Allan Kardec: racista? (parte 2)
Segunda e última parte de um artigo que pretende analisar a costumeira crítica a Allan Kardec, codificador da doutrina espírita, onde se afirma que ele era racista, baseando-se principalmente em trechos de A Gênese, a quinta e última obra fundamental do espiritismo. Não deixe de ler a primeira parte antes de prosseguir (link acima).
Podemos afirmar que o espiritismo é uma doutrina racista?
Certamente que não, pois essa seria uma grande generalização apressada.
Primeiro, porque o espiritismo não é criação de Kardec, e ele foi apenas seu codificador e organizador. Apesar dos 5 livros fundamentais da doutrina possuírem inúmeros comentários do próprio Kardec, foi baseado nas respostas dos espíritos as suas perguntas que Kardec organizou a doutrina espírita. Desse modo, ainda que se seja cético em relação a existência de espíritos, ou da possibilidade de que possamos nos comunicar de forma plenamente inteligível com eles, o máximo que se pode dizer é que as respostas dos espíritos são fruto do imaginário monumental de 3 jovens médiuns (de 14, 16 e 18 anos, respectivamente), as quais ditaram praticamente a totalidade das respostas.
Em todo caso, não é culpa dos espíritos (ou das 3 médiuns) que Kardec tenha interpretado suas respostas dessa forma. É muito comum ao ser humano interpretar de forma incompleta, errônea ou até distorcida as informações que lhe chegam de um, digamos, plano mais elevado. Kardec não foi o primeiro a interpretar a luz de uma forma difusa, e os textos sagrados da humanidade nos trazem inúmeros exemplos até mesmo muito piores (ex: o livro do Levítico, do Antigo Testamento).
Segundo, o espiritismo não é um “kardecismo”, e o próprio Kardec incentivou que esta doutrina, da qual ele foi mero codificador, fosse constantemente reavaliada e reinterpretada a luz de novas descobertas e compreensões mais elaboradas não somente no campo da ciência, como no da filosofia e da moral. Portanto, se Kardec era racista, e se hoje como espíritas ou espiritualistas nos damos conta disso, tanto melhor: identificamos então uma falha na doutrina, e cabe a nós corrigi-la, passo a passo, sempre em frente. Kardec não era infalível, nem nunca pretendeu ser... Era antes, como todos nós, humano.
Seriam os “povos selvagens” intelectualmente inferiores?
Tudo indica que não, e é esse o grande erro na interpretação de Kardec. Ora, não podemos confundir adiantamento tecnológico, econômico ou político com adiantamento intelectual ou moral a um nível “racial”. Sabemos que crianças selvagens, que se perderam nas selvas e foram criadas por animais como lobos (conforme o famoso exemplo de Amala e Kamala), quando “recuperadas” e inseridas de volta ao convívio com seres humanos, jamais deixam de se comportar como animais, sendo que na grande maioria das vezes sequer foram capazes de aprender a se comunicar (muito menos a ler e escrever). Da mesma forma que tanto crianças brancas quanto negras se parecerão muito quando criadas por animais em meio a selva, se forem criadas por pais amorosos e responsáveis, e educadas em grandes centros de ensino, não há absolutamente nenhuma teoria científica ou estudo estatístico que nos afirme que as negras, por exemplo, não se desenvolverão intelectualmente tanto quanto as brancas.
Dessa forma, por mais que nas ciências ocultas devamos considerar que em sua maioria os povos são formados por grandes egrégoras espirituais, nada impede que um espírito em grau moral e intelectual adiantadíssimo não encarne dentre os povos ditos “selvagens” [4] . De fato, teremos muitos exemplos de grandes sábios que encarnaram em meio a tais povos. Um deles, inclusive, nos deixou por escrito um registro histórico de seu grau de sabedoria. Vejamos o que o Chefe Seattle tinha a dizer ao então presidente americano, quando este lhe ofereceu uma oferta em dinheiro pela compra de suas terras (apenas um trecho):
“O Presidente em Washington diz que deseja comprar a nossa terra. Mas como pode comprar ou vender o céu, a terra? Essa ideia é estranha para nós. Cada parte dessa terra é sagrada para o meu povo. Cada agulha de pinheiro brilhante. Cada grão de areia da praia, cada névoa na floresta escura. Cada característica é sagrada na memória e na experiência do meu povo.
Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores são nossas irmãs. O urso, o veado, a grande águia são nossos irmãos. Cada reflexo na água cristalina dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz do meu pai. Os rios são nossos irmãos. Eles levam nossas canoas e alimentam nossos filhos [5].”
Conclusão
Kardec era um homem de seu tempo, mas isso não deve ser usado como desculpa para que levemos em menor consideração alguns dos seus erros de interpretação. De fato, quando o criticarmos diretamente neste ponto, estamos somente agindo de acordo com o que ele mesmo defendia como filósofo, cético e cientista – o que muitos detratores corriqueiramente se esquecem.
Se esta crítica, muitas vezes acompanhada de julgamentos ferozes e generalizações apressadas, é o máximo que os detratores do espiritismo conseguiram encontrar de errado na doutrina (ao menos no campo moral e humanista, pois se espíritos existem ou não, é uma outra história...), deveremos como espíritas ou simpatizantes nos sentir agraciados por seguirmos uma filosofia tão abrangente e extensiva, e com tão poucas falhas... E mesmo as falhas existentes, estas poderemos também reavaliar, reconsiderar, reformar!
O espiritismo não foi criado ou divulgado para se ancorar em textos seculares, pois esta seria a origem do dogma, e como cientista e livre-pensador, Kardec era claramente contrário a quaisquer espécies de dogma... Kardec fez centenas de perguntas aos espíritos, mas houveram perguntas com respostas mal interpretadas tanto quanto outras tantas que nem os espíritos souberam responder. Isso significa, obviamente, que o espiritismo não está pronto e acabado, e que cabe a nós continuarmos a codificá-lo, quebrando preconceitos e nos livrando da ignorância, um passo de cada vez [6].
O Espiritismo não teme a luz; ele a chama sobre suas doutrinas, porque quer ser aceito livremente pela razão. Longe de temer, pela fé dos Espíritas, a leitura das obras que o combatem, diz: Lede tudo; o pró e o contra, e fazei a escolha com o conhecimento de causa (Allan Kardec).
O Espiritismo, restituindo ao Espírito o seu verdadeiro papel na criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais o orgulho fundou castas e os estúpidos preconceitos de cor. O Espiritismo, alargando o círculo da família pela pluralidade das existências, estabelece entre os homens uma fraternidade mais racional do que aquela que não tem por base senão os frágeis laços da matéria, porque esses laços são perecíveis, ao passo que os do Espírito são eternos (Revista Espírita 1861, pág. 297-298).
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[4] Apesar de raro, não é impossível que um espírito de uma determinada cultura e etnia (e suas egrégoras) reencarne na vida seguinte numa cultura diversa. Em seus estudos de crianças que lembram vidas passadas, Ian Stevensson encontrou um ou outro caso do tipo, e a "simpatia" do espírito por sua cultura anterior era geralmente tão evidente que eles faziam de tudo para "retornar" a região de sua etnia na vida anterior. Também há casos mais dramáticos, infelizmente, quando todo um povo é dizimado, e os espíritos reencarnantes são obrigados a se "deslocar" para outros povos.
[5] Veja aqui um resumo mais extenso da Carta do Chefe Seattle, um dos grandes textos espiritualistas da humanidade...
[6] Se você é espírita, talvez se entusiasme mais por essa extensiva e detalhada defesa que Paulo da Silva Neto Sobrinho faz a Kardec em relação a acusação de racismo. No entanto, não posso afirmar que se trate de um texto totalmente imparcial, como espero que tenha sido o meu - na medida em que espero, igualmente, um julgamento imparcial de cada leitor.
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Crédito da imagem: Reed Kaestner/Corbis
Marcadores: Allan Kardec, artigos, artigos (141-150), crítica, debates, espiritismo, espiritualidade, índios, racismo
13 comentários:
Olá Rafael!
Uma coisa que tanto os opositores quanto os defensores não costumam citar, é que os componentes da comunicação são: o emissor, o receptor, a mensagem, o canal de propagação, o meio de comunicação, a resposta (feedback) e o ambiente onde o processo comunicativo se realiza...
Acho que estudar e compreender esses fatores é uma boa diretriz para aquele que quer se aprofundar nessa área...
Abraços,
É verdade. E esse tipo de estudo se torna, no mínimo, mais intrigante, quando estudamos a mediunidade.
Pois ainda que não se creia na existência de espíritos, ainda há muitas lacunas na questão da origem das informações - por exemplo, no caso das 3 médiuns que ditaram as respostas do Livro dos Espíritos, fica muito difícil crer que elas sabiam de forma consciente (ou até mesmo inconsciente) sobre tudo aquilo que estavam comunicando, ainda antes de completarem 19 anos (em uma época em que a educação das mulheres jovens nem de longe lembra a época atual).
Abs!
raph
Post genial.Você foi totalmente imparcial.Parabéns!!!!
Oi Kpaxx, que bom, procurar ser realmente imparcial foi meu maior esforço nesse artigo...
Abs!
raph
Acredito que deveriam ser mencionadas, ao menos como notas adicionais, exemplos de questões "que nem os espíritos souberam responder," pois que a explicação que me lembro sobre tais questões, é de que nem todas as perguntas poderiam ser respondidas, não por falta de conhecimento a partir do mundo espiritual (filosoficamente com muito menos véus sobre a verdade), mas por alguns outros motivos, como respeito ao processo de evolução material sendo o principal e mais abrangente.
Numa Nota Explicativa em torno desse assunto da Editora FEB no final do "O Livro dos Espíritos" tem a seguinte citação da Editora:
"[...] é lícito concluir que na Doutrina Espírita vigora o mais absoluto respeito à diversidade humana, cabendo ao espírita o dever de cooperar para o progresso da Humanidade, exercendo a caridade no seu sentindo mais abrangente ("benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros e perdão das ofensas"), tal como a entendia Jesus, nosso Guia e Modelo, sem preconceitos de nenhuma espécie: de cor, etnia, sexo, crença ou condição econômica, social ou moral."
Devemos pois como estudiosos da Doutrina codificada por Kardec e ditada pelos Espíritos Superiores, Mensageiros do Plano de mais alto tirar as nossas conclusões. É a chamada "Fé raciocinada".
Um abraço
Bruno,
Essa questão demandaria talvez um outro artigo em separado, mas pelo que me lembro a questão da origem dos espíritos, ou de como Deus gera um princípio inteligente, não pôde ser respondida nem por Sto. Agostinho - se não me engano ele foi bem específico, afirmando que não sabia mesmo da resposta.
Abs
raph
Infelizmente devo admitir o racismo em alguns dos pensamentos de Kardec. Pode até se dizer que era um racismo sem malícia mas ainda sim racismo. Não acredito que faça com que o Espiritismo seja um doutrina satanica e destinada ao fogo do inferno como muitos querem fazer crer. Ao contrário, prova que ela deve ser analisada como qualquer obra, de forma intelectual e cuidadosa sem aceitar nenhuma afirmação cegamente como lhe ensinaria o próprio Kardec que nunca afirmou ser ele nem sua doutrina perfeitos. Acredito que um erro muito comum dentro do Espiritismo é o de considerar a obra Kardecista como a Biblia do Espiritismo, trazendo com esse pensamento todas as limitações das religiões que fazem uso de "livros sagrados".
Exato, afinal se chama "Espiritismo" e não "Kardecismo" :)
Raph,
Muito bacana seu trabalho. Sério!
O espiritismo precisa, aos poucos, sair da caixa e se admitir em posição além da religião. Assim, passaremos a convergir um pouco mais com a diversidade humana.
Infelizmente, o conceito de religião foi distorcido, ao longo da história, o que fez com que a segmentação sócio-religiosa se intensificasse e as consequentes agressões "tribais" se proliferassem de maneira distinta dos tempos da pré-história e antiguidade.
A análise "racista" do Professor Rivail (antes de tudo, ele era o Hypolite) deve ser apreciada sem o olhar pejorativo de hoje. Ao elaborar este entendimento sobre os ensinamentos transmitidos pelos espíritos, Rivail não pretendeu excluir ou segmentar a humanidade em classes meramente superiores e inferiores, dando a entender que uns são melhores que outros. Tratou-se de uma tentativa pessoal de compreender a pluralidade das diferenças humanas, considerando as idéias dos espíritos.
Enfim, este tema é muito interessante e dá muita lenha pra fogueira queimar...
Abraços.
Lucas.
Obrigado Lucas,
Realmente é muito difícil avaliarmos o que a sociedade entendia por certos conceitos há 150 anos, mas se Kardec foi racista, não é culpa da espiritualidade, e sim da humanidade de sua época - da qual ele fazia parte, não foi santo, mas humano.
Um espírito, obviamente, não pode ser racista. Ao menos um espírito que se compreende como espírito.
Abs
raph
Mas existe sim QIs diferenciados na humanidade! Isso é científico.
Os pigmeus africanos estariam entre os mais baixos com 55 a 60. Os Orientais são os que têm o QI mais alto acima de 100, depois os europeus e assim sucessivamente.
Paulo, o racismo sem dúvida já foi científico. Felizmente a ciência evoluiu:
http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/89206/Só-existe-uma-raça-e-ela-surgiu-na-África.htm
Abs
raph
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