A filosofia para viver bem (parte 3)
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3. O homem encontra Deus
Se Montaigne, assim como os céticos, se sentia a vontade com um mundo estranho, do qual não podemos saber tudo sobre ele, que está sempre a nos surpreender com algo novo, não podemos dizer o mesmo de René Descartes.
Em suas meditações, Descartes partiu do ceticismo. A dúvida era o seu método. Questionou absolutamente tudo para saber o que poderia ser realidade e o que era falso.
Após duvidar de todas as verdades, chegou a uma conclusão: ainda que ele duvidasse de tudo, não poderia duvidar dele mesmo enquanto aquele que duvida. Daí “penso, logo existo”.
É deste modo que levando a dúvida até suas últimas consequências, Descartes chega num ponto de certeza, um critério confiável para a verdade. Se eu penso sobre o mundo, posso até duvidar que meus pensamentos sobre o mundo sejam falsos ou verdadeiros, mas não há dúvida que eu de fato os pense. Voilà, a consciência.
Claro que Descartes não passou sem críticas. Leibniz criticou o pensamento cartesiano como circular, não havendo uma demonstração real de uma certeza. O “eu” conduz ao “penso”, e vice-versa. Já Nietzsche percebeu em Descartes uma série de pressupostos como “eu” e “pensamento” dos quais eles também podem ser colocados em dúvida, e, portanto, não há a menor certeza de suas existências. Bertrand Russell disse que Descartes pode objetar no máximo que existe pensamento, mas jamais que o pensamento é produto do eu.
De qualquer modo, somos cartesianos. O pensamento de Descartes foi fundamental para a Modernidade. A partir de então, não somos mais guiados por critérios externos de verdade como no Mundo Antigo – o mundo ou os deuses – mas referidos à subjetividade e a consciência.
É curioso, no entanto, que Descartes em algum momento precisou apelar para Deus para sustentar seu pensamento.
Afinal, como não imaginar que a verdade talvez seja um engano criado por um gênio maligno que queira nos dissimular?
Descartes responde: se há o imperfeito, é porque há o perfeito. Caso contrário, não haveria sentido supor uma perfeição. E Descartes supostamente já havia chegado num conhecimento perfeito para a consciência: penso, logo existo.
Deus é a própria perfeição, externo ao próprio mundo, mas que garante sua existência ainda que imperfeita. O pensamento não poderia existir se não existisse um Deus que o garantisse, e não um gênio maligno tentando nos enganar sobre isso.
Ou seja, se há verdade, há Deus.
A filosofia sempre esteve às voltas com o problema de Deus, mas nunca conseguiu se livrar Dele. Não faltaram tentativas.
Mesmo um pensador como Spinoza – cujo objetivo era erradicar toda transcendência e afirmar um mundo de imanência absoluta, em que não há outra coisa senão tudo o que há e podemos ver/sentir – chegou a uma ideia de Deus. Claro que o pateísmo de Spinoza se diferencia da visão dos religiosos ortodoxos sobre Deus, em que Ele existe enquanto entidade pessoal.
O Deus de Spinoza é imanente. Nós e Ele somos Um só. O Universo e Ele também. Nós e todas as coisas somos a mesma coisa, e não há um mais-além da realidade do Um. Ou seja, não há espaço na filosofia imanente para a transcendência de Deus que Descartes imaginou.
E Spinoza chega a Deus justamente porque não era possível chegar a qualquer outra coisa.
Não. Eu não estou falando que Deus existe.
Estou dizendo que há um ponto de absurdo em que a própria realidade não faz sentido se não cedermos dos questionamentos, do ceticismo. Tal como fizeram Descartes ou Spinoza. Precisamos inevitavelmente tomar algo a priori como infalível e disso tirar todas as conclusões consequentes.
A Ciência tem Deus no seu próprio método científico. Este que pode colocar tudo em dúvida, questionar a realidade, descobrir a verdade do universo. A única coisa que fica fora de questão é o próprio método científico.
Qualquer filósofo, por mais ateu, tem que admitir Deus em algum ponto do seu pensamento. Não enquanto a entidade que os religiosos pensam existir. Mas justamente enquanto este ponto de incongruência que faz todo o restante do universo ser coerente, e não sermos meros céticos a duvidar de tudo indefinidamente, como fizera Pirro, jamais chegando a qualquer certeza.
Para os analíticos, são os pressupostos lógicos que servem de base para o pensamento. Já os construtivistas encontraram Deus na História: tudo é um fato histórico, e pode ser explicado por ela, não havendo nada de real para além da mesma.
A ideia que existe um vazio por baixo de tudo não é muito reconfortante. Todos nós assumimos irracionalmente algum ponto de certeza – convictos dele de forma bastante emocional – para dar sentido e orientar nosso pensamento. Negamos assim que a realidade possa ser apenas um absurdo.
Se podemos relacionar o epicurismo ao hedonismo e o estoicismo ao ascetismo, o ceticismo chega na modernidade sob a forma do niilismo. A ausência de um critério absoluto que possa definir a realidade. Mais do que a morte de Deus, o niilismo é a radicalização do ceticismo sob o entendimento de que a dúvida é a única certeza. Não há um significado para a existência, tampouco um objetivo para estarmos vivos. As coisas simplesmente existem.
Estamos acostumados a imaginar que por detrás das aparências existe uma verdade oculta, a qual devemos buscar para compreender melhor o mundo. A perspectiva niilista é que, por detrás das aparências, não há outra coisa senão o Vazio. As aparências são tudo que temos enquanto existência, e não há uma verdade mais além disso, apenas uma existência negativa: o Vazio.
O niilismo se tornou o grande bicho-papão da modernidade. Muitos o identificaram como depressivo, trágico, destrutivo. Coube finalmente a alguns franceses – sempre eles – subverterem isso. Mas veremos no próximo texto.
Igor Teo é psicanalista e escritor. Para saber mais acesse o seu site pessoal.
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Crédito da imagem: Felix Russell-Saw/unsplash
Marcadores: ceticismo, ciência, Colunista: Igor Teo, colunistas, Descartes, Deus, Espinosa, existência, filosofia
1 comentários:
Está muito legal acompanhar essa série de textos! parabéns :)
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