O ornitólogo confuso
O ponto de partida para a compreensão da filosofia de Arthur Schopenhauer é o conceito de representação.
Representação, em sua obra, é a atividade fisiológica que ocorre no cérebro de um ser humano (ou outro animal) ao fim da qual temos a formulação de uma imagem percebida pelo sujeito. A representação é uma tradução que nossos sentidos fazem a partir de informações advindas do “mundo exterior” – portanto, o mundo que percebemos se trata de uma construção mental.
Até aqui nem mesmo os materialistas eliminativos discordariam dele, pois, mesmo crendo que “a subjetividade é uma mera ilusão cerebral”, ainda assim devem crer que esta “ilusão” também faz parte de uma construção mental (embora no caso deles o termo “construção mental” queira dizer, sempre, “construção cerebral”).
Em sua obra prima, O mundo como vontade e representação, o filósofo alemão inicia seu argumento contra o materialismo eliminativo com um elogio aparente a filosofia objetiva, que “parte do objeto (no mundo exterior)” para “compreender o todo”:
A filosofia objetiva, quando se apresenta sob a forma do materialismo puro, é aquela cujo desenvolvimento pode ser mais completo. Este sistema coloca antes de tudo a existência absoluta da matéria, e por consequência a do espaço de do tempo, suprimindo assim a relação da matéria com o sujeito, relação essa da qual, não obstante, a matéria tira sua única realidade.
Depois, apoiado na lei da causalidade, que toma por uma ordem de coisas em si, prossegue a sua marcha, saltando sobre o entendimento, no qual e pelo qual apenas a causalidade existe. Feito isso, procura descobrir um estado primitivo e elementar da matéria de onde possa tirar, através de um desenvolvimento progressivo, todos os outros estados, desde as propriedades mecânicas e químicas até a polaridade, a vida vegetativa e por fim a animalidade. [...] O último elo da cadeia será a sensibilidade animal, ou o conhecimento, que aparecerá assim como uma simples modificação da matéria, produzida em consequência da causalidade. [1]
Mas a esta aparente exaltação da capacidade da filosofia objetiva “explicar a tudo”, se segue um choque de realidade profundamente filosófico:
Admitamos que pudéssemos seguir até o fim e com o testemunho das representações intuitivas da explicação materialista; uma vez chegados ao topo, seríamos subitamente tomados desse riso inextinguível dos deuses do Olimpo, quando, despertando de um sonho, fizéssemos, de repente, essa descoberta inesperada: que o último resultado tão penosamente adquirido, o conhecimento, estava já implicitamente contido no dado primeiro do sistema, a simples matéria; assim, quando, como no materialismo, nos imaginávamos a pensar a matéria, o que pensávamos na realidade era o sujeito que a representa para si, o olho que a percebe, a mão que a toca, o espírito que a conhece. [1]
Parece um problema e tanto a ser resolvido pela filosofia objetiva!
Não é a toa que os materialistas eliminativos pretendem, como o nome já indica, “eliminar o sujeito”. Não é a toa que eles tendem a ver a vida humana e um “futuro computador com capacidade de processamento suficiente” como uma mesma coisa, uma “coisa que somente computa informações”, pois que toda a interpretação é e sempre foi mera ilusão. Parece uma via radical demais a ser seguida, mas há declarações como esta, do arqueólogo Peter Watson, que indicam que realmente existem aqueles que a seguem a risca:
As ciências sociais, psicológicas e cognitivas permanecem enlatadas em palavras e conceitos pré-científicos. Para muitos de nós, a palavra “alma” é tão obsoleta quanto “flogístico”, mas os cientistas ainda usam palavras imprecisas como “consciência”, “personalidade” e “ego”, para não falar em “mente”. Talvez seja hora de, pelo menos na ciência, remodelar “imaginação” e “introspecção”, ou, de preferência, retirá-las. Os artistas ainda podem divertir-se com esses conceitos, mas os assuntos mundiais sérios já seguiram em frente. [2]
Faz sentido eliminarmos o termo “imaginação” de um dicionário materialista, mas o mero fato do termo haver sido eliminado significa, por si só, que a capacidade humana de imaginar também deixou de existir? Pois bem, é mais ou menos por esta via que Schopenhauer prossegue em seu argumento:
Ora, esta suposta realidade objetiva é um dado puramente indireto e condicionado; ela tem apenas uma existência completamente relativa: a coisa [o objeto], com efeito, deve passar primeiro pelo mecanismo do cérebro e ser transmitida por ele, entrar em seguida nas formas do entendimento – tempo, espaço, causalidade – antes de aparecer, graças a esta última elaboração, como extensa no espaço e ativa no tempo.
[...] A esta afirmação, de que o pensamento é uma modificação da matéria, será sempre permitido opor a afirmação contrária: de que a matéria é um simples modo do sujeito pensante. Em outras palavras, uma pura representação. [1]
Assim podemos representar esta busca pela explicação definitiva do mundo que parte da matéria, do objeto externo, com uma alegoria:
Havia um ornitólogo, isto é, um biólogo que estuda espécies de pássaros, que ouviu falar de uma ave muito rara, de uma beleza tão impactante que muitos que a comtemplaram mal a souberam descrever em palavras. Como cético em relação a meros boatos, porém extremamente curioso em relação à Natureza, o ornitólogo decidiu sair numa busca para descobrir se, afinal, tal ave existia realmente.
Colocou seu longo chapéu de caçador, buscou sua maleta cheia de apetrechos científicos, vestiu suas galochas e seguiu em sua jornada investigativa. Por dias, meses, anos, encontrou apenas restos de ninhos abandonados, pegadas suspeitas e boatos, muitos boatos!
Porém, quando estava quase desistindo e dada por encerrada a busca, achou no quintal de sua casa uma pena de ave longa, quase perfeitamente simétrica, de cores indescritíveis, algo que nunca havia visto antes... Pensou, “Só pode ser ela, a ave rara! Será que era ela quem estava me observando todo este tempo?”.
E foi então que, assim tão confuso, o ornitólogo entrou em casa e viu, pelo reflexo fugidio do espelho em seu escritório, uma ave que reduzia a beleza de todos os demais animais a uma nota de rodapé. E, assim que eles se encararam, face a face, por um momento tão breve quanto eterno, ela voou pela janela e desapareceu.
Neste momento o ornitólogo compreendeu que o que ele buscava estava, todo o tempo, bem ao seu lado. E dali em diante ele passou a pesquisar aves ainda mais raras, desta vez no único campo onde todas elas existem sempre – lá dentro...
***
[1] Trechos das págs. 34 a 36 de O mundo como vontade e representação (Ed. Contraponto), na tradução de M. F. Sá Correia.
[2] Peter Watson: Not Written in Stone, New Scientist, 29/08/2005.
» Leia também: A singularidade filosófica
Foto encontrada em : Google Image Search (Arthur Schopenhauer)
Marcadores: artigos, artigos (211-220), filosofia, materialismo, psicologia, Schopenhauer
2 comentários:
Bacana... Já tinha um tempo que aceitei a ideia de que "a realidade" é pessoal, exatamente porque ninguém tem certeza de nada: só sabemos o que nossos sentidos percebem, o que a nossa mente imagina, cria, interpreta. A minha interpretação da mesa oriunda da minha visão, tato e outros sentidos estão limitadas a esses sentidos e a minha forma de interpretação. Dizemos que uma mesa é assim somente porque o senso comum diz ser, porque a maioria assim a percebe, mas desse modo confiamos totalmente em nossos sentidos animais que podem ser falhos. O universo, desta forma, é pessoal, cada ser é um o universo particular e a "realidade" é apenas um senso comum da maioria.
A princípio foi meio angustiante pensar assim, mas depois de um tempo você percebe que "não há lá fora" nem "aqui dentro", que tudo se entrecruza, se embaralha, como numa teia infinita na qual cada pedaço é um reflexo da teia total, um fractal infinito se expandindo em todas as direções. Isso, ao menos comigo, me levou a me preocupar mais com a experiência em si que ao seu sentido ou uma finalidade. A mente sempre dá um sentido ou uma finalidade depois, que vai mudando a cada nova reflexão da experiência mesmo... rs
"A princípio foi meio angustiante pensar assim, mas depois de um tempo você percebe que "não há lá fora" nem "aqui dentro", que tudo se entrecruza, se embaralha, como numa teia infinita na qual cada pedaço é um reflexo da teia total, um fractal infinito se expandindo em todas as direções."
A Teia de Indra, a teia que tece o Céu :)
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home