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26.5.09

O ceticismo do cientista

Texto de Marcelo Gleiser, físico e divulgador de ciência, autor de "A dança do universo" - publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Volta e meia, leitores me questionam sobre o que lhes parece ser o exagerado – ou pouco razoável – ceticismo do cientista.

As abordagens variam. Algumas vezes, acham inconsistente um cientista se dizer ateu quando não pode responder a certas questões básicas, como, por exemplo, a origem do Universo ou da vida. Dizem eles: “Vocês falam do Big Bang, o evento que iniciou tudo. Mas de onde veio a energia que provocou esse evento? Como falar de algo material surgindo do nada, sem a ação de um ser imaterial, isto é, divino?” Outras críticas dizem respeito à descrença em fenômenos paranormais, sobrenaturais, OVNIs e seres extraterrestres, espiritismo etc.

Segundo estatísticas recentes feitas pela Fundação Gallup nos Estados Unidos, em torno de 50% dos americanos acreditam em percepção extra-sensorial. Mais de 40% acreditam em possessões demoníacas e casas mal-assombradas, e em torno de 30% crêem em clarividência, fantasmas e astrologia. Não conheço estatísticas semelhantes para o Brasil, mas imagino que os números devam ser no mínimo comparáveis.

Sem a menor dúvida, a luta do cético é ingrata; ele estará sempre em minoria. Existem muito mais colunas sobre astrologia do que sobre astronomia ou ciência nos jornais e revistas do Brasil e do mundo. Mas, sem ceticismo, a sociedade estaria fadada a ser controlada por indivíduos oportunistas que se alimentam dessa necessidade muito humana de acreditar.

Ela existe para todos não há dúvidas. Mesmo o cético deve acreditar no poder da razão para desvendar os muitos mistérios que existem. A paixão que o alimenta é a mesma do crente, mas direcionada em sentido oposto.

Devido a esse ceticismo, muitas vezes os cientistas (incluindo este que lhes escreve) são acusados de insensibilidade. De jeito nenhum. Eu tenho grande respeito pelos que acreditam. O que me é difícil aceitar é a exploração que existe em torno dessa necessidade, a exploração da fé.

Na Índia, por exemplo, recentemente apareceram milhares de “homens-deuses”, que se dizem meio deuses, meio gente. No México, funcionários do governo freqüentam seminários sobre como usar o poder dos anjos. O Peru está cheio de psíquicos, enquanto na França são aromaterapeutas. Testes em laboratório visando verificar poderes extra-sensoriais invariavelmente falham.

O famoso paranormal israelense Uri Geller, que dobrou garfos na frente de milhões nos anos 70, foi desmascarado como fraudulento. O meu orientador de doutorado na Inglaterra, impressionado com Geller e outros médiuns, montou um laboratório para testar seus poderes. Ele o fez com ótimas intenções, para explorar a origem desses poderes de modo a divulgá-las para o resto da humanidade. Mas falharam todos.

Voltando à questão do Big Bang. A religião não deve existir para tapar os buracos da nossa ignorância. Isso a desmoraliza. É verdade, não podemos ainda explicar de forma satisfatória a origem do Universo. Existem inúmeras hipóteses, mas nenhuma muito convincente.

Mesmo se tivéssemos uma explicação científica, sobraria uma outra questão: o que determinou o conjunto das leis físicas que regem este Universo? Por que não um outro? Existe aqui uma confusão sobre qual é a missão da ciência. Ela não se propõe a responder a todas as questões que afligem o ser humano.

A ciência, ou melhor, a descrição científica da natureza, é uma linguagem criada pelos homens (e mulheres) para interpretar o cosmo em que vivemos. Ela não é absoluta, mas está sempre em transição, gradativamente aprimorada pela validação empírica obtida através de observações. A ciência é um processo de descoberta, cuja língua é universal e, ao menos em princípio, profundamente democrática: qualquer pessoa, com qualquer crença religiosa ou afiliação política, de diferentes classes sociais e culturas pode participar desse debate. (Claro, na prática a situação é mais complexa.)

Ela não terá jamais todas as respostas, pois nem sabemos todas as perguntas. O cético prefere viver com a dúvida do que aceitar respostas que não podem ser comprovadas, que são aceitas apenas pela fé. Para ele, o não-saber não gera insegurança, mas sim mais apetite pelo saber. Essa talvez seja a lição mais importante da ciência, nos ensinar a viver com a dúvida, a idolatrá-la. Pois, sem ela, o conhecimento não avança.

Fonte: ateus.net (mas vale lembrar: nem todo cético é ateu, o ceticismo é uma ferramenta do pensar e não uma ideologia)

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4 comentários:

Anonymous Rayom disse...

Raph:

Para mim é a usadíssima falácia de sempre de que o cético está ai mesmo para desmascarar todos os embusteiros em nome da ciência.

É por essas e outras que na ciência os gênios sensíveis são raros, e nos patamares inferiores a maioria cética é a mesma cópia simples e redundante sem autenticação.

Mas valeu sua tribuna.

Abraços.

26/5/09 23:59  
Blogger raph disse...

O que eu gostei nesse texto do Gleiser é que ele admite o que infelizmente muitos céticos fundamentalistas não admitem (ou fingem que admitem, mas sabemos perfeitamente que no fundo creem piamente que somente a ciência resolverá todos os enigmas da humanidade):

"o que determinou o conjunto das leis físicas que regem este Universo? Por que não um outro? Existe aqui uma confusão sobre qual é a missão da ciência. Ela não se propõe a responder a todas as questões que afligem o ser humano."

Que sejam cientistas, mas se lembrem que a ciência não é nem materialista nem espiritualista: a ciência é o conhecimento da realidade detectável (e cada um usa o aparelho que tem a disposição!)

Abs
raph

27/5/09 14:24  
Anonymous Rayom disse...

Raph, desculpe parecer mal educado e voltar ao assunto. Mas após ter lido dezenas de páginas céticas em variados temas, ter debatido muito e me espantado com o “Cult” da doutrina órfã ateísta, meu conceito sobre céticos é colocado prosaicamente assim:

“Céticos ou ateus são irreversivelmente materialistas. Quando dizem respeitar as crenças e posições contrárias, estão sendo somente diplomáticos ou estão sofismando por algum outro motivo. Em regra, são sempre os mesmos intolerantes”.

Na verdade, céticos acham todos os religiosos, esotéricos, místicos. ufólogos, uns debilóides, pois o universo é concretismo puro e as ciências nunca provaram de fato existir universos invisíveis ou paralelos. Quanto mais a existir almas, espíritos, reencarnação, naves alienígenas, etc. Eles são os sabe-tudo.

Talvez meu faro me tenha enganado com o Marcelo. Pode ser, ando meio resfriado.

Abs.

27/5/09 16:56  
Blogger raph disse...

"Talvez meu faro me tenha enganado com o Marcelo. Pode ser, ando meio resfriado."

Não se enganou não... Mas o que podemos fazer? Apenas lamentar... Só tento não ser como eles, afinal não é porque sou espiritualista que vou "comprar briga" com a ciência: a ciência ajuda a todos nós, mas ajuda mais a quem tem o pensamento livre.

Felizmente existem sim cientistas com a mente mais aberta, embora sejam raríssimos :(

Abs
raph

27/5/09 17:49  

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