Cacique Cobra Coral: charlatão?
Este artigo visa analisar a suposta capacidade do espírito conhecido como Cacique Cobra Coral de afetar o clima em diversas regiões do mundo, e mais precisamente nas cidades brasileiras onde sua Fundação tem convênio com prefeituras. O espírito age através da médium Adelaide Scritori, que supostamente o incorpora de acordo com as práticas da umbanda. Este artigo pretende analisar o fenômeno de forma verdadeiramente cética e imparcial. [1]
De acordo com informações colhidas na Wikipedia e em reportagem da revista Veja, a Fundação Cacique Cobra Coral (FCCC) é uma fundação brasileira com sede em Guarulhos, criada pela médium Adelaide Scritori, e que ficou mundialmente famosa por manter convênios gratuitos com governos para intervir no clima e no tempo, como forma de prevenir ou minimizar catástrofes, ou não atrapalhar a realização de eventos.
A FCCC relaciona entre seus supostos feitos a elevação de 29 graus centígrados na temperatura de Londres, em 1987, o deslocamento para o mar de temporais que castigariam o Rio de Janeiro, em 2006, e o desvio de uma chuva para apagar incêndios florestais na Grécia, em 2007. Corretora de imóveis "acima de 1 milhão de reais", como gosta de frisar, Adelaide mora nos Jardins e costuma viajar o mundo oferecendo seus dotes sobrenaturais. Jura que o cacique não a ajuda nos negócios ou em relacionamentos. "A entidade só faz alterações climáticas para beneficiar a população". Pertencente a uma tribo americana, o índio apareceria à médium desde os 7 anos de idade e se comunicaria num português "com sotaque caboclo".
Mantida por uma empresa de seguros, a FCCC ganhou fama internacional depois que o escritor Paulo Coelho foi seu vice-presidente, entre 2004 e 2006. Hoje, dezessete países, em três continentes, receberiam ajuda do cacique. No Brasil, três estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) e duas prefeituras (do Rio de Janeiro e de São Paulo) contariam com sua força para lidar com as tempestades. Adelaide diz que não cobra nada das cidades para desviar os temporais. Mas pede, em troca, algumas obras para evitar enchentes. "Funcionamos como uma espécie de airbag: reduzimos os danos, mas as autoridades têm de fazer a parte delas", explica Adelaide. "O cacique não pode servir de muleta para os humanos".
Em posse dessas informações, e sem negar a priori que esse tipo de fenômeno seja possível (como o fazem os “pseudo-céticos de negação”), vamos analisar os fatos pela luz da lógica espiritualista e científica (se você está escandalizado, mantenha-se firme, pois acredito que sairá dessa análise no mínimo com um maior entendimento da espiritualidade):
1. Da capacidade de se afetar o clima
Desde épocas pré-históricas há registros de rituais e danças tribais direcionadas especificamente a afetar o clima, a mais famosa delas talvez seja a dança da chuva. Muitos espiritualistas antigos e modernos consideram a possibilidade do clima ser direta ou indiretamente regido por espíritos e/ou entidades da natureza [2]. Nesse contexto, os rituais e as danças não seriam em si os catalisadores das mudanças climáticas, mas sim uma forma de contato com tais entidades, uma espécie de “pedido” feito através de uma linguagem simbólica que seria compreendida por esses supostos espíritos da natureza.
Certos ocultistas afirmam que conseguem afetar o clima e desviar chuvas, mas em sua maioria dizem que tais técnicas exigem muitos anos de estudo nas artes ocultas, e que tais fenômenos estão longe de serem “triviais” de se fazer. Mesmo no Novo Testamento, temos uma passagem em que Jesus “acalma a tempestade ” e permite que a pescaria siga tranqüila no barco onde estava com seus discípulos – porém, mesmo Jesus não realiza esse tipo de fenômeno de forma trivial.
Segundo a FCCC, eles (a médium e o cacique) precisam estar fisicamente presentes (no caso da médum) nos locais onde realizam seus trabalhos de mudanças climáticas. Até aqui faz certo sentido, se afirmassem que conseguem mudar o clima em qualquer parte do globo, estariam se igualando, no mínimo, a semi-deuses.
Já quanto ao nível de modificação imposta ao clima, a FCCC admite que atua como “um paliativo” e não como uma solução derradeira. Adelaide costuma dizer que eles são um airbag contra os temporais. Para realizarem seus trabalhos, eles precisam de equipamentos de ponta na ciência metereológica. Observa-se um casamento entre ciência e umbanda, ou ao menos sabe-se que a própria FCCC depende de tecnologia física para sua atuação.
Cientificamente, entretanto, é praticamente impossível comprovar que a médium consiga realmente afetar o clima – ainda que “de forma paliativa, em pequena escala”... Sabe-se que os eventos que regem o clima são muitos e extremamente complexos, de modo que mesmo a previsão do tempo para daqui a uma semana é algo longe dos 100% de eficácia, enquanto que a previsão para daqui a meses é praticamente impossível pela ciência atual.
Pela lógica espiritualista, ainda que a existência de entidades da natureza seja considerada, há que se perguntar se o clima está realmente “esperando as ordens” de alguém... Ou, ainda mais profundo do que isso, se seria justo desviar tempestades de um local para o outro. Digamos que todas as tempestades fossem desviadas para o oceano e não para cidades vizinhas, ainda assim ficaria difícil de explicar como isso poderia ser feito em qualquer parte, mesmo nas cidades afastadas do litoral!
Se a natureza é um sistema, os seres vivos dentro da atmosfera terrestre estão todos conectados a ele – e esse sistema também inclui o clima, portanto. Seria estranho esperar que tempestades simplesmente “sumissem no ar”, até mesmo porque o espiritualismo trata de fenômenos lógicos que, ainda que não possam ainda ser entendidos pela ciência atual, não devem ser reduzidos ao pensamento mágico. Sabemos que na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma, e uma tempestade precisa ocorrer quando as nuvens estão carregadas – não há médiuns ou entidades capazes de “teleportar” a precipitação para outro planeta...
Dito tudo isso, como a FCCC afirma que atua como um airbag e que não consegue realizar grandes transformações no clima, talvez ainda tenhamos um espaço lógico para crer que uma parte do que afirmam fazer seja verdade. Nada que possa ser comprovado experimentalmente, mas também nada que possa ser provado como fraude – por enquanto.
2. Do trabalho diretamente condicionado aos convênios
Retirado de matéria do O Globo: Quatro dias após o violento temporal que atingiu o Rio de Janeiro no início de 2010, o prefeito Eduardo Paes renovou o convênio com a FCCC, que presta assistência técnico-científica gratuita para o município em questões climáticas. A cerimônia de renovação da parceria ocorreu em uma audiência com a médium Adelaide Scritori com Paes na sede da prefeitura.
“Infelizmente, a Fundação não foi acionada no forte temporal de sábado passado no Rio. O convênio com a prefeitura estava à espera de renovação, mas temos um acordo em vigor com o governo do Estado. Mas a Defesa Civil do Estado também não nos alertou – disse Osmar Santos, porta-voz da Fundação Cacique Cobra Coral.”
Apesar de afirmarem que todos os convênios que possuem não envolvem o gasto de verbas públicas, me parece estranho que a FCCC seja “inerte” em relação as suas atividades... É que, conforme a própria Adelaide afirma, “eles só atuam quando são chamados”, e também quando existe um convênio, é claro.
Mas, e que tipo de convênios são esses? Ora, se eles não precisam de dinheiro, talvez exista uma troca de aparelhagem ou até mesmo uma intervenção da FCCC nas políticas de sustentabilidade nos governos em questão. São suposições baseadas em informações que encontrei no próprio site da FCCC, como essa afirmação (talvez um pouco exagerada):
“FCCC alerta CEE (Comunidade Econômica Européia), USA e países do Oriente (China e Japão): Não vamos atender a partir de 2010 os países que se omitirem na redução de CO2 no próximo mês em Copenhagen”.
Mas são somente suposições, pois não temos acesso aos detalhes desses convênios – sabemos apenas que existem, mas não o que significam exatamente... A grande questão é até mesmo óbvia: mas, e porque diabos eles precisam desses convênios para atuar?
Suponhamos que o cacique e a médium não ganhem absolutamente nada em troca de seu trabalho em prol da humanidade – nem mesmo o reconhecimento devido... Ora, qualquer espiritualista sério conhece inúmeros médiuns que fazem o mesmo, e não dependem de nenhuma espécie de retorno financeiro ou tecnológico, de nenhum reconhecimento público e muito menos de convênios com prefeituras!
Ainda que seja viável crer nas boas intenções do cacique, resta-nos compreender o porque de ele só atuar quando chamado, ou através de convênios... Para que um espírito indígena precisa de convênios para trabalhar em prol do bem estar das pessoas? Ou ainda, o que interessa a um cacique evitar que chova em um evento de Rock? Isso seria realmente algo importantíssimo frente a tantas catástrofes naturais que ocorrem no mundo – e ao que tudo indica, independente de convênios entre fundações umbandistas e prefeituras?
Se a FCCC buscava reconhecimento público através de seus convênios, o mais provável é que tenha sido apenas alvo de chacota (e com razão, independentemente de suas intenções serem sérias ou não). Se a FCCC buscava a contra-partida dos governos em ações de sustentabilidade, poderia fazer isso de uma outra forma – por exemplo, poderia reunir um fundo de ajuda aos desabrigados e feridos em grandes enchentes e catástrofes ambientais; ou ainda incentivar as pessoas a olhar a natureza com maior cuidado (o que já vem sendo feito por inúmeras organizações científicas e espiritualistas, aliás); ou até mesmo reunir-se de tempos em tempos com as supostas entidades de natureza para discutir a melhor forma de tratar as mudanças climáticas – desviando chuvas na origem e não no fim. Talvez até a FCCC já faça algo na linha do que foi sugerido, mas em nenhum dos casos faz qualquer lógica a necessidade desses convênios com os governos.
3. Da possibilidade do uso de verbas públicas
Ainda que a FCCC e os prefeitos afirmem categoricamente que seus convênios são inteiramente gratuitos, fica difícil imaginar para que diabos serviria um convênio gratuito. É mais ou menos como telefonar ou enviar um e-mail para alguém e ter isso registrado em cartório... Ora, se tudo o que ocorre são trocas de informação, para que é preciso o convênio?
Agora, no caso de verbas públicas serem gastas nesse tipo de convênio, daí sim teríamos um caso bizarro em mãos. O estado é laico, e ainda que não fosse, não podemos usar verbas públicas em serviços de eficácia altamente duvidosa e não comprovada, por mais que a possibilidade de serem efetivos exista (não é possível provar como fraude). Embora muitos vejam a FCCC como uma espécie de site humorístico e tais convênios com uma espécie de piada de mau gosto, há que se criticar esse tipo de coisa com muito mais contundência. Principalmente por parte dos espiritualistas.
É por casos como esse que a espiritualidade ainda irá demorar muito para penetrar na mente daqueles que (sabiamente) cultivam um pensamento racional. É uma pena que em muitos casos seja necessário praticamente jogar o cérebro no lixo para seguir adiante com crenças que, embora pareçam fantásticas a primeira vista, podem configurar uma enorme perda de tempo em nossa evolução espiritual.
A espiritualidade não precisa abandonar a razão, a ciência ou o ceticismo – a fé racional é a fé ideal segundo os grandes sábios; a ciência nunca foi materialista nem espiritualista, mas sim uma forma de conhecermos o mundo; e o ceticismo é uma ferramenta filosófica que serve em qualquer área ou crença, desde que usada com bom senso.
Se a FCCC é realmente uma Fundação séria, e se o cacique realmente tem boas intenções, que se dediquem ao que importa – a regenerar este mundo, a mudar as mentes e não apenas desviar as tempestades, a findar a ignorância e não apenas servir de “paliativo”... Para nada disso precisarão de convênios, exposição na mídia ou reconhecimento público – pois que se o cacique é realmente quem afirma ser, deve saber que o único reconhecimento que importa é o de nossa própria consciência, e a única tempestade que precisa ser desviada é a tempestade da ignorância.
***
[1] Quem acompanha o blog talvez tenha lido a defesa que fiz de Chico Xavier e a análise que fiz da mediunidade de João de Deus (ambos acusados de charlatanismo). Como nos outros artigos tratei de fenômenos muito mais paupáveis (ao menos do ponto de vista espiritualista), resolvi falar sobre a FCCC como forma de contra-ponto, até mesmo para demonstrar que um espiritualista também pode ser cético (ou deveria ser).
[2] Quanto a essa questão eu sou particularmente agnóstico, até mesmo porque não vejo uma conexão clara entre esse tipo de fenômeno e um caminho de evolução espiritual. Porém, no que tange uma análise mais científica do fenômeno, talvez o caminho para uma melhor compreensão passe pela questão das bactérias que (talvez) influenciam o clima.
Nota: Títulos como "Cacique Cobra Coral" ou "Maria Padilha", etc., vem da umbanda e costumam se referir a coletividades de espíritos – não apenas um. Este artigo se refere exclusivamente ao cacique da FCCC, que se é que existe, é "um dos" caciques, e não "o" cacique.
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Crédito da imagem: Anônimo.
Marcadores: Adelaide Scritori, artigos, artigos (71-80), ceticismo, crítica, espiritualidade, Fundação Cacique Cobra Coral, natureza, política, umbanda sagrada
4 comentários:
Puxa...
Eu não conhecia esta FCCC.
Mas lendo seu texto, creio que o convênio deva existir por uma questão de respeito, devido às consequências causadas na agricultura e tantos outros setores.
Acho que seria algo como "Vamos dar uma segurada numa catastrofe, mas já fica subentendido pequenas desvantagens em outros setores".
E acho que para eles não interessa uma prática muito grande para mostrar sobre a conexão com a natureza. Tipo... Eles fazendo isso já é um exemplo de conexão com a Terra. É praticamente desnecessário fazer uma palestra cheio de palavras quando as atitudes falam mais alto.
Enfim... ótimo texto! Parabéns e obrigado!
Renato Seabra.
"Eles fazendo isso já é um exemplo de conexão com a Terra. É praticamente desnecessário fazer uma palestra cheio de palavras quando as atitudes falam mais alto."
Olha eu concordo plenamente contigo, o maior problema da FCCC, no caso, é exatamente que eles parecem mais preocupados em divulgar seus convênios e aparecer na mídia do que em ficar na deles e trabalhar em prol do planeta - não porque "são chamados pelas prefeituras", e sim porque simplesmente querem ajudar.
Eu digo isso porque sei (conheço pessoalmente alguns) que muitos médiuns auxiliam e muito a evolução local e global e nem porisso fazem qualquer questão de aparecer na mídia...
Abs
raph
No site da FCCC eles dizem que são mantidos por essa empresa: http://www.tunikito.com.br/
e no site dessa empresa (no fim da página em um retângulo 'informe clima') eles dizem que tem CONVÊNIOS com governos de estados brasileiros para 'colaborar com a execução de obras'
è uma forma esperta dos governos justificarem certas obras que teriam que ser feitas as pressas para evitar uma catastrofe.Uma grande enganação.
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