Entre a esquerda e a direita: os comentários (parte 2)
O duelo dos bois
Todo final de junho o Bumbódromo de Parintins, no Amazonas, recebe um dos maiores espetáculos de cultura popular do Brasil. É assim desde os idos de 1965, quando alguns jovens católicos organizaram o primeiro Festival Folclórico de Parintins, onde 22 quadrilhas se apresentaram, junto com os dois bois, o Caprichoso e o Garantido. Mas foi somente no ano seguinte que começou a disputa anual entre os bois: afinal, era preciso saber qual boi havia realizado o desfile mais bonito, e “vencido” a festa.
E assim é até hoje... No entanto, em 1982 ocorreu o impensável – o boi Caprichoso, em protesto contra as notas recebidas no ano anterior, se recusou a participar da festa, e foi substituído pelo boi Campineiro. Conforme o previsto, naquele ano o Garantido venceu facilmente a disputa. De lá para cá, isso felizmente nunca mais aconteceu. Ocorre algo curioso com o duelo dos bois de Parintins: embora todos amem o seu boi e odeiem o boi adversário, a verdade é que, sem o adversário, não haveria festa alguma!
Esta lógica dualista, longe de ser uma curiosidade cultural ou esportiva, é algo muito mais antigo e profundo... Segundo o taoísmo, não há nada que possa ser anterior ao Tao, uma coisa misteriosa que deu origem a tudo o que há. Entretanto, o primeiro conceito que advém do Tao, aquele que permite que nossa razão compreenda alguma coisa, é exatamente o conceito da dualidade, do yin e yang.
Segundo a ideia que engloba tanto yin quanto yang, cada ser, objeto ou pensamento possui um complemento do qual depende para a sua existência, e esse complemento também existe dentro de si. Dessa forma se deduz que nada existe no estado puro: nem na atividade absoluta, nem na passividade absoluta, mas sim em transformação contínua. Além disso, qualquer ideia pode ser vista como seu oposto quando visualizada a partir de outro ponto de vista. Neste sentido, toda a categorização seria apenas uma conveniência da lógica...
Tudo bem, mas e o que todo esse papo de bois e energias complementares tem a ver, afinal, com a Política? Bem, talvez não muito pela superfície, mas certamente pelas profundezas – afinal, assim como o yin e o yang, e assim como o Caprichoso e o Garantido, esquerda e direita são tão somente referências para organizar o pensamento, e categorizar e organizar algumas ideias. Neste sentido, tanto a direita quanto a esquerda são vitais para a Política: elas não existem para serem “vencidas”, mas existem para que a própria Política seja possível.
Afinal, pensem bem, se só existisse a esquerda, ou a direita, como exatamente saberíamos diferenciar uma vertente política da outra, como saberíamos dizer a diferença entre um e outro partido? Seria o mesmo que uma festa no Bumbódromo onde somente um boi saísse vencedor todo ano. O nome dele? Tanto faz...
Tais dualidades tocam a essência da própria filosofia. Não são poucos os casos de filósofos que se tornaram célebres exatamente por se opor as ideias de outros pensadores famosos que lhes precederam. A própria origem do embate entre esquerda e direita, segundo muitos analistas, remete a uma época anterior a própria Revolução Francesa.
Thomas Hobbes e Jacques Rousseau jamais se encontraram pessoalmente, pois o primeiro morreu pouco mais de 30 anos antes do nascimento do último, e ainda assim, suas ideias se encontram em choque até os dias atuais. Para Hobbes, o estado natural do ser humano é um estado de guerra, violência e conflito. O filósofo inglês defendia a necessidade da existência de um grande governo soberano, um monarca poderoso capaz de, pela força, garantir a ordem do Estado, para que os pequenos grupos opostos não entrassem em guerra e trouxessem o caos; algo que, segundo sua filosofia, seria certamente inevitável em cenários de “vácuo de poder”. Já Rousseau acreditava que o que determinava o poder de um monarca era tão somente o sistema estabelecido, mas discordava veementemente que este soberano representaria efetivamente "o maior poder". Para o pensador suíço, tal poder adivinha da maioria dos cidadãos, e somente uma democracia plena seria capaz de estabelecer os alicerces para um mundo mais pacífico e feliz.
Em suma, Hobbes acreditava que o homem era caótico por natureza, e precisava ceder parte de sua liberdade se quisesse viver num Estado seguro. Rousseau, pelo contrário, acreditava que o homem era bom por natureza, e era exatamente o atual sistema, que regulava a sociedade da época, aquilo que o corrompia. Hobbes favorecia a segurança sobre a liberdade. Rousseau acreditava que a liberdade plena garantiria, por si só, um mundo mais seguro.
Assim, poderíamos quem sabe, dizer que Hobbes era o “conservador”, e Rousseau o “progressista”. Um não acreditava que grandes revoluções sociais favoreceriam a vida em sociedade, o outro clamava ardentemente pela revolução, e assim vai... Independente da preferência por um ou outro pensamento, é importante frisar que tanto Hobbes quanto Rousseau queriam o melhor para a humanidade. O embate de suas ideias, desta forma, não deveria ser compreendido como um duelo “do bem contra o mal”, seja onde rotulemos um ou o outro. Rotular ideologias como “boas” ou “más” talvez seja, até hoje, o maior equívoco do debate político.
De fato, seria simples dizer que Rousseau venceu a disputa, e que hoje a maior parte da humanidade vive em democracias plenas, livre dos monarcas e dos estados totalitários. Seria simples rotular as ideias de Rousseau como “as ideias boas”. Mas, a verdade é que não é tão simples, nunca é.
Vivemos efetivamente numa democracia plena, onde vale a máxima “uma pessoa, um voto”? Favorecemos realmente a liberdade acima da segurança, e conseguimos, assim, preservar a nossa privacidade? A defesa dos estados totalitários é, de fato, algo que já se perdeu no passado? Para começarmos a analisar tais questões, talvez a dualidade “esquerda e direita” já não seja suficiente – talvez precisemos usar outros eixos, e diagramas!
Em defesa da liberdade
David Nolan foi um ativista político norte-americano, grande defensor do libertarianismo. Nolan acreditava que a dualidade “esquerda e direita” era incapaz de abranger todo o espectro do pensamento político de um indivíduo, e foi assim que criou o famoso Diagrama de Nolan, onde temos, além do eixo “esquerda e direita”, um novo eixo onde os indivíduos podem defender a “liberdade” ou o “totalitarismo”.
Na prática, que o seu Diagrama faz é associar a ideia de “liberdade individual” a “esquerda”, e a ideia de “liberdade econômica” a “direita”. Há muitos esquerdistas que podem chegar a conclusão de que tudo o que Nolan pretendeu com seu Diagrama foi colocar o libertarianismo “no melhor dos mundos”. De fato, provavelmente foi isso mesmo, mas ainda assim o seu Diagrama, que é também uma espécie de “teste ideológico”, tem como grande virtude a capacidade de nos fazer enxergar as vertentes políticas como algo muito mais diverso e complexo do que “o preto no branco” ou “o bem versus o mal”.
Poderíamos, por exemplo, tentar situar as duas potências mundiais em seu Diagrama: EUA e China. Diríamos, então, que nos EUA há tanto liberdade econômica (baixa intervenção do Estado no Mercado) quanto individual (democracia plena, ausência de censura governamental etc.). Já na China teríamos algo como o oposto – baixa liberdade econômica (grande intervenção do Estado no Mercado) e individual (não há eleições diretas para a presidência, buscas na internet são censuradas etc.). Muito bem, ainda que o cenário fosse assim, tão “preto no branco”, fato é que os dois sistemas parecem funcionar muito bem, afinal estamos falando das duas maiores economias do globo.
Abaixo da superfície e das aparências, no entanto, podemos encontrar “sinais opostos” em ambos os casos: graças a Edward Snowden, “desertor” da grande agência de espionagem norte-americana, sabemos hoje que os olhos virtuais dos EUA representam uma grande ameaça a privacidade online global. Na China, já sabíamos que isso ocorria. Nos EUA, descobrimos há pouco tempo. Da mesma forma, o próprio gigante asiático, a despeito de continuar em teoria sendo um Estado comunista, é hoje a grande locomotiva do capitalismo global. Certamente há uma incômoda ironia no fato de uma das empresas de ponta da tecnologia mundial, a Apple, delegar boa parte do trabalho de montagem dos seus gadgets a trabalhadores chineses que, para dizer o mínimo, carecem dos mais básicos direitos trabalhistas, e por isso mesmo são baratos, muito baratos...
No fim das contas, todo esse jogo de desfiles de bois e construção de diagramas é absolutamente incapaz de abranger todas as ideias políticas que desfilam pelo mundo. Diz-se que na democracia o convívio de tais ideias, assim como o surgimento de ideias novas, é o grande objetivo da Política. Mas, e quando algumas ideias têm mais “poder de barganha” do que outras? E quando as ideologias são compradas, e a democracia se torna nada mais do que um “grande negócio”? Será que o pior totalitarismo é aquele que se percebe a olhos vistos, como um grande Leviatã, ou será que há formas ainda piores de represamento das ideias, e bem mais sorrateiras?
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Crédito da foto: O bom daqui/Divulgação
Marcadores: David Nolan, economia, Entre a esquerda e a direita, filosofia, Hobbes, política, Rousseau, Tao Te Ching
5 comentários:
Estados Unidos deixou e ser exemplo de liberalismo há bastante tempo, práticas de intervenção governamental como espionagem não condiz com a filosofia libertária,nem a guerra, aqui está o ranking de liberdade econômica http://www.heritage.org/index/ranking e podemos ver que os EUA não são o exemplo de capitalismo e sim um território autônomo CHINÊS, Hong Kong, fico contente em finalmente ver o liberalismo ser comentando entre iniciados. A China de hoje é um exemplo de Capitalismo de Estado, não de comunismo, se olhar o ranking o Brasil está quase no mesmo patamar que a China, um bom parâmetro seria Hong Kong com Coreia do norte, ou Cuba, venezuela esta quase lá.
Democracia não é justiça, é apenas um sistema de escolha podendo virar até tirania, pois é a ditadura da maioria. O que pode frear a interferência do coletivo(ESTADO)na vida do indivíduo, é usar os direitos Naturais que são a vida, propriedade e liberdade, como limite para que o coletivo não passe em cima do indivíduo para alcançar algum fim, utilizando o indivíduo como meio. Quem acredita em livre arbítrio, deve acreditar que o indivíduo sabe o que é melhor para si, e não o Estado. No capitalismo de livre mercado, os políticos possuem pouco ou nada de poder sobre a vida do individuo, já no socialismo o político possui muito poder, quase como um Deus na terra, e não digo comunismo pois comunismo é utopia, como uma sociedade com estado onipresente vai passar para uma sociedade sem estado? se contradizem. Poder corrompe como é visto na política brasileira, mas corrompe pois há muito dinheiro envolvido e protecionismo a grandes empresas(corporativismo) que usam os políticos para barrar empresas de realizar negócios que poderiam ser muito benéficos aos consumidores aqui. Bem não pretendo me estender demais aqui, recomendo o Livro de Ludwig Von Misses "seis lições" para ter uma ideia de liberalismo.
Olá raph,
Tinha andado meio sumido por aqui então resolvi dar uma passadinha e fazer um comentário, mas, o comentário acima do senhor anônimo já fecha minha cota por hoje hauahuahuah.
Esse eixos são bem complicados de se definir mesmo. Mas creio que servem para simplificar um pouco as coisas para nós, servindo como parâmetros. Por exemplo, um Estado intervindo na economia também significa menos liberdade individual, já que a vontade e dinâmica do indivíduo é suprimida pela autoridade do Estado dizendo o que ele deve produzir e como e etc...
Por curiosidade, onde caiu seu pontinho no diagrama dele Raph? =)
Abraços
Oi Gustavo,
Acredito que eu fique entre a Esquerda e o Centro, não sendo nem Estatista nem Libertário (no teste em si deu +/- isso, com 80% Liberdade civil e 20% Liberdade econômica, mas acho que o teste tem muito poucas perguntas).
Deve dar para notar que o meu modelo ideal é o escandinavo, então é bem por aí: social democracia e centro-esquerda.
Abs
raph
Realmente, muito poucas as perguntas. Você sabe me dizer se esse teste que rola na net é um formato resumido ou é completo mesmo?
Não sei, mas eu diria que bem provavelmente é algo resumido...
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