolso dos seus leitores, por favor =]

24/11/11 12:50  
Blogger raph disse...

Mariana, eu também não sei... Dessa ves estava na livraria para comprar um livro técnico, só que a prateleira de filosofia tinha esse lançamento (acho que desse mês mesmo) do livro do Alain, que eu já conhecia e adorava...

A boa notícia é que a Intrínseca vende livros a preços justos (ao contrário da grande maioria das editoras do país), e este custa apenas 19,90. Se fosse da Cia. das Letras certamente não sairia por menos que o dobro.

Uma outra boa notícia é que provavelmente vai ler esse livro ainda mais rápido que "O futuro de Deus" :)

Em todo caso são dois achados raros esses dois livros, é difícil achar dois livros tão bons, ainda mais literalmente na sequencia.

Abs
raph

24/11/11 14:17  

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