A Reforma bem explicada
Texto de Geoffrey Blainey em "Uma breve história do cristianismo” (Ed. Fundamento) – trechos das pgs. 217 a 222. Tradução de Capelo Traduções. As notas ao final são minhas.
Como resumir um século e meio de turbulência religiosa que marcou a ascensão do protestantismo? Como tirar conclusões das incontáveis lutas, armadas ou não, da impressão de uma avalanche de textos inflamados, da morte de alguns rebeldes na fogueira ou da santificação de outros, e da reviravolta provocada na vida religiosa de milhões de pessoas, muitas das quais silenciosamente reprovavam as mudanças que eram obrigadas a aceitar? [1]
A distância entre a nossa era e aquela, entre as atitudes de então e de agora diante da morte, é enorme. A morte despertava forte interesse, pois frequentemente interrompia a juventude e chegava de repente, com sofrimento. Assim, as pessoas pareciam mentalmente mais preparadas para ela. Tal como custamos a entender aquele interesse pela morte e pela religião, os antigos provavelmente se espantariam com a nossa fascinação por dinheiro, por bens materiais e por viagens ao exterior com objetivos que não a peregrinação.
[...] A Reforma lançou algumas sementes da democracia moderna, embora sem saber como e quando iriam germinar. Enquanto a tradição católica se baseava na hierarquia – na autoridade dos papas, cardeais e bispos – os protestantes enfatizavam a leitura da Bíblia e o relacionamento do indivíduo com Deus. Os protestantes batizados podiam ser os sacerdotes de si mesmos; não precisavam de padres ou bispos como intermediários em seu contato com Deus [2].
Lutero se referia a isso como “o sacerdócio de todos os crentes”, e seu espírito democrático permeou as seitas protestantes que surgiram depois. Com a Bíblia em linguagem acessível, o protestantismo favorecia o debate e a discussão, que representam o cerne da democracia. Acima de tudo, calvinistas, luteranos, batistas, unitaristas, presbiterianos e outras congregações independentes administravam as próprias igrejas e selecionavam os sacerdotes.
[...] A abordagem democrática teria efeitos surpreendentes, em especial nos Estados Unidos. A Reforma desestimulava o uso do latim, na época o idioma internacional. Assim, proporcionou uma era gloriosa ao inglês, ao alemão e a outros idiomas nacionais. Nesse sentido, houve uma promoção mútua, entre nacionalismo e protestantismo. As mudanças religiosas promoveram também a educação. Lutero, Zuínglio e Calvino – saídos de três universidades diferentes – acreditavam que todos devem saber ler, e que a Bíblia é leitura obrigatória. “Estou profundamente comovido”, Lutero escreveu em 1530, ao saber que tantos alemães liam a Bíblia.
Os católicos reagiram, e começaram a promover com mais vigor a educação. No decorrer dos três séculos seguintes, porém, talvez nenhum país católico tenha alcançado o nível de alfabetização dos países protestantes. O surgimento da democracia popular, na segunda metade do século 19, dependia da disseminação do conhecimento [3].
[...] Os cerca de 125 anos seguintes ao surgimento da Reforma foram um período de graves conflitos em boa parte da Europa. “Guerras religiosas” é um rótulo bastante comum para o que aconteceu então. Na verdade, o sentimento religioso intensificou muitas batalhas, além de desestimular a ideia de qualquer acordo durante as negociações de paz, mas seria injusto apontar a Reforma como fator decisivo para as guerras. O período de violência começou com disputas entre monarcas católicos, não motivadas pela religião; eles estavam preocupados demais com as próprias guerras, para dedicar muita energia à anulação do movimento protestante [4].
O longo período de guerras intermitentes foi afetado também pelo surgimento de novas armas. O canhão e o mosquete tornaram as guerras ainda mais mortais e os monarcas, mais poderosos. Eles, e não os reformadores religiosos, planejavam, financiavam e orientavam a maior parte das guerras. Os estudiosos que hoje se dedicam ao assunto não consideram a hostilidade religiosa como a causa principal das guerras na Europa; segundo eles, a religião pode ter sido “um disfarce para outros motivos”. A ser mantido o rótulo “guerras religiosas”, seria apropriado chamar a Segunda Guerra Mundial, com sua base ateísta e o enorme número de vítimas, de “guerra da descrença”. A rotulagem simplista de grandes eventos mais complica do que explica.
Religião não era uma questão de escolha, mas de obrigação. [...] Em parte, os governantes [de países protestantes] exigiam unidade social e religiosa por acreditarem que o território ficaria mais seguro. Era crença geral um reino ou uma república tornarem-se alvos fáceis, se não tivessem coesão religiosa.
Um aspecto que nos intriga atualmente é o fato de a tolerância não figurar, naquela época, como objetivo no universo de cristãos, hindus, budistas, chineses, astecas ou incas. A ampla tolerância religiosa é quase uma invenção dos tempos modernos [5] – praticamente impensável, séculos atrás. O importante era sustentar a visão religiosa apropriada, e não a liberdade de rejeitá-la. O direito de desobedecer ao governo e à Igreja, o direito de ser livre em matéria de consciência, são preceitos que surgiram muito lentamente, depois das fortes tensões provocadas pela Reforma [6].
A mais ousada tentativa de liberdade religiosa foi feita na Holanda, [...] que era o país mais próspero da Europa, abrigando um notável cadeia de postos comerciais que se estendia de Nova York – então chamada Nova Amsterdã – a portos distantes, como Jacarta e Malaca, no sudeste da Ásia. [...] Em Amsterdã, então a cidade com o maior número de habitantes judeus da Europa ocidental – muitos expulsos de Portugal – as sinagogas se multiplicaram.
Por algum tempo, Maryland e Rhode Island talvez tenham sido os locais mais tolerantes de todas as regiões onde se falava inglês. Em 1634, os primeiros colonizadores britânicos aportaram em Maryland, e 15 anos depois uma lei local concedia liberdade religiosa a todas as denominações cristãs, embora os judeus não estivessem formalmente incluídos [7]. [...] Com ou sem intenção, os provocadores da Reforma lançaram a pedra fundamental da tolerância religiosa.
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[1] Um dos motivos do sucesso de Blainey em sua série de livros sobre história (vários deles, best-sellers mundo afora), em minha opinião, é a sua humildade em expor a história de um ponto de vista de quem, como nós, já não vive mais nas épocas citadas – e não pretender expor a história “como foi”, mas sim “como a interpretamos atualmente”. O outro motivo é que ele simplesmente escreve muito bem.
[2] Quanta distância entre os protestantes originais e os de hoje em dia!
[3] A despeito do que são e do que foram os protestantes, dificilmente os seus críticos se lembram, atualmente, que a nossa educação secular deve, e muito, ao fogo iniciado por Lutero.
[4] Grosso modo, toda e qualquer guerra entre nações jamais foi iniciada propriamente por um “conflito religioso ou doutrinário”, e sim pela pura e simples disputa por riquezas e territórios. Mas muitos “historiadores” não gostariam que você pensasse dessa forma, e para eles (ao contrário de Blainey), o termo “guerra religiosa” pode fazer todo o sentido do mundo.
[5] Eu diria: uma conquista da evolução da consciência humana.
[6] E, mais uma vez, qual o ateu atual que lembra de que foi Lutero quem iniciou esta divina chama de liberdade?
[7] O próprio sonho americano partia desse pressuposto de liberdade. Nalgum dia distante, os Estados Unidos já foram vistos como a terra da tolerância e da liberdade de pensamento, e foi exatamente por isso que atraíram tantas grandes mentes, que colaboraram (e muito) para a construção da potência econômica que o país veio a se tornar no final do século XX.
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Crédito da imagem: F.W. Wehle/Corbis ("Lutero em seu estudo")
Marcadores: autores selecionados, autores selecionados (111-120), cristianismo, ecumenismo, educação, Geoffrey Blainey, guerra, história, liberdade, protestantismo
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