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9.2.09

Os pequenos selvagens

Era 1920, o reverendo Jal Singh, missionário anglicano, liderava aldeões em uma caçada nos arredores de Midnapore, a oeste de Calcutá, na Índia. Esses aldeões eram acostumados a caçar todo tipo de animal selvagem nas redondezas, mas dessa vez sua caçada era algo mais exótica: eles buscavam as meninas Amala e Kamala, que boatos diziam, haviam sido largadas nas florestas da região quando ainda bebês, e então foram "adotadas" pelos lobos, e passaram a viver como seres selvagens, embora humanos.

O que parece uma ficção, em realidade, é algo que sempre foi relativamente comum na história antiga, e nos povos rurais. Amala e Kamala realmente existiram. Quando foram abordadas, sua mãe loba as tentou proteger, e foi abatida pelos aldeões. Jal Singh acreditava que as estava tirando "da mão do demônio", e dando-as uma oportunidade de serem humanas, educadas, instruídas em sua religião e, finalmente, ganharem os céus ao aceitar Jesus como seu único salvador.

Infelizmente não foi bem o que ocorreu. Elas tinham provavelmente entre dois e oito anos, Singh as descreveu - "caninos alongados, queixo retraído, olhos que brilhavam na escuridão." Amala era a mais nova, e morreu em um ano de "cativeiro", sem nunca ter aprendido a falar ou sequer caminhar de forma ereta. Kamala sobreviveu até 1929, tempo em que aprendeu a comer alimentos cozidos (e não carne crua, como anteriormente), andar ereta e falar cerca de 50 palavras. Singh deve ter lamentado, não era o suficiente para que compreendessem Jesus, nem para que chegassem aos céus.

Na Idade Média, as crianças criadas pelos animais eram vistas como símbolo do caos, da insanidade, heresia, maldição de Deus. Mais tarde, o iluminista Russeau envolveu todos os homens não-civilizados em uma aura de pureza e harmonia com natureza chamamdo-os de "nobres selvagens". Mas o fato é que isso tudo apenas nos demonstra o quanto precisamos uns dos outros, o quanto estamos encadeados na teia da vida: o homem é um ser de potencialidades, mas essas precisam ser despertas para florescer.

Fosse Mozart criado por lobos, teria sido um gênio da música? Decerto que não, decerto que se não houvesse sido apresentado pelo pai a um piano ainda muito pequeno, não teria sido tão genial. Todo espírito humano traz nos calabouços do inconsciente toda uma história de evolução cognitiva, história essa que a ciência ainda não compreende como pode ser passada geração a geração, visto que genes determinam apenas características físicas, e não morais ou cognitivas... Essas "potencialidades da alma", no entanto, como bem lembrou Sto. Agostinho no livro homônimo (também herança do pensamento de Sócrates - "conhecer-se é relembrar"), dependem de serem despertas, dependem de serem desenvolvidas em prol de toda a humanidade. O ser humano criado por lobos será não muito mais do que um lobo, mas o lobo criado por seres humanos não possui essas potencialidades, e portanto será, no máximo, um lobo "menos feroz".

Fôssemos um povo consciente de sua herança ancestral, de sua longa ligação com todas as formas de vida nessa Terra, em vidas e vidas de evolução cognitiva e moral (em paralelo com a evolução tradicional esclarecida pela teoria de Darwin-Wallace), não deixaríamos nossas crianças para serem devoradas nos ermos, mas da mesma forma, não assassinaríamos os lobos que cuidaram de nossas crianças, pois que nesse sistema sagrado cada um recebe a responsabilidade que lhe compete: o lobo que criou a criança é um animal em vias de emancipação da consciência; o homem que matou o lobo e pretendeu "salvar" a criança é um ser consciente ainda preso na própria ignorância e preconceitos.

Nos dias que se seguem, o homem finalmente compreendeu que tudo que faz a Natureza, faz a si mesmo. Agora chegou a hora de voltarmos a viver, e não apenas sobreviver. Chegou a hora de lembrarmos dos índios e aborígenes que sempre souberam de seu lugar no grande esquema das coisas. Chegou a hora de nos reconectarmos a Natureza, de curar todo mal feito, e de sermos tão puros quanto Amala e Kamala, porém no exercício pleno de todas as nossas potencialidades... Não vamos mais negar quem somos, e o que viemos fazer nesta Terra.

***

Crédito da foto: anônimo

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1 comentários:

Blogger raph disse...

Notícia recente sobre o assunto:

http://oglobo.globo.com/blogs/moreira/post.asp?t=abandonada-pela-mae-menina-criada-por-cachorros&cod_Post=165102&a=88

2/3/09 15:36  

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