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8.6.10

Como criar um universo

Trecho do Projeto Ouroboros

(S.) Antes que fiquem angustiados com nossa questão pendente, vamos tentar finalmente resolvê-la... Diga-me P., sobre aquele mesmo carpinteiro que falamos anteriormente: você diria que ele precisa apenas de seu corpo e da madeira para construir uma cadeira decente?

(P.) Vejo onde quer chegar: ele precisaria antes estudar carpintaria.

(S.) Mas digamos que fosse o maior mestre de carpintaria que já existiu. Ainda assim ele usaria apenas seu corpo e a madeira para construir a cadeira?

(P.) Bem, ainda que sua mente faça parte de seu corpo, ele sem dúvida usaria os comandos do cérebro para guiar suas mãos na construção da cadeira.

(S.) Não vamos discutir sobre a dualidade mente-corpo agora, digamos que mente e corpo fossem uma mesma entidade chamada carpinteiro: ainda assim, ele necessitaria da mente para sua construção, correto?

(P.) Sem dúvida, sem a mente suas mãos de nada serviriam...

(S.) Mas a mente não serve apenas para guiar as mãos. Diria que, antes que as mãos recebam o comando da mente, a cadeira de certa forma já existia como uma espécie de “imagem mental” na mente do carpinteiro... Da mesma forma que um pintor não escolhe uma cor de tinta sem antes consultar a imagem do quadro em sua mente; Ou que um construtor não coloca um tijolo na parede sem antes consultar o projeto que, em última análise, é fruto de sua mente.

(P.) É a mais pura verdade, acredito.

(S.) Dessa forma, antes da cadeira ser concebida pelas mãos que talham a madeira, foi concebida na mente do carpinteiro... Ou poderíamos imaginar uma cadeira que fosse construída a esmo, e que só penetrasse na mente do carpinteiro após estar, de alguma forma estranha, já pronta?

(P.) Não poderíamos, ao menos não dentro da natureza.

(S.) E toda obra material foi antes, uma obra mental.

(P.) Correto.

(S.) Chamemos a essa terceira forma de criação: a mental. Mas ainda não temos a questão ganha... O que se diz da velocidade do pensamento?

(P.) Que é bem rápida, embora no cérebro certamente não possa ser mais rápida que a velocidade da luz.

(S.) Poderíamos dizer, no entanto, que o pensamento depende apenas da própria mente para existir? Ou seja, que não necessitaria a priori de qualquer outra substância além da própria mente que o originou?

(P.) Bem, tecnicamente um pensamento está atrelado às memórias já existentes no cérebro, e dependeria delas para ocorrer. Por exemplo: o carpinteiro só pensaria em construir a cadeira porque já tem toda a experiência da carpintaria registrada em sua memória...

(O.) Permitam-me interromper: a substância de que falamos não seria exatamente um cérebro. Pensemos em uma analogia da mente e da criação mental, e não exatamente em um “cérebro gigantesco flutuando no nada”... Um sábio antigo já nos disse que “o que está em cima é como o que está embaixo”, porém não é exatamente a mesma coisa.

(S.) Exato, aqui não temos escolha senão deixar nossa imaginação flutuar um pouco acima de nossa razão.

(P.) Bem, nesse caso, concordo: o pensamento depende apenas da própria mente para existir.

(S.) Além disso, o pensamento pode se realizar de forma muito rápida, ou pelo menos mais rápida do que qualquer outra ação não mental.

(P.) Explique isso melhor, por favor.

(S.) Você afirmou, com razão, que no cérebro o pensamento se realiza em velocidade necessariamente inferior a velocidade da luz. Porém, pensemos em um quantum de luz, um fóton: ele não pensa. Se considerarmos, portanto, qualquer ação mental, o pensamento será a mais rápida delas, e necessariamente mais rápido do que uma ação não mental.
Por exemplo: não poderíamos dizer que o carpinteiro tenha talhado à cadeira ainda mais rápido do que tenha pensado em construí-la inicialmente. De fato, sequer poderíamos dizer que o primeiro corte da madeira tenha sido mais rápido do que a mera idéia, o pensamento de criá-la.

(P.) Certo, faz sentido, embora isso esteja ficando confuso... O que exatamente isso tem a ver com a Causa Primeira?

(S.) Ora, deixe-me explicar então... Não dissemos que a substância que originou a Causa Primeira existia, antes da criação do Cosmos, fora do tempo?

(P.) Certo.

(S.) E não postulamos que ela, a substância eterna, não poderia depender de qualquer outra substância além dela própria para realizar a criação?

(P.) Correto.

(S.) E que não poderia se dividir nem se transformar em outra substância?

(P.) Dissemos tudo isso.

(S.) Então que os sábios me perdoem se estiver errada, mas a única forma de criação que nos restou é a criação mental, e somente esta pode explicar, por analogia, a Causa Primeira!
Vejamos: uma mente-substância eterna, causa de si mesma, que existindo fora do tempo elaborou mentalmente uma idéia peculiar, a idéia da criação do Cosmos; E dependendo somente de si própria em sua elaboração mental, essa mente, em uma velocidade incomensurável criou o próprio tempo, o espaço, as partículas e todo um sistema de leis naturais que se desenvolveram e deram lugar à evolução gradativa do universo que conhecemos através do tempo em nossa interação com tudo o que existe.
Este Cosmos semente, surgindo dentro da mente-substância, irradiou-se como um grandioso pensamento, uma explosão criativa, sem nunca ter dependido de qualquer outra substância “fora dele” para se desenvolver e continuar existindo; Sem nunca ter realmente se dividido, sendo ainda neste preciso momento à mesma idéia, a mesma mente-substância, o mesmo pensamento infinito que nada mais é do que a grande causa, a Causa Primeira.

***

Crédito da imagem: Photo2217

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8 comentários:

Anonymous TiagoMazzon disse...

Nesse papo entre P. S. e O., percebo uma semelhança incrível com o capítulo de O Caibalion denomidado "O Todo", onde os 3 Iniciados refletem e mostram as características, que conseguimos deduzir, do Todo Universal, a Causa Primeira, como vocês se referem nesse texto acima.
Caso tenha alguém curioso, da um pulo no meu blog para comparar essa argumentação primorosa daqui com o texto Hermético de lá.

Paz Profunda.

8/6/10 07:53  
Blogger raph disse...

Certamente o Tiago tem toda razão, o tal "sábio antigo" mencionado no texto é o próprio Hermes Trimegisto, mas claro que no livro final eu tenho notas de rodapé que explicam isso melhor :)

Nos links na coluna direita da home do blog, também temos um link para "O Caibalion" - hospedado no site Morte Súbita. Ele também pode ser encontrado em português pela Editora Pensamento.

Paz!
raph

8/6/10 12:14  
Anonymous lucas disse...

Esses personagens são reais ou foi vocé que criou?

8/6/10 12:43  
Blogger raph disse...

O livro será "uma obra de ficção", portanto eu os criei... Mas os nomes e as personalidades são bastante baseados em "tipos de pessoas/tipos de pensamentos" que encontrei pela web, particularmente em diálogos das comunidades Fé e Razão e Física Quântica, A Revolução, do Orkut.

A idéia central é trazer pontos de vista diversos, mas que volta e meia convergem para um mesmo ponto de encontro. E também, claro, demonstrar que ninguém precisa se agredir ou se matar em um debate de idéias - basicamente será um livro "anti-inquisição" :)

Abs
raph

8/6/10 15:21  
Anonymous lucas disse...

Esse projeto me lembrou uma peça que eu li.

Chama-se Esperando Godot,é bem pessimista mais muito interesante

eu recomendo.

8/6/10 20:16  
Blogger raph disse...

Já ouvi falar, do Samuel Beckett. Deve ser um bom livro também, mas vou ver se consigo ver a peça um dia porque de livros tenho muitos pra ler já :)

Abs
raph

9/6/10 10:53  
Anonymous Anônimo disse...

Existe uma forma de a cadeira existir sem que mente alguma a tenha originado : Havendo o acaso a gerado.

Ou seja : Do caos, há a emergencia de uma forma, pois toda forma é possível no caos, mas o caos não é possível no caos.

Assim, se a substância prima tiver infinitas possibilidades de combinação, mesmo sem mente, o cosmo pode ser simplesmente uma emergência de formas, sem mente antes ou após ele, apenas uma matéria que seja caótica e possibilitamente mesmo paradoxal, capaz de existir além das leis universais, tendo gerado-as.

11/6/11 12:33  
Blogger raph disse...

Bem, a analogia da mente não é para ser compreendida como "um gigantesco cérebro" flutuando no nada, ou algo assim... Ou seja, não precisa der uma mente no sentido humano, mas algo análogo a isso no sentido de "poder criar sem necessitar de algo externo".

Se a mente teve alguma intenção, ou se estava "divagando no próprio caos", já é uma outra história.

Porém, o caos não surge do nada, nada surge do nada em tempo algum, pois o nada não existe... A partir do momento que existe algo, significa que o nada não existe, nunca existiu nem nunca poderá existir. O caos pode surgir de algo análogo a uma mente, uma substância incriada e eterna, mas não a partir do nada.

Abs
raph

12/6/11 11:46  

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