Madiba!
Quando Nelson Rolihlahla Mandela chegou a Joanesburgo, aos 23 anos, não trazia muito mais do que a roupa do corpo e sua alma nobre, também por nascimento: Rolihlahla era da nobreza do clã dos Madiba, do povo Thembu, e veio ao mundo numa pequena aldeia do interior da África do Sul, onde se vivia do mesmo jeito há centenas de anos. Rolihlahla queria mudança, queria novos ares, queria conhecer o mundo e os seres a sua volta. No fim, foi à alma de Mandela que prevaleceu.
Foi ainda criança que ganhou seu primeiro nome, Nelson. Estudava numa escola primária com um único cômodo, teto de zinco e chão e terra. Uma de suas professoras seguiu o costume de dar nomes ingleses a todas as crianças de etnias locais que frequentavam a escola. Mandela não se importou: não havia nada de errado em usar um nome inglês, acreditou que aquilo serviria para facilitar seu convívio com eles...
Mas não foi o que viu na cidade grande. Tornou-se advogado e um dos líderes da juventude negra que protestava de forma não violenta contra o apartheid, um vergonhoso sistema oficial de segregação racial implementado pelo governo sul-africano, que veio a ser abolido somente muito tardiamente (se comparado com outros países onde havia segregação amparada pela lei), já em 1994. Como devem saber, Mandela foi vital neste processo.
No entanto, nada ocorre da noite para o dia, e concepções arraigadas em sociedades, particularmente nas elites dominantes das sociedades, demoram muito tempo para desaparecer. Na realidade, não fosse pela pressão do resto do mundo, Mandela dificilmente teria saído ainda vivo da cadeia onde passou 27 anos. Tampouco foi algum santo: caiu na tentação de descambar para uma espécie de guerrilha armada contra o apartheid, embora a princípio houvesse participado apenas em alguns planos terroristas de ataques com bombas a alvos não humanos, como antenas de rádio e TV, e torres transmissoras de energia elétrica. No fim, talvez a prisão o tenha salvado de haver morrido bem mais jovem, quem sabe com uma arma na mão...
Mas 27 anos tampouco passam da noite para o dia. Enquanto permaneceu enclausurado numa pequena cela, sem acesso a informações do mundo exterior, teve todo o tempo do mundo para avaliar qual seria a melhor forma de continuar em sua luta contra a segregação. Do lado de fora, por todos os cantos da África do Sul, a juventude negra, pobre em quase sua totalidade, continuava a se revoltar cada vez mais. Elegeram Winnie, então esposa de Mandela, como sua representante direta – “Madiba! Madiba!” era seu grito de guerra... Muitos morreram em conflitos com a polícia, mas Mandela continuava encarcerado, e a violência só aumentava.
Com o passar das décadas, o governo segregacionista começou a temer por sua própria segurança. No fundo, o apartheid foi implementado como forma de manter a cultura dos colonizadores europeus viva numa terra estranha, conquistada pela força das armas, e não da diplomacia. Agora, eles temiam não somente pelo fim de sua cultura, mas pelo fim de toda a sua sociedade, pois que sempre existiriam mais negros do que brancos naquela terra: eles viveram ali por muitos milhares de anos, os brancos eram recém-chegados.
Dizem que, mesmo preso, Mandela sempre manteve sua “aura” de nobreza. Uma nobreza antiga, tribal, ancestral, do tipo que nem mesmo décadas de prisão é capaz de apagar. Quando Mandela era escoltado para o pátio fora da cela, eram os guardas que seguiam seu ritmo de caminhada, e não o contrário. Uma vez, disse a um jornalista que o visitara por lá: “Bom dia, esta é a minha guarda pessoal”. O chefe carcerário confessou que seu maior medo era ter de dar a notícia ao governo de que Mandela havia falecido na prisão. Aquilo seria o fim da África do Sul, disto ninguém tinha dúvidas, ao menos entre os brancos...
Mas Mandela venceu pela força de sua alma, e sua habilidosa diplomacia. Através de anos de negociações diretas com os governantes do apartheid, inclusive tendo encontrado presidentes pessoalmente, em escoltas secretas para fora de sua prisão, um dia finalmente aconteceu: em 11 de fevereiro de 1990 Mandela é solto. Caminhou pela porta da frente da prisão, de mãos dadas com Winnie. Do lado de fora, não somente negros, como uma boa parcela de brancos, o saudavam entusiasmados. Aquela altura, Mandela era um cidadão do mundo.
Em 1994, Mandela é eleito presidente da África do Sul com 62% dos votos. Como seu vice-presidente, de Klerk, o último presidente do apartheid, e uma espécie de “garantia” de que Mandela não queria “usurpar o poder dos brancos”. Mas foi somente cerca de um ano depois de assumir a presidência, em 1995, já com quase 80 anos, que Mandela finalmente sacramenta sua missão...
No campeonato mundial de rúgbi de 1995, realizado na África do Sul, o time nacional tinha poucas chances de avançar na competição. O rúgbi era um esporte herdado da cultura branca, colonizadora, e nunca havia tido popularidade alguma entre os negros... Mas o time avançou, e Mandela viu ali uma oportunidade de ouro. Viu ali uma chance de, finalmente, promover uma união de culturas, algo que iria tornar a África do Sul uma nação de verdade, pois que toda a verdadeira nação é feita de irmãos, de cultura em comum.
Seu time chegou a final e, quando Madela entrou, uniformizado, para os saudar no estádio antes do início da partida, foi uma grande maioria branca que gritou nas arquibancadas: “Nelson! Nelson!” era seu grito de guerra... O time da África do Sul venceu aquele campeonato. Pelas ruas de boa parte do país, negros e brancos comemoravam. Não comemoravam juntos, quem sabe, mas este era apenas o início... O início de uma nova era. “Madiba” ou “Nelson”, tanto faz: ele cumpriu sua missão [1].
***
Morgan Freeman é um excelente e conhecido ator americano que se parece muito com Mandela fisicamente. Foi ele quem o representou no filme Invictus, que conta esta extraordinária história do campeonato mundial de rúgbi de 1995. Em entrevistas, Morgan é às vezes polêmico, por exemplo, ao defender que “o dia da consciência negra é uma ideia ridícula”. Segundo ele, não existe um dia da consciência branca, e, portanto, não faz sentido haver um dia reservado para a consciência negra. Para Morgan, todos os dias são dias da consciência: a consciência humana.
Polêmicas a parte [2], hoje sabemos, pela ciência, que não existem brancos e negros, ou índios e japoneses, etc. Todos temos o mesmo sangue e a mesma raça, o que varia são apenas pequenas características físicas que nunca seriam capazes de determinar que “esta raça tem alma, aquela não tem”, nem que “esta raça tem mais inteligência, aquela tem menos”. Também sabemos, por teorias científicas bastante contundentes, que o homo sapiens surgiu na África, que Adão e Eva habitaram alguma região selvagem do sul ou da região central deste continente, e que, portanto, todos somos os ancestrais das antigos tribos africanas.
No fim, todos somos da mesma tribo de Rolihlahla. Uma só tribo, um só mundo. É hora de compreendermos este fato, pois que não há mais muito tempo para essas brigas idiotas entre nós. A Natureza dá o alarme, os mensageiros orientam. Obrigado, Madiba, pela orientação. Obrigado por tudo!
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[1] Recomendo o excelente documentário The long walk of Nelson Madela, sobre sua história de vida (infelizmente, apenas em inglês).
[2] É claro que aqueles que lutaram pela instauração de “dias da consciência negra” tinham a melhor das intenções. Mas fato é que, pela lógica, é estranho que exista um “dia da consciência” apenas para negros, e não para os demais seres humanos com outros níveis de melanina na pele. Tanto quanto é estranho que haja um “dia da mulher”, enquanto não existe um “dia do homem”, etc.
Crédito das imagens: [topo] MAISANT Ludovic/Hemis/Corbis (cerâmica do rosto de Madela jovem, no Soweto Hotel, Joanesburgo); [ao longo] Divulgação (Invictus)
Marcadores: África, apartheid, artigos, artigos (191-200), esportes, história, Morgan Freeman, Nelson Mandela, racismo
2 comentários:
Lindo, Raph. Veja que curioso: o Morgan Freeman fez um filme sobre UM episódio envolvendo o Mandela. Agora imagine a responsa que não deve ter de ter um ator que vai fazer um filme SOBRE A VIDA dele...
Abraço, amigo!
Pois é, mas ainda acho que teria de ser o Morgan Freeman de novo, hehe, os dois são quase irmãos gêmeos :)
Abs!
raph
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