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21.4.22

O que é o Sefirat ha Ômer?

Neste vídeo Raph faz um panorama geral do Sefirat ha Ômer (ou Contagem do Ômer, uma prática do misticismo judaico) e responde a 7 das principais questões de quem nunca ouviu falar do tema - ou conhece muito pouco do assunto, mas se interessa em saber mais.. Assista abaixo:

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18.4.22

Eu sou, eu era, e eu serei

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

Assim se inicia o livro de João, parte do Novo Testamento bíblico. É muito comum que se use essa frase para associar a ideia de Deus com o vociferar, o verbalizar, o colocar em palavras, o que em última análise também está associado a causar alguma alteração no mundo lá fora, a expressar o que se sabe, o que se sente, em suma: a evangelizar, difundir a palavra sagrada.

Entretanto, é estranho de se pensar que a palavra mais sagrada das religiões abraâmicas (que remontam a Abraão) é um dos termos de significado mais complexo e, em geral, desconhecido da maioria dos seus seguidores. A inscrição mais antiga conhecida que contém o tetragrama YHWH é a Pedra Moabita, de cerca de 840 a.C., que celebrou a vitória de um rei moabita sobre um rei israelita. O tetragrama também foi encontrado em inscrições menos solenes de fragmentos de cerâmica um pouco mais recentes. Aparece, por exemplo, nas chamadas Cartas de Laquis, que contêm frases como “Que YHWH faça que meu senhor ouça hoje mesmo notícias de paz”.

Mas o que é YHWH afinal? Ele se refere as quatro letras do alfabeto hebraico que compõem o nome de seu Deus (escritas da direita para a esquerda): י (yod), ה (he), ו (vav, chamada também waw), e de novo ה (he). Em português (assim como em inglês e francês) a transliteração usual é YHWH, mas encontram-se também na forma YHVH (como em espanhol). Isso significa que os antigos hebreus vociferavam um som parecido com Iodhêvavhê quando se referiam ao seu Deus. Dito isso, até aqui não demos nenhum significado a YHWH muito diferente de dizer que “Deus” se escreve com um D, seguido de um E, um U e um S. Então precisamos repetir a pergunta: mas o que é YHWH afinal?

Para atingir o significado mais profundo de YHWH, a princípio não é necessário ser um cabalista com décadas de experiência mística, mas antes um especialista no... hebraico. Há um trecho do livro do Êxodo, no Antigo Testamento bíblico, que nos dá uma bela pista sobre o significado de YHWH para um hebreu:

Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: Qual é o seu nome? Que lhes direi?
E disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.

(Êxodo 3:13,14)

Esse trecho corrobora a tese de alguns estudiosos do hebraico bíblico que afirma que Deus, ou YHWH, não é propriamente um substantivo, mas um VERBO! YHWH não somente é, como está sendo, foi e será: um verbo conjugado em todos os tempos existentes, um verbo que está na fonte do que existe, no princípio, mas também no fim de todas as coisas; e, igualmente, em todas as coisas em todos os tempos.

Há um ensinamento da tradição oral judaica, atribuído ao Rabino Akiva, em que o próprio Deus afirma:

Eu sou, eu era, e eu serei. Eu era antes do mundo ser criado, eu sou desde que o mundo foi criado, e eu serei aquele que estará no mundo vindouro.

Esse tipo de interpretação é poderoso porque não deixa nenhuma margem para que possamos considerar qualquer coisa, em qualquer tempo, como estando fora, ausente, ou até mesmo distante de Deus. De fato, não há como algo EXISTIR sem que isso implique a existência em si, e a existência em si é parte de Deus.

Assim, Deus sempre esteve mais próximo de você do que o seu próprio olho, e quando você respirou a primeira vez após vir ao mundo como um ser humano, o ar que respirou era Deus, assim como seus pulmões e a placenta que ainda o conectava a sua mãe. E, ainda que não possamos nos lembrar por certo onde estávamos antes do nascimento, muito antes da própria Terra se formar, muito antes dos primeiros elementos pesados serem forjados nos núcleos dos primeiros sóis, Deus já estava lá, porque não é possível se falar em existência sem usar o verbo existir: se um universo existe, se há algo que chamamos de espaço-tempo, então lá também está Deus.

Eu poderia decorar esse texto com mais infindáveis parágrafos acerca do que existe, poderia lembrar de Krishna e do Bhagavad Gita, ou do Tao no livreto de Lao Tse, ou até mesmo da Substância de Espinosa e outros conceitos mais metafísicos do neoplatonismo e do hermetismo, mas o que considero mais importante aqui não são as palavras, mas o verbo, o existir, o estar sendo, e isso é algo que vai muito além das palavras, meras cascas de sentimento.

Então abandone estas palavras, abra a janela e olhe para fora, esteja onde estiver, e simplesmente sinta que existe, abra seu coração e sua alma para o estar sendo, aqui e agora: lembre-se de que aquilo que busca também sempre esteve lhe buscando, mas deixe as palavras para depois...

raph

***

Com agradecimentos a Caio Ribeiro Chagas pela exposição inicial do conceito de YHWH como verbo, no podcast Pele de Cordeiro sobre o Sefirat ha Ômer.

Crédito das imagens: [topo] Noah Holm/unsplash; [ao longo] Tanner Mardis/unsplash.

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18.5.20

Bate-papo Mayhem: o aspecto emocional do Sefirat ha Ômer, com Raph

Oi pessoal. Enquanto não volto a postar vídeos no canal do Textos para Reflexão, vocês podem aproveitar para assistir a minha participação no programa Bate-papo do Projeto Mayhem, onde fui recebido pelo meu amigo Marcelo Del Debbio e falei sobre o aspecto emocional do Sefirat ha Ômer, uma prática de meditação do misticismo judaico:

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15.4.19

Sefirat ha Ômer 2019

Contagem do Ômer, ou Sefirat ha Ômer, é o nome dado à contagem dos 49 dias ou sete semanas entre Pessach e Shavuót, feriados judaicos correspondentes, respectivamente, a Páscoa e ao dia de Pentecostes. Nesta Contagem mística (de origem judaica), meditamos todos os dias relacionando sete das esferas da Árvore da Vida da Kabbalah com elas próprias e também com as demais, totalizando exatamente os 49 dias de Contagem (7x7=49).

Em 2014 eu segui a Contagem conforme proposta pela Kabbalah Hermética, seguindo o passo a passo organizado pelo meu amigo Marcelo Del Debbio (você pode ver toda a explicação e os vídeos de cada dia da Contagem aqui). De forma inteiramente inesperada, acabei escrevendo (o verbo mais correto provavelmente seria “recebendo”) um novo poema a cada noite da minha Contagem, o que acabou se tornando um livro chamado 49 noites antes da Colheita (disponível em e-book e versão impressa). Todos os 49 poemas foram recitados e gravados em áudio, e hoje estão disponíveis gratuitamente no nosso canal do YouTube.

A Contagem de 2019 se inicia em 20 de Abril, ao pôr do sol. Para celebrar mais um ano de Ômer, trago abaixo os 49 tweets que postei no meu twitter, respectivos a minha meditação do ano passado:

• Todos os primeiros passos foram dados por amor. [1/49]

• Cada passo, cada sentimento, ao seu ritmo. [2/49]

• Assim, ama a quem vai a frente, mas também a quem vai atrás. Ama quem vai a sua direita, e quem vai a sua esquerda. [3/49]

• Ama cada ser. Cada forma com a qual a Vida dá forma e observa a si mesma. [4/49]

• E saiba que, no Caminho do Amor, há um mandamento não escrito: "submissão". [5/49]

• E quem de fato o compreendeu, sabe que o Amor é, foi e sempre será: eterno. [6/49]

• Amadurecido no camimho, amo por amar; não como quem quer guardar um tesouro num cofre, mas como quem vê o ouro espalhado junto a brisa do deserto, e sorri. [7/49]

• Caminho com um sonho em meu horizonte: o dia de alcançar o Amor que julga estranho apenas o que é estranho. [8/49]

• Não perambulo por este deserto a esmo, há um monte onde preciso chegar. Há uma festa para a qual eu também fui chamado. [9/49]

• Cruza um beduíno em meu caminho. É velho, fala num jeito manso, tem a pele desgastada e os olhos cintilantes. Ele me pede um pouco da água do meu cantil. Subitamente, sinto por ele um Amor imenso, além das palavras. [10/49]

• Ninguém atravessa um deserto sem conhecer os seus oásis. [11/49]

• Além das ideias de certo e errado, há um oásis no deserto. Toda travessia passa por ele, por deitar em sua relva, por beber de sua água; e, então, retornar ao mundo. [12/49]

• Nesta senda pelo deserto, mestre e discípulo avançam somente de mãos dadas. [13/49]

• Bendito é o mestre que anseia por discípulos que possam, ainda nesta vida, lhe ultrapassar em sabedoria. [14/49]

• Ama verdadeiramente quem é capaz de transbordar a si mesmo. [15/49]

• O Amor não é um jogo com regras estabelecidas. O Amor é uma experiência. [16/49]

• São tantas as belezas neste Caminho: são incontáveis, e todas passarão. Tudo passa, exceto o Amor que sentimos contemplando a beleza em si mesma, o Amor que arde na eternidade. Eu quero fogo, fogo! [17/49]

• Quem quase nunca julga, raramente poderá ser julgado. [18/49]

• Jamais vi fruto algum com a casca assinada: "feito pela Terra". [19/49]

• Quem ama tem um compromisso com a própria alma. [20/49]

• Nessa travessia é preciso amar quem segue se arrastando pela areia da mesma forma com que amamos quem vai saltitante, bem lá na frente... [21/49]

• Muitos países foram conquistados pelas armas e seus soldados, mas somente o Amor pode conquistar uma alma. [22/49]

• Muitos dos que se arrastam pela retaguarda não são velhos nem mancos: eles estão atados pelos tornozelos a pesados grilhões; e é de bom grado que carregam suas bolas de chumbo. [23/49]

• Quem quer que chegue primeiro no local da Colheita, terá a nobre função de ajudar nos prepartivos da festa, enquanto se aguarda pelos demais... [24/49]

• Uma alma verdadeiramente antiga jamais se portará de forma intolerante para com os erros de quem dá seus primeiros passos no Caminho. [25/49]

• A noite, no deserto de si, sob a luz de incontáveis estrelas, é impossível não se sentir pequenino. [26/49]

Amor nunca foi posse, mas vínculo, entrelaçamento de almas. [27/49]

• Ninguém atravessa o deserto pela fama de grande explorador. Atravessamos o deserto porque é esta a única via para a Colheita. [28/49]

• O verdadeiro caminhante coloca sua Obra acima de si mesmo: ele já não tem importância alguma, só importa a luz que é capaz de refletir. [29/49]

• O verdadeiro caminhante nunca pediu pela guerra, mas sempre fez parte do exército da Vida. [30/49]

• O verdadeiro caminhante é sempre grato e atento a todas as lições do Caminho. [31/49]

• Foi justamente a grama, a mais humilde das plantas, a que transformou esta parte do deserto num oásis... [32/49]

• Enquanto não se ama por amar, enquanto não se compreende que o Amor é o próprio tesouro, que o Amor basta a si mesmo, é impossível alcançar a essência desta realidade... [33/49]

• A melhor forma de vencer este deserto é caminhar de mãos dadas. [34/49]

• A verdadeira majestade advém do exemplo. [35/49]

• O Amor é um compromisso com a experiência de se estar vivo, aqui e agora... [36/49]

• Quem evita o seu próprio deserto está fadado a se arrastar solitário, apartado de si, junto a multidão. [37/49]

• A melhor ajuda é aquela de quem transborda o próprio coração, e atinge às margens dos desertos alheios. [38/49]

• Quem ama tem compromisso com o Amor em si. O Amor é seu próprio tesouro. [39/49]

• Morrer para si; desvanescer como a areia soprada pelo vento; renascer de uma semente de Amor: é tudo isso o que se faz neste deserto. [40/49]

• Desde que iniciei minha caminhada, jamais vi o sol faltar ao seu compromisso com o dia, ou a lua com a noite. [41/49]

• O Amor não tem compromisso algum com a violência, a ignorância ou o sentimento de posse. O Amor tem compromisso consigo mesmo, a Vida tem a sua própria agenda... [42/49]

• Esta jornada é tão longa e extenuante, por que alguém iria querer passar por tantos sacrifícios? Mas eu nem quero, nem não quero, eu amo. Eu sirvo ao Amor, e de bom grado! [43/49]

• Nenhum ser humano é capaz de conhecer toda a extensão de seu próprio deserto. Ainda é preciso outro ser humano para se descobrir nossos recônditos mais ocultos. O olhar de quem amamos é o olhar de Deus... [44/49]

• O Amor em movimento, o Amor como exemplo, supera qualquer texto, vale mais que qualquer discurso. [45/49]

• Aqui, no deserto de mim, após a longa caminhada, perdi tudo o que tinha, restou apenas o Amor: o que sou. [46/49]

• Quando não há nada no mundo além da noite, do deserto, da lua e das estrelas, você subitamente se torna agredecido por tudo o que existe. [47/49]

• O compromisso com quem se ama verdadeiramente é perene, vence qualquer distância: um jamais esteve fora do outro. [48/49]

• Não há soberania mais elevada do que a submissão ao Amor. [49/49]


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Crédito da imagem: Google Image Search

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14.9.16

Os domingos precisam de feriados

Texto por Nilton Bonder, rabino e escritor. Os comentários ao final são meus.

Toda sexta-feira à noite começa o shabat para a tradição judaica. Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção, inspirado no descanso divino, no sétimo dia da Criação. Muito além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta. Hoje, o tempo de ‘pausa’ é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações ‘para não nos ocuparmos’. A própria palavra entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições. Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Entramos no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores, atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim. Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado.

Nossos namorados querem ‘ficar’, trocando o ‘ser’ pelo ‘estar’. Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XXI – um dia seremos nossos? Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção. O dia de não trabalhar não é o dia de se distrair – literalmente, ficar desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que as pessoas se fazem no descanso é ‘o que vamos fazer hoje?’ – já marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

Quem ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este o grande ‘radical livre’ que envelhece nossa alegria – o sonho de fazer do tempo uma mercadoria. Em tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.


Comentários
Quando o tempo é compreendido como dinheiro, todo o tempo, a própria vida se torna um trabalho sem fim, isto é, um trabalho escravo. E o pior de tudo é que, quando estamos profundamente seduzidos por tal ideia, somos o escravo ideal: aquele que se apraz com sua escravidão, e até mesmo a glorifica.

Isso nada tem a ver com falta de disciplina. É perfeitamente possível ser disciplinado no trabalho e no lazer. É perfeitamente possível organizar o dia a dia ao ponto de valorizar mais o lazer que o trabalho, de modo a ser o mais produtivo possível no menor número de horas. Na Escandinávia já estão se voltando para uma jornada de 6h diárias de trabalho, com aumento de produtividade. Não à toa, eles são o primeiro mundo do primeiro mundo.

E faz todo sentido: o que valoriza o seu trabalho, para além de se amar o que faz (o que nem sempre é possível, ao menos não 100% do tempo), é exatamente o que ele lhe proporciona de lazer. E lazer não é gastar o tempo com entretenimento ou consumismo desenfreado. Lazer, de verdade, é poder contemplar a imensidão do mundo, é poder usar um dia todo para não fazer absolutamente nada. Nada além de estar aqui, vivo, existindo. Lazer, enfim, é viver o tempo, e não gastá-lo.

Os índios já sabiam disso, talvez por isso eles falem que o mal do homem moderno é o seu grande esquecimento. Para a alma, afinal, só existe o agora. E, para quem acha que tempo é dinheiro, esse agora se torna uma mercadoria além de qualquer possibilidade de aquisição.

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Crédito da foto: Steve McCurry (Rio de Janeiro visto de Niterói)

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26.6.15

Hipátia e Sinésio, parte 2

« continuando da parte 1

A Herculiano,

[...] Nós vimos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos a Senhora [Hipátia] que presidia, com legitimidade, sobre os mistérios da filosofia. E se acaso aqueles que compartilham tal laço de união são chamados a se relacionar, daí uma lei divina nos incita, a nós que estamos unidos pela mente, a nossa melhor parte, a honrar as qualidades uns dos outros.

[...] Viver de acordo com a razão é o alvo de todos os homens. Busquemos, portanto, tal alvo em vida; supliquemos que Deus transforme nossos pensamentos em coisas divinas, e nos dediquemos, tanto quanto for possível, a colher a sabedoria de todos os lados.


Esta outra carta de Sinésio, da qual trago somente alguns trechos [1], foi endereçada a Herculiano em 395 d.C. Nesta época ambos eram alunos de Hipátia em Alexandria, porém Herculiano (de quem sabemos muito pouco além do nome e do fato de provavelmente se tratar de um membro de alguma família rica da região) foi obrigado a retornar a sua terra natal. Logo Sinésio seguiria o mesmo caminho, e após alguns anos inesquecíveis aprendendo com sua mestra, também retornaria para onde nasceu, Cirene.

Ele ainda teria viajado algumas vezes para visitar Hipátia nos anos seguintes, porém as visitas vinham se tornando cada vez mais raras e complicadas, primeiro porque Sinésio já havia e se casado e tido seu primeiro filho, e segundo porque sua capacidade intelectual o levou, ainda que provavelmente a contragosto, a atuar na esfera política.

Em 399 Sinésio chefiou uma comitiva até Constantinopla, para negociar uma redução de impostos para sua cidade junto ao imperador Arcádio. Foi obrigado a residir por cerca de 3 anos na cidade, mas finalmente retornou com sua missão cumprida. Talvez tenha conseguido visitar prolongadamente Alexandria durante os anos seguintes, mas logo foi obrigado a retornar a Cirene novamente, desta vez para uma tarefa ingrata: comandar a defesa de suas fronteiras contra invasores vindos do deserto.

Novamente foi vitorioso, tendo inclusive elaborado um novo modelo de catapulta para as defesas da cidade. Desta feita, seus concidadãos ficaram tão entusiasmados com seus serviços prestados que decidiram lhe conceder um presente que ele, na verdade, aceitou com muita relutância: o cargo de Bispo em Cirene.

Naquele século ainda não fazia muito tempo que o cristianismo tinha sido conclamado a “religião oficial” do Império Romano. Nesta aurora da igreja cristã, os cargos de liderança eclesiástica muitas vezes tinham mais a ver com os afazeres governamentais e políticos do que propriamente com a condução das práticas religiosas.

Noutra de suas cartas que sobreviveram aos séculos, Sinésio conversa com outro companheiro das aulas de Hipátia, Olímpio, sobre a necessidade de evitar a luta por cargos, honras e carreiras políticas que satisfaçam somente ambições superficiais, e não valores humanos autênticos. Nessa correspondência, Sinésio parece consciente de que não conseguirá mais se afastar das suas obrigações na vida pública, e fala acerca do prazer de ainda poder desfrutar de alguns períodos de tranquilidade nas paisagens rurais em torno de Cirene, inteiramente dedicados à reflexão: “Temos tempo para a filosofia, mas não para fazer o mal”.

Mas ah!, quem dera todos os bispos da igreja fossem homens como Sinésio, fosse assim não somente sua mestra poderia haver escapado de seu triste destino, como todo o mundo ocidental seria outro, melhor, mais justo e mais iluminado pelo sol... A história, infelizmente, não transcorreu dessa forma.

Os eventos que terminaram no brutal assassinato de Hipátia tiveram muito mais a ver com uma disputa política pelo poder em Alexandria do que propriamente com uma disputa religiosa, tanto mais com uma disputa entre o cristianismo e o helenismo. Não, a disputa mais incendiária, desde aquele tempo, já era entre cristãos e judeus...

Os dois atores principais que ansiavam estabelecer um poder hegemônico sobre o governo de Alexandria eram Orestes, o prefeito augustal e governador secular da cidade, e Cirilo, o Patriarca (espécie de arcebispo) alexandrino. Ora, muito embora um representasse diretamente a igreja cristã, e outro exercesse um cargo público, fato é que ambos eram batizados e professavam publicamente o cristianismo. Onde estava, portanto, a disputa entre cristãos, judeus e pagãos?

Ocorre que no início daquele século, Alexandria era uma das maiores cidades do mundo, e uma potência comercial onde residiam muitas comunidades de relativa riqueza. Dentre elas, a mais rica era certamente o grupo pagão, cuja ancestralidade helênica havia garantido nobres heranças. Logo após tínhamos a comunidade judaica e enfim a comunidade cristã, que exatamente por ser a mais pobre (em média), era também a mais numerosa.

Orestes, como governador astuto, tentava sustentar suas chances de ascensão à hegemonia praticando relações amistosas com todos os três grupos. Cirilo, por outro lado, sabia que a sua única chance de agaranhar o poder total sobre a cidade seria com a vitória do cristianismo sobre as demais crenças, assim eliminando de vez quaisquer chances que Orestes poderia ter de vencer aquele embate político. Vejam bem, “embate político”, pois naquele contexto a religião era usada como mera desculpa para manobrar o povo em direção a este ou aquele projeto de poder (como vemos, até hoje não mudou tanta coisa, não é mesmo?).

Pelos seus desentendimentos constantes com a comunidade judaica alexandrina, é presumível que Cirilo tivesse um ódio pessoal para com os judeus em geral. Após várias trocas de ameaças que evoluíram com os anos, os judeus organizaram um ataque que terminou por matar muitos monges armados (chamados parabolani, que eram uma espécie de “guarda armada do Patriarca”), assim como diversos cristãos desarmados, num incêndio criminoso numa igreja.

Cirilo respondeu duramente ao ataque, destruindo sinagogas, saqueando as casas dos judeus mais abastados, e enfim expulsando toda a comunidade judaica da cidade. Este foi um resultado catastrófico para as pretensões de Orestes, pois ao mesmo tempo perdera o apoio tanto de toda a comunidade judaica (que fora banida) como de muitos cristãos, que não perdoaram o ataque dos judeus e passaram a apoiar Cirilo.

Ao governador restava somente o apoio dos helênicos; e dentre eles, todos sabiam, a maior autoridade moral se centrava em Hipátia, que além de tudo era amiga pessoal de Orestes e muitas vezes lhe aconselhava diretamente... Ora, a luz de Hipátia era ofuscante demais para que Cirilo arriscasse um debate direto, era preciso se livrar da filósofa com uma artimanha mais suja e sorrateira, uma arma usada somente pelos homens mais mesquinhos e ignorantes, mas mesmo assim extremamente eficaz: a boataria.

Numa comunidade composta majoritariamente de iletrados e propensos as mais diversas crenças mágicas, não foi muito difícil “convencer” as pessoas de que aquela mulher pagã, de família nobre e antiga, que se atrevia não somente a ensinar aos homens assuntos “não religiosos”, como também a aconselhar diretamente o governador, decerto seria uma diabólica praticante de magia negra, uma bruxa que seduzia a todos que escutavam suas palavras!

Assim chegamos aos tenebrosos eventos do dia 8 de março de 415 d.C., que prefiro não descrever, então os deixo com as palavras de Sócrates Escolástico [2]:

Foi então que a inveja se irrompeu contra esta mulher. Sucedia que ela passava muito tempo com Orestes, o que deu procedência as calúnias que a condenavam entre o povo ligado à Igreja, como se ela fosse a culpada de Orestes haver se distanciado do Patriarca. Com efeito, alguns homens que lhe faziam iradamente a mesma acusação a seguiram quando voltava para casa. Então, a arrancaram de sua carruagem e a arrastaram para o interior da igreja chamada Cesarion. Rasgaram suas roupas e depois a mataram usando cacos de cerâmica [ostraka]. Quando terminaram seu esquartejamento, tendo dilacerado cada um de seus membros, levaram o corpo para um lugar chamado Cinaron e lá o queimaram.

***

Assim deixou este mundo a maior das filósofas, cuja vida foi ainda mais grandiosa por haver sido a vida de uma mulher em meio a um mundo de homens, um brutal mundo de homens...

Se nos serve de algum consolo, tal notícia nunca chegou aos ouvidos de Sinésio, que havia morrido pelo menos um ano antes, em meio à amargura de não receber mais nenhuma correspondência de sua mestra.

Não nos cabe dizer o motivo exato pelo qual Hipátia deixou de responder ao seu querido e fiel aluno. Na sua condição de bispo, o envolvimento de Sinésio na disputa em Alexandria provavelmente não teria a auxiliado em muita coisa, embora certamente colocasse o seu cargo e a sua própria vida em risco. A filósofa, em sua sabedoria, provavelmente estaria a par do fato, e preferiu deixar que Sinésio pensasse que ela o havia esquecido.

Mas se há uma coisa essencial nesta triste e grandiosa história, é que ela não pode e não deve, jamais, ser esquecida...

***

[1] Fonte original (em inglês): Livius.org. A tradução é de Rafael Arrais.

[2] Trecho de Historia ecclesiastica. Retirado do livro de Maria Dzielska.

Bibliografia
Hipátia de Alexandria, Maria Dzielska (Relógio D’Água); Wikipedia; Livius.org

Vídeo
Este artigo serviu de base para o roteiro do vídeo Hipátia de Alexandria, a grande mestra no canal Conhecimentos da Humanidade do YouTube.

Crédito da imagem: Ágora/Alexandria/Divulgação (apesar de se valer de diversas “licenças poéticas e românticas”, este filme estrelado por Rachel Weisz no papel de Hipátia é, no geral, bem intencionado, e certamente merece ser visto)

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19.11.14

Pela manhã...

Atentem para a imagem acima. Parece uma banda dessas que tocam na rua e vendem CDs não? Bem, a peculiaridade é que eles tocam nas ruas de Istambul, e quase sempre em hebraico... Além de contarem com uma das cantoras mais belas do mundo, mas já voltamos a eles...


Salomão ibn Gabirol foi um filósofo neoplatônico e poeta judeu que viveu na Espanha durante o período de dominação islâmica, no século XI. Abaixo lhes trago minha tentativa de tradução para o seu poema Shachar avakshecha (Pela manhã), que embora certamente esteja bem aquém do original hebraico, acredito que tenha mantido parte da sua essência:

Pela manhã eu busco a Ti,
Tentei encontrá-Lo no refúgio das rochas,
Mas você só se pronuncia no momento certo
Entre a alvorada e a tardinha.

Sob a Sua grandeza eu me prostro,
E permaneço com este temor,
Pois sei que todos os meus pensamentos mais ocultos
Estão nus, diante de Ti.

O coração e a voz pouco podem fazer
Ante a Sua glória;
As histórias permanecem pequenas,
Assim como nossas almas.

Porém, da mesma forma como o som dos tambores
Podem Lhe parecer agradáveis,
Eu Lhe louvarei em meu cântico
Enquanto Seu hálito passa através de mim.


Pois bem, retornemos a tal banda...

Light in Babylon (Luz na Babilônia) é um grupo musical turco que traz uma fusão de diferentes etnias e culturas. Michal Elia Kamal (cantora e compositora) é nascida em Israel, mas sua família tem origem iraniana; Metehan Çifçi (santour, um instrumento exótico) é nascido na própria Turquia; e Julien Demarque (violão) veio da França. Suas influências musicais aliam a tradição cosmopolita de Istambul com as antigas tradições sefarditas (judeus da Península Ibérica), e o som de sua música parece se conectar imediatamente com a alma das pessoas.

Abaixo, temos a versão cantada do poema acima, com melodia de autoria dos integrantes da banda, e com a voz celestial de Michal... Sim, ela é mesmo uma das cantoras mais belas do mundo, em todos os sentidos:

***

» Veja outra versão ao vivo da mesma música (Sokak Festivali)

Crédito da imagem: Divulgação (Light in Babylon)

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11.5.14

A Contagem do Ômer

A Contagem do Ômer

Até o dia seguinte ao sétimo sábado contareis cinquenta dias; e oferecereis uma nova oferta de cereais a Jeová. E quando segardes as searas da vossa terra, não segareis totalmente os cantos do vosso campo, nem colhereis o rabisco da vossa seara; para o pobre e para o estrangeiro o deixareis: eu sou Jeová vosso Deus – Levítico, 23:16 e 23:22 (Sociedade Bíblica Britânica)


Contagem do Ômer, ou Sefirat ha Ômer, é o nome dado a contagem dos 49 dias ou sete semanas entre Pessach e Shavuót, feriados judaicos correspondentes, respectivamente, a Páscoa e ao dia de Pentecostes. A Pessach, também conhecida como “Festa da Libertação”, celebra a fuga dos hebreus da escravidão no Egito em 14 de Nissan no ano aproximado de 1280 a.C. Ora, Nissan é o mês do calendário judaico que se inicia com a primeira lua nova durante a época em que a cevada já plantada atinge o seu amadurecimento. A Contagem do Ômer (sefirat significa “contagem”) tem, portanto, a sua utilidade prática, que é a contagem dos dias até que a cevada esteja pronta para a colheita. Ômer era uma medida antiga de grãos secos, e equivalia a aproximadamente 2,2 litros.

O caráter festivo mais antigo de Shavuót é o de uma festa campestre. Ao final da Contagem, já no mês de Sivan do calendário judaico, era realizada a colheita da cevada e de outros cereais. Grandes grupos de agricultores afluíam de todas as províncias, e o país adquiria um aspecto animado e pitoresco. Todos se dirigiam a Jerusalém, acompanhados durante todo o trajeto pelos alegres sons das flautas. Em cestos decorados com fitas e flores, cada qual conduzia a sua oferenda: primícias do trigo, cevada, uvas, figos, romãs, azeitonas e tâmaras. Chegando à Cidade Santa eram acolhidos com cânticos de boas vindas e adentravam ao Templo, onde faziam a entrega de seus cestos ao sacerdote. A cerimônia se completava com hinos, toques de harpas e outros instrumentos musicais.

Há uma outra razão para o Shavuót ser tão festivo. Ocorre que a Contagem do Ômer (os 49 dias que o antecediam) não era exatamente um período de grandes alegrias, mas sim de introspecção, e até mesmo melancolia... Nesses dias, os hebreus também refaziam em seu imaginário os passos da jornada de seus antepassados do Egito ao Monte Sinai, em sua fuga angustiada do jugo do Faraó.

Posteriormente, o período da Contagem também passou a ser considerado um período de luto em memória à peste que matou centenas de discípulos do rabino Akiva. Costumeiramente os homens não se barbeavam e nem celebravam casamentos neste período. O único dia em que se abandonava o luto era no Lag Baômer, o trigésimo terceiro dia da Contagem (Hod shebe Hod), e o dia que marcou o fim definitivo dos casos da doença.

Este dia era também o dia em que faleceu o rabino Shimon bar Yochai, considerado o grande precursor da Cabala, uma vertente mística do judaísmo tradicional. E foi exatamente através da Cabala que a Contagem do Ômer deixou de ser somente uma tradição agrícola, ou histórica, para se tornar um dos maiores rituais de meditação e autoconhecimento do mundo, praticado simultaneamente por milhares (quiçá milhões) de pessoas em todo o globo, todos os anos.

Nesta Contagem mística, meditamos todos os dias relacionando sete das esferas da Árvore da Vida com elas próprias e também com as demais, totalizando exatamente os 49 dias de Contagem (7x7=49). A Árvore da Vida, na tradição da Cabala, representa um sistema hierárquico que pode ser lido de duas formas: De cima para baixo, se inicia na centelha divina (Kether), e vai se tornando mais “densa”, até atingir o mundo físico (Malkuth). De baixo para cima, se inicia na consciência “mundana”, que vai se elevando, esfera por esfera, até que se abra inteiramente para a comunhão com a divindade do Cosmos. Estes dois caminhos representam tanto a criação de tudo que há a partir desta substância primeira, como o caminho de religação que a consciência humana precisa galgar para que consiga se reunir novamente com sua origem divina.

Apesar de a Árvore conter, na realidade, 10 esferas, há 3 delas que se situam tão próximas da centelha divina, do transcendente e inefável, que também estão além das conceitualizações da linguagem. Neste sentido, as meditações diárias da Contagem usam somente 7 das 10 esferas:

Chesed ou Bondade (Misericórdia)
Chesed se situa abaixo de Chokmah. É a misericórdia. Representa o desejo de compartilhar incondicionalmente. Representa a vontade de doar tudo de si mesmo e a generosidade sem preconceitos, a extrema compaixão.

Geburah ou Disciplina (Rigor)
Geburah se situa abaixo de Binah. É o rigor. Representa o desejo de contenção e de questionar os próprios impulsos. Canaliza sua energia por meio de objetivos concretos, com o intuito de superar obstáculos e transformar a própria natureza.

Tiferet ou Compaixão (Beleza)
Tiferet se situa abaixo e entre Chesed e Geburah. É a beleza. Transforma em beleza Chokmah, Binah e Kether (as 3 esferas superiores). É a sabedoria e o entendimento sob a luz do conhecimento. Representa a divisão da árvore em macrocosmo e microcosmo.

Netzach ou Tolerância (Vitória)
Netzach se situa abaixo de Chesed. É a vitória. Representa a energia dos sentimentos. Se relaciona com a vontade de reciprocidade, a busca pelo próximo e a superação dos próprios limites, propagando o pensamento eterno. Funciona como o princípio fertilizador do esperma masculino.

Hod ou Humildade (Esplendor)
Hod se situa abaixo de Geburah. É o esplendor. Representa o pensamento concreto. É um canal de aprimoramento interno, de identificação com o próximo, sendo uma forma de aceitação do pensamento, assim como do reconhecimento dos opostos. Funciona como o princípio receptivo do óvulo feminino.

Yesod ou Compromisso (Fundação)
Yesod se situa abaixo e entre Netzach e Hod. É a fundação. Representa o Plano Astral. Funciona como um reservatório onde todas as inteligências emanam seus atributos, que são então misturados, equilibrados e preparados para a revelação material. É a compilação das oito demais emanações (Malkuth não tem emanação).

Malkuth ou Nobreza (Reino)
Malkuth se situa na posição central inferior da árvore. É o reino. Representa o mundo físico, onde é revelado o material compilado e emanado por Yesod (das oito demais emanações). É o canal da manifestação, desejando a recepção das demais esferas. É a distância de Kether que provoca esse desejo, criando a sensação de falta e de solidão. É, assim, o início do caminho ascendente.


Vejam abaixo uma ilustração da Árvore da Vida, por Rodrigo Amorim Grola:

A Árvore da Vida

***

Durante 49 noites, enquanto este lado do globo vira suas costas ao sol, eu tenho meditado sobre tais esferas, sobre o microcosmo e o macrocosmo, sobre a lua e as estrelas, sobre a noite escura e a manhã vindoura, sobre a solidão e a tristeza, e sobre o amor que é eterno...

Tais meditações têm se transformado em poemas, e os seus títulos correspondem exatamente ao dia da Contagem em que chegaram para mim. Não sei até onde isso tudo vai dar, mas o vídeo abaixo é somente um exemplo do que tem ocorrido em minha vida durante a Contagem do Ômer.

Boa reflexão a todos!


Em 9 de Maio de 2014 (Netzach shebe Netzach), durante a meditação da Contagem do Ômer, estas palavras chegaram para mim. Um dia depois, meu amigo Fabio Almeida (autor do blog, podcast e videocast Música & Magia) me deu este presente maravilhoso, com música que parece ter saído do mesmo lugar de onde vieram as tais palavras...


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30.4.14

Reflexões místicas - uma entrevista com Joseph Campbell (parte 3)

Arte de Android Jones

Uma entrevista com Joseph Campbell, por Tom Collins
Originalmente publicada na revista The New Story (1985)
Tradução de Gabriel Fernandes Bonfim; Revisão de Rafael Arrais

« continuando da parte 2


3. A transcendência dos mitos

[Tom] O que o termo “transcendente” significa, na frase de Durkheim, “transparência para o transcendente”?

[Joseph] O significado simples do termo é aquilo que vai além de todos os conceitos e conceituações, ou aquilo que está além de toda conceituação.

[Tom] De onde vem esta experiência?

[Joseph] A sua vida é a sua experiência de energias transcendentes, porque você não sabe de onde sua vida vem, mas você pode experimentá-la. Estamos experimentando estas energias bem aqui, apenas por estarmos sentados nelas, sentindo-as borbulhar.

[Tom] Você está usando o “transcendente” como um outro termo para Deus?

[Joseph] Se você quiser personificar o termo. Brahman é a maneira sânscrita de falar sobre isso. Manitou é a forma dos Algonquin, Orinda a dos Iroquois, Owacan é a dos Sioux.

[Tom] Javé?

[Joseph] Javé é a personificação. Ele é isto que está além da conceituação.

[Tom] Não podemos falar o nome, no entanto...

[Joseph] Bem, assim deveria ser, mas sabemos tudo sobre ele, ou ele nos contou tudo sobre si mesmo e como devemos nos comportar. O conceito básico da mitologia é a transcendência da personificação. A personificação é uma concessão à consciência humana, de modo que possamos falar sobre essas coisas.

[Tom] Você quer dizer que, se o infinito se revela para você, sua pequena mente responde dizendo, “Deus falou comigo”, porque ela só pode entender o que aconteceu em seus termos limitados?

[Joseph] Isso mesmo.

[Tom] Eu percebo que você não é um grande amante da Bíblia.

[Joseph] Nem um pouco! É o livro mais excessivamente anunciado do mundo. É muito pretensioso para ser reivindicado como a palavra de Deus, ou ser aceito como tal e perpetuar essa mitologia tribal, justificando todos os tipos de violência a pessoas que não são membros da tribo.

O que eu vejo de mais lamentável no uso que fazem da Bíblia é que, apesar dela tratar de uma mitologia tribal circunscrita a um determinado local do mundo, e de lidar com um determinado povo em um determinado momento, os cristãos ampliaram isto para serem incluídos. Em seguida, tal interpretação coloca esta sociedade contra todas as outras, ao passo que a condição do mundo de hoje é que esta sociedade em particular, que é apresentada na Bíblia, não é nem mesmo a mais importante. Essa coisa é como um peso morto. Ela está nos puxando de volta, porque ela pertence a um período antigo. Não conseguimos nos soltar e nos mover para uma teologia moderna.

Uma das grandes promessas da mitologia é a que o leva a se perguntar: Com qual grupo social eu me identifico? E quanto ao planeta? Agora, afirmar que os membros deste grupo social em particular são a elite do mundo de Deus é uma boa maneira de manter tal grupo unido, mas olhe para as consequências! Acho que o que poderia ser chamado de chauvinismo santificado da Bíblia é uma das maldições do planeta nos dias atuais.

Nota do tradutor: “chauvinismo” é o termo dado a todo tipo de opinião exacerbada, tendenciosa ou agressiva em favor de um país, grupo ou ideia.

[Tom] Há muito material interessante no Antigo Testamento, não é? Por exemplo, ele diz que Deus criou tudo, exceto a água.

[Joseph] Você colocou o dedo na ferida. A água é a deusa, consegue ver? O que acontece no Antigo Testamento é que o princípio masculino permanece personificado e o princípio feminino é reduzido a um elemento. O primeiro verso diz que quando Deus criou, o sopro de Deus pairava sobre as águas. E a água é a deusa.

[Tom] Eu suponho que você não acredite em um real e literal “sete dias da criação”.

[Joseph] Claro que não. Isso não tem nada a ver com a história evolutiva real como agora a entendo.

[Tom] Como você reconcilia esses dois relatos?

[Joseph] Por que alguém deveria se preocupar com isso? Mais do que, por exemplo, em procurar reconciliar a história dos índios Navajos?

[Tom] Eu me lembro de ouvir uma palestra maravilhosa do falecido Louis Leakey em que ele insistiu que não havia conflito entre o relato de Gênesis sobre a criação e o que ele havia descoberto.

[Joseph] Bem, ele pode não ter lido com o cuidado devido. Há dois relatos bíblicos sobre a criação no mesmo Gênesis, um no primeiro capítulo e um no segundo, e eles são muito contrários um ao outro.

Já era tempo de havermos parado com esta ideia de, “Ó, nós temos de acreditar na Bíblia”. Eu teria ido logo trabalhar com a questão dos Navajo, onde eles se elevam através de quatro mundos. Um é vermelho, outro amarelo...

[Tom] Mas se você jogar fora a Bíblia como historia, não é também jogá-la fora como um imperativo moral?

[Joseph] Sim. Eu não acho que a Bíblia seja o imperativo moral de ninguém, a não ser que você queira ser um judeu tradicional. Isso é o que a Bíblia lhe diz.

[Tom] Ela não lhe diz como ser uma boa pessoa?

[Joseph] Não.

[Tom] Muitas pessoas pensam assim.

[Joseph] Basta lê-la. Talvez ela lhe dê algumas dicas, mas a Bíblia também lhe diz para matar todos na terra de Canaã, até mesmo os ratos.

[Tom] Como foi a passagem que você citou para justificar as ideias de exclusividade [dos judeus]?

[Joseph] “Não há Deus em todo o mundo senão em Israel”. Isso deixa todos de fora, exceto os judeus. Esta é uma das interpretações mais chauvinistas da moralidade.

Um dos grandes textos está em Êxodo, quando os judeus são instruídos a matar os cordeiros e colocar o sangue em sua porta para que o anjo da morte não mate nenhum dos seus filhos, e em seu lugar ele deve matar os filhos dos egípcios. E na noite anterior eles saem para pedir aos seus amigos egípcios que lhe emprestem as suas joias, e assim por diante. Então, na noite seguinte, eles fogem com as joias, e o texto diz que assim eles espoliaram os egípcios. Você chama a isto de boa ética?

[Tom] Qual é o enredo de algo como Caim e Abel?

[Joseph] Há um diálogo sumério muito interessante que apareceu cerca de 1.500 anos antes da história de Caim e Abel. Trata-se de um pastor e um agricultor competindo pelo favor da deusa. A deusa escolhe dar preferencia ao agricultor e a sua oferta. Bem, os judeus chegam nesta região, e eles não são agricultores, eles são pastores. E eles não têm uma deusa, eles têm um deus. Então, eles viraram a coisa toda de cabeça para baixo, e fazem Deus favorecer o pastor contra o agricultor.

O interessante é que por todo o Antigo Testamento, é o irmão mais novo que derruba o irmão mais velho em favor de Deus. Acontece diversas vezes. Isto é simplesmente em função do fato de que os judeus chegam aquela região como “o irmão mais novo”. Eles vêm como bárbaros beduínos do deserto, e chegam em áreas agrícolas altamente sofisticadas; e eles estão declarando que, embora os outros sejam os mais velhos – como Caim o era, o fundador das cidades e todas estas coisas –, eles são os preferidos de Deus. É apenas uma outra forma de chauvinismo santificado.

Você consegue entender o ponto de vista das religiões exclusivistas, não consegue? – “Você adora a Deus da sua maneira, eu vou adorar a Deus na maneira dele.”


» Em seguida, na parte final da entrevista, a modernidade e a carência de mitos...

***

Crédito da imagem: Android Jones

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12.4.14

Noé – o que merece ser salvo? (parte final)

« continuando da parte 1

O mito moderno
De acordo com Richard Saul Wurman, em seu livro Ansiedade de Informação, uma edição de domingo do jornal The New York Times tem cerca de 12 milhões de palavras e contém mais informação do que aquela que um cidadão do século 17 recebia ao longo de toda a vida. A capacidade de computação mundial aumentou 8 mil vezes nos últimos 40 anos. Com esse ritmo, especialistas calculam que produzimos mais informação na última década do que nos 5 mil anos anteriores. E todo esse acúmulo causa ansiedade.

A velocidade com que a informação viaja o mundo é algo muito recente, com o qual os seres humanos ainda não sabem lidar – e muito menos aprenderam a filtrar. Já foram cunhados até alguns termos para definir a ansiedade trazida pelos novos meios de comunicação: technologyrelated anxiety (ansiedade que surge quando o computador trava, que afeta 50% dos trabalhadores americanos), ringxiety (impressão de que o seu celular está tocando o tempo todo) e a ansiedade de estar desconectado da internet e não saber o que acontece no mundo, que já contaminou 68% dos americanos [1].

Uma outra consequência de tamanha “globalização da informação” é a de que hoje somos prontamente informados de todos os grandes desastres naturais, genocídios e conflitos armados que ocorrem ao redor do globo. Certamente o seu bisavô, por mais bem informado que fosse, não estaria muito preocupado com um acidente de trem na Espanha, um estupro coletivo na Índia ou um ataque de algum esquizofrênico numa universidade americana. E, mesmo as notícias da Primeira Guerra Mundial não eram tão impactantes quanto as notícias das guerras de hoje – na sua época a guerra era descrita em alguns parágrafos de jornal, hoje ela muitas vezes é filmada ao vivo com câmeras de alta definição.

Dessa forma, se no mito de Noé o fim do mundo era um anúncio divino que nem todos levaram a sério (exceto Noé e sua família), nos dias atuais o fim do mundo parece ocorrer de tempos em tempos no noticiário, ao ponto de sermos obrigados a nos tornar, de certa forma, “insensíveis” a tanta desgraça anunciada nas dezenas ou centenas de canais de notícia de nossa TV a cabo e em nossos portais favoritos da web.

Não é que hoje o mundo esteja mais violento do que há milênios atrás, pelo contrário: hoje vamos a um estádio ver jogadores praticando esportes, e não se matando; hoje não há mais escravidão, ao menos oficialmente; hoje as mulheres que apanham de seus maridos têm uma opção de escolha que antes lhes era absolutamente negada. O mundo melhorou fora das zonas de guerra, sem dúvida, mas o problema é que hoje podemos saber de tudo (ou quase tudo) de catastrófico e violento que ocorre nos quatro cantos do globo.

Como sobreviver a essa época tão fluida e tão cheia de atrativos, a esse verdadeiro “dilúvio de informações”? Talvez, quem sabe, a Arca de Noé possa ser uma possibilidade de salvação. Afinal, se a construção de nossa Arca pode ser tão difícil e custosa, ela nos traz um grande consolo, um grande alento, em sua conclusão: teremos, enfim, uma embarcação só nossa, onde guardamos a informação que nos importa de verdade, assim nos livrando de todo um mar revolto de irrelevâncias.

A Arca moderna nada mais é, portanto, do que o pensamento próprio, livre de dogmas de crença ou descrença, livre da enxurrada de informações que nada acrescentam ao nosso autoconhecimento e ao nosso caminho espiritual. Para sobreviver no mundo moderno como um indivíduo de pensamento livre, sem dúvida precisaremos aprender mais acerca das técnicas de construção de Noé.

O que merece ser salvo?
Se o mito pode ser reinterpretado à luz da era moderna, nada nos impede de voltar atrás e interpretá-lo a nossa maneira também no contexto da época bíblica. Afinal, há certamente uma boa parte do mito que se encontra mesmo fora do tempo, que é eterna...

Uma lição que sempre me saltou aos olhos é que o Criador não pediu a Noé para que salvasse alguma relíquia, algum plano de construção de templos, e tampouco algum livro sagrado. Nem ouro, nem prata nem joias – o que havia de mais valioso para ser salvo do Grande Dilúvio era a vida, a vida!

E não somente os seres vivos em si, mas a sua simbologia. Afinal, já na época de Noé os animais eram também símbolos, informações vivas que representavam a Criação. Não bastaria, portanto, salvar somente o elefante macho, era preciso salvar também a fêmea, para que a continuidade da espécie, a continuidade do símbolo “elefante”, fosse garantida.

Nesse sentido, a Arca de Noé era, de certa forma, a Igreja sonhada por nosso querido Francisco de Assis: uma casa não somente de homens e mulheres, mas de vida, de toda a vida.

Quantas vilas, cidades e templos já existiam na época de Noé? Quantas estátuas dedicadas as mais diversas divindades? Quantos manuscritos sagrados e poemas épicos? Nada disso passou do Dilúvio. Nada sobrou, exceto a vida ela mesma...

Aquilo que ultrapassa vidas
Há algo que permeia todos os mitos referentes a um Grande Dilúvio nas mais variadas culturas ancestrais: com Arca ou sem Arca, fato é que somente um herói, ou um casal, ou um grupo muito pequeno de pessoas, sobrevive para repovoar o mundo todo após as águas aplainarem.

Ora, se formos transportar esta metáfora para o conceito de reencarnação, tão antigo quanto as primeiras religiões e mitologias, temos que o Dilúvio, o fim do mundo pelas águas, nada mais é do que a “morte”; e o mundo novo, a espera de ser povoado, nada mais é do que a “próxima vida”.

Nesse contexto, o que seria capaz de cruzar a fronteira entre uma e outra vida, senão tudo aquilo que conseguimos trazer para a nossa Arca?

É bem verdade que a maioria de nós sequer começou a aprender a construir uma Arca – mas quem disse que não somos capazes? Ainda que de início nosso barco seja pequeno e quebradiço, facilmente virado pelas ondas, o que importa é que iniciamos a aprendizagem.

E é precisamente esta aprendizagem, de construção de arcas, aquilo que ultrapassa vidas, a ciência mais preciosa e primordial de toda a existência... Não importa se hoje não acreditamos que seja realmente possível construirmos uma Arca tão grande quanto a de Noé. Não importa se nos parece inverossímil que ela pudesse mesmo carregar todas as espécies não marinhas do planeta. Pois há algo de sobrenatural nesta ciência, algo que escapa a lógica usual de todas as ciências...

Tudo é natural, e assim está bom. Mas há algo que salta por sobre, que ultrapassa as maiores barreiras; algo que é capaz de vencer até mesmo a morte; algo atemporal, eterno, infinito.

É precisamente esta Arca de Amor a única coisa que realmente possuímos, a única coisa que realmente importa, a única coisa que vale a pena construir... E cada martelada, cada tábua posta no lugar, cada gota de suor a escorrer de nossa testa, terão valido a pena.

Até que ela, a Grande Arca, consiga abarcar o mundo todo. De modo que o mundo todo será nossa Arca, e nossa Arca será todo o mundo. E somente assim poderemos, de verdade, estabelecer nossa Aliança com o Tudo. Somente assim poderemos ser carregados pelas marés internas da alma até atracarmos, um dia, nas praias do Reino de Deus:

“Senhor, árdua foi a construção da minha Arca, e longa foi a minha navegação; mas eu cheguei, eu finalmente cheguei!”

***

[1] Os dois primeiros parágrafos desta parte do artigo foram retirados de Sobre a ansiedade, por Karin Hueck para a Revista Superinteressante (Novembro de 2008).

Bibliografia: Guia Ilustrado Zahar de Mitologia (Philip Wilkinson e Neil Philip); Enciclopédia de Mitologia (Marcelo Del Debbio); O Poder do Mito (Joseph Campbell e Bill Moyers)

Crédito da imagem: Noé – O filme (Divulgação)

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10.4.14

Noé – o que merece ser salvo? (parte 1)

Recentemente estreou no país mais um filme supostamente “bíblico”, narrando a famosa história da Arca de Noé. Darren Aronofsky, entretanto, não parecia a primeira vista um diretor ou roteirista com muita inclinação a temas demasiadamente religiosos. E, de fato, o seu Noé passa longe de ser uma história “fiel a Bíblia Sagrada”, tanto que gerou comentários como este, de um missionário cristão “enganado pelo trailer do filme”:

O filme tem muitas coisas de mau gosto e interpretações sem nenhum fundamento religioso ou bíblico. Penso que o autor da obra poderia ter respeitado, pelo menos, o essencial da narração do texto bíblico [...] A verdade é que o longa-metragem é uma afronta e uma distorção da beleza da revelação divina. Ele não merece ser visto nem apreciado por quem tem a Bíblia como um Livro Sagrado, fonte da revelação divina e inspiração primeira de fé. Existem filmes mais sérios e de roteiros mais qualificados.

Enquanto, ao mesmo tempo, vimos esta “sinopse do filme Noé, escrita por um ateu” fazer certo sucesso nas mídias sociais:

O filme conta a história de um ancião chamado Noé, de 600 anos, que resolve construir um barco após ouvir Deus dizer que mandaria um dilúvio para afogar toda a humanidade. Noé e seus filhos passam a ser responsáveis por acomodar na embarcação quase 5 milhões de casais de animais, incluindo os de continentes ainda desconhecidos. Após serem os únicos sobreviventes do dilúvio, a família de Noé tem um novo desafio: repovoar o planeta através do incesto, e dar origem a povos de diferentes etnias, como negros, pardos, asiáticos, etc.

Ah, nada como o choque de extremos! Enquanto os fanáticos da crença não suportam ouvir a sua querida história fossilizada num livro milenar com sequer uma vírgula fora do lugar, os fanáticos da descrença caçoam ferozmente de qualquer um que tenha ido ao cinema “ver tamanho absurdo ilógico”.

Pois bem, a vantagem de não sermos fanáticos, senão pelo bom senso, é que podemos muito bem ir ao cinema ver o filme de Aronofsky sem nos sentirmos escandalizados nem pelo fato de o roteiro se afastar em muito do Gênesis, nem pelo fato de a história não ser nem um pouco verossímil – pois que se trata de mitologia!

O Dilúvio
São tantas as mitologias que falam de um Grande Dilúvio que cobriu a Terra, que muitos historiadores creem que, de fato, nossos ancestrais devem ter atravessado não uma, mas diversas inundações catastróficas. Pense numa época sem internet, TV, jornais ou telégrafos, onde muitas vezes tudo o que um povo conhecia eram os arredores de sua floresta ou campina... Ora, qualquer inundação capaz de cobrir uma área extensa o suficiente poderia muito bem lhes parecer como se o mundo todo estivesse sendo inundado!

E, de fato, relatos como este não faltam nos mitos dos mais variados povos – muitos deles mais antigos que os hebreus:

Na Epopéia de Gilgamesh, o mais antigo poema épico de que se tem notícia na história, encontrado no Iraque (que, há cerca de 5 mil anos atrás, foi o berço de uma grandiosa civilização antiga, quando a região era então conhecida como Mesopotâmia) por arqueólogos modernos, temos a passagem onde o herói Gilgamesh pergunta a Siduri (deusa do vinho e da sabedoria) como encontrar Utnapishtim, o sobrevivente do Grande Dilúvio e único humano a receber a imortalidade. Ao finalmente encontrá-lo, ouve de sua boca o relato de como os deuses, zangados com o comportamento barulhento e desregrado dos humanos, resolveram destruir os mortais com um dilúvio. Utnapishtim afirma que só foi salvo porque Ea (deus da água) o visitou num sonho e lhe mandou construir um barco. Como fora o único a sobreviver à grande tempestade, os deuses lhe concederam a vida eterna como prêmio (ele provavelmente trouxe algumas mulheres em seu barco).

O conceito de dilúvio como punição divina aparece também na história clássica da Atlântida. No mito da Grécia Antiga, Zeus enviou um dilúvio para punir a arrogância dos primeiros homens. O titã Prometeu advertiu Deucalião, seu filho, da catástrofe eminente. Ele então construiu uma arca e nela se refugiou com a esposa, Pirra. Por nove dias e nove noites ficaram à mercê das águas (um dilúvio mais curto que o bíblico), até pararem no monte Parnaso. Quando as chuvas cessaram, Deucalião ofereceu um sacrifício a Zeus, que em troca lhe concedeu um desejo. O seu desejo foi simplesmente pedir por mais homens e mulheres para os ajudar a repovoar e Terra (um homem prático).

Há muitos mitos parecidos espalhados pelos povos antigos. Em muitos mitos de criação o mundo era formado por um oceano quando em seu estado primitivo; dessa forma, pela sua inundação, os deuses o devolvem ao seu estado inicial, permitindo um recomeço.

Nos contos dos chewongs da Malásia, o criador Tohan transforma o mundo de tempos em tempos, quando submerge todas as pessoas, exceto as que foram prevenidas, e cria uma nova Terra no fundo das águas. Na mitologia nórdica, temos o conto do Choro de Baldur, quando o malvado Loki faz o arqueiro cego e sua flecha de visgo assassinarem o benevolente Baldur, e todas as coisas que existem choraram por ele, causando um dilúvio. Na mitologia hindu, um peixe disse a Manu que as águas cobririam a terra e, novamente, temos uma arca salvando a continuidade da humanidade. Entre os celtas, os poemas do Ciclo de Finn narram a ocupação da Ilha após o Grande Dilúvio. Nos índios americanos, temos a história de Kwi-wi-sens e como ele e seu amigo corvo escaparam do dilúvio causado pelos deuses dos céus... Acho que já deu para entender né? Essa história simplesmente não será esquecida...

O mito de cada um
O que nos leva a questão de compreender o que diabos é exatamente a mitologia. Segundo Joseph Campbell, “um mito é algo que não existe, mas existe sempre”. Com isso, ele queria dizer que os mitos são nada mais que os fatos da mente, os sonhos e pesadelos do consciente e inconsciente humano, encenados “do lado de fora”. O lado exterior, que um cético poderia, quem sabe, chamar de “mundo real”, é o lado que existe no tempo. Mas o lado interior, apesar de também computar a passagem dos dias e noites, faz algo que vai além da capacidade das máquinas e tecnologias mais avançadas: os interpreta!

É na interpretação da vida que sentimos emoções como o amor, o medo, a raiva, a tranquilidade e a angústia. É na constante lembrança e reinterpretação de tais emoções que terminamos por produzir a arte, e toda arte precisa contar uma história – e toda grande arte acaba por tocar na essência atemporal do ser humano, acaba por conceber um mito...

No entanto, como também dizia Campbell, “qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros num sentido – como uma metáfora do mistério humano e cósmico: Quem pensa que sabe, não sabe. Quem sabe que não sabe, este sim, sabe. Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual... Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é. Todos os símbolos da mitologia se referem a você: Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana? Você venceu o Grande Dilúvio para recomeçar numa nova Terra? Na sua mais profunda identidade, você é um desses heróis, você é também um deus”.

Dessa forma, quando uma criança ouve falar do Homem-Aranha ou do Super-Homem, e logo quer uma fantasia para poder brincar de ser o Homem-Aranha ou o Super-Homem, isto diz mais sobre a mente humana e sobre a mitologia do que julga a vã filosofia.

O que Aronofsky fez em seu filme foi nada mais do que reinterpretar o mito da Arca de Noé. Podemos não gostar da sua interpretação, mas seria realmente infantil (no mal sentido) julgarmos a sua obra “heresia” ou “absurdo ilógico” de antemão, apenas porque, provavelmente, ainda não fazemos a mais vaga ideia do que vem a ser, de verdade, a mitologia.

A mensagem ecológica do filme é clara e evidente. Se no Gênesis a humanidade era punida pelo Criador pelo fato de haverem procriado com “os filhos de Deus” e de, por alguma razão, a maldade haver se espalhado pelo mundo (Ge 6:1-5), no Noé do cinema o homem arrasou com os recursos naturais do planeta, ao ponto de não vermos sequer uma única árvore remanescente até que Noé tenha plantado uma das sementes do Éden que foram guardadas pelo seu avô.

Além disso, Aronofsky também incorre em uma arriscada crítica ao fanatismo religioso, a tornar o próprio Noé um advogado do fim de toda a raça humana, desejando deixar apenas os animais “inocentes” para o novo mundo. A maneira como este enredo de desenrola no filme é um dos pontos mais originais e que mais se afastam da narrativa bíblica – no entanto, se formos analisá-lo do ponto de vista da nossa época atual, se trata de uma adição totalmente válida ao mito.

Que bom que Aronofsky soube interpretar a história do Dilúvio a sua maneira. Porque não podemos, então, fazer o mesmo?

» Em seguida, os mares internos da alma...

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Bibliografia: Guia Ilustrado Zahar de Mitologia (Philip Wilkinson e Neil Philip); Enciclopédia de Mitologia (Marcelo Del Debbio); O Poder do Mito (Joseph Campbell e Bill Moyers)

Crédito da imagem: Noé – O filme (Divulgação)

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2.4.13

A terra do espantalho crucificado

Dizem que os cruzados queriam retomar a Terra Santa, pela força das armas, em honra ao seu Deus. Mas nem todos seguiram até Jerusalém armados – houve crianças que se dispuseram a libertar sua terra sacra pela força da inocência...

Não se deve subestimar os mitos – os fatos do espírito encenados no mundo. Por vezes, a encenação se torna uma tanto quanto real ou, pelo menos, o tanto quanto é possível “ser real” além da realidade da mente.

Ensinaram a essas crianças os mitos errados. As que não morreram de fome, sede ou doenças pelo caminho, naufragaram no Mediterrâneo ou foram vendidas como escravos por vendilhões pouco entusiasmados com a sua mitologia.

Faz tempo que o homem busca a Deus, seu Reino, ou alguma “santa terra” pelo horizonte... Antes de Maomé, os árabes já circundavam a Ka’bah de Meca. O deus daquela pedra é ainda mais antigo que Allah. De fato, desde a pré-história, toda pedra posta de pé representava algum deus. Desde El Shadai (“o deus da montanha”) até o monólito de 2001 – tudo isso são símbolos que tentam dar conta de falar do que não pode ser dito.

E o que se faz quando um povo é expulso de sua terra estreita, com seus deuses de pedra? Foge-se para o deserto e se atravessa o Mar Vermelho – Moisés foi apenas mais um destes...

Dizem que o povo judeu nunca consegue se estabelecer por muito tempo num mesmo local. Que sua Terra Santa e seu Templo estão sempre sob constante ameaça de invasões e guerras... Besteira! Todo verdadeiro judeu já subiu ao seu próprio Monte Sinai e recebeu sua própria Tábua Sagrada.

Nela, se lê em letras que não devem ser lidas:

“Israel é todo o mundo”.

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E não obstante, há aqueles que ainda creem que Deus se esconde nalgum palmo de terra ou debaixo do azulejo de algum templo antigo... E não obstante, há aqueles que creem que seu Cordeiro ainda jaz crucificado, a espera da libertação pela força (das armas) – e, dessa maneira, ainda hoje, na Terra Santa, a turba angustiada ainda clama pelo Cristo, mas o que sai de suas bocas (sem que percebam) é um brado de guerra:

“Salvem Barrabás! Salvem Barrabás!”.

O Cristo já saiu da cruz há tempos, e foi libertar aquelas crianças que o perseguiam pela força de sua inocência – pois que nenhum inocente deve ser escravizado...

E não obstante, naquela sacra terra ainda se ergue uma gigantesca cruz com um espantalho crucificado. É este deus, “o deus espantalho”, que os homens ignorantes lutam para libertar.

Mas naquele que teve olhos para enxergar, o Cristo já está liberto, dançando livre por sua terra, por Israel (que é todo o mundo), e dando piruetas dentre os torvelhinhos que também giram, como tudo o mais, dentro do espírito...


raph’13

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Crédito da imagem: Google Image Search/Anônimo

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6.11.12

O recitador

Numa noite quente, enquanto retornava de seu passeio pelo deserto, Yeshua reencontrou o rabino andarilho, que um dia havia lhe convidado para sua sinagoga. Parecia cintilante em meio aquela noite sem tantas estrelas, uma alma entusiasmada sempre parecia mais com um oásis em meio a tanta secura...

Andarilho – Rabi! Rabi! Finalmente encontrei-o novamente. Estive perdido, com saudades de tua luz, então decidi abandonar as sinagogas e rumar para o deserto, atrás de tuas pegadas!

Mensageiro – Mas porque abandonou sua sinagoga?

Andarilho – Os textos antigos me escravizavam, eu quero uma nova religião, uma nova interpretação. Eu quero ser livre como tu e teus pescadores, me ajude a ser também um pescador de almas.

Mensageiro – Mas rabi, existe um lugar para cada um de nós neste grande deserto, e cada um de nós deve fazer sua parte para que ele um dia se torne um pomar.

Andarilho – Não me chame de rabi, tu que és o Rabi da Alma, e agora eu sei disso... Todos aqueles textos antigos, de nada nos servem mais, tu veio renovar à tudo, tu veio trazer uma nova lei; Tu nos oferta a Verdade, e os livros de minha sinagoga são incapazes de transmiti-la.

Mensageiro – E você acha que eu vim negar a lei antiga, apagar o texto e escrever um outro? Rabi, rabi, eis o que ocorre: a Verdade já está nos textos, e espalhada pelos ventos, pelas pedras e os galhos secos, mas nós temos dificuldade em interpretá-la, em criarmos olhos de enxergar, e compreender... Vou demonstrar o que quero dizer: você conhece a história de como Moshê guiou nosso povo para longe do jugo do Faraó?

Andarilho – Sim, claro... Mas peço encarecidamente que me rememore, pois algo me diz que, saindo de tua boca, será uma nova história, um novo êxodo...

Assim, Yeshua começou a recitar:

Mensageiro – Moshê foi encontrado no Nilo, o rio sagrado, pela filha do Faraó. Admirada pela presença de um filho das águas, decidiu educá-lo como um príncipe dentro da metrópole. Mas, apesar de sábio, Moshê cresceu inquieto, turbulento, como a água que deseja sair da represa...
Diz-se que, ao ver um feitor egípcio açoitando um escravo israelita, foi tomado de imensa compaixão para com o escravizado, e por uma cólera avassaladora contra seu opressor. Matou-o com um pensamento.
Assim, apesar de príncipe do Egito, foi obrigado a fugir da metrópole, para escapar da pena de morte do Faraó. Agradeceu a mãe, e iniciou um longo exílio pelo deserto, levando consigo boa parte dos escravos israelitas. Agora, eram todos livres, e ele era o seu santo pastor pelas areias escaldantes e as noites frias.
Diz-se que o Faraó mudou de ideia, e mandou legiões de soldados em seu encalço, para que os trouxessem de volta a sua metrópole. Moshê pensou que sua mãe poderia estar com saudades dele, mas não poderia retomar uma vida onde houvessem escravos  e opressores por toda a parte – e decidiu apertar o passo, embora não soubesse ao certo para onde fugir de tantos soldados.
Numa dessas noites, enquanto caminhava ao redor da aldeia, como eu mesmo costumo fazer, eis que Moshê se depara com um pequeno arbusto em chamas, a iluminar sua noite como a mais bela das estrelas. Seu fogo não findava, pois parecia ser o gerador de si mesmo. Moshê criou olhos de enxergar, e compreendeu a mensagem que Jeová havia lhe transmitido. Alegrou-se: agora, finalmente, sabia para onde lavar seu povo!
Diz-se que, antes que pudesse adentrar aos territórios prometidos por Jeová, foi encontrado e encurralado pelos soldados do Faraó. E lá estava Moshê, com seu povo liberto, e duas opções: arriscar a travessia do Mar Vermelho, ou render-se ao desejo do Faraó.
Moshê decidiu arriscar um milagre. Levantou, com toda convicção e vontade, seu longo cajado; e, quando o pousou ao solo, veio uma ventania, com nuvens esvoaçantes, que dividiu ao próprio mar a sua frente em duas imensas colunas, cada qual com 36 carpas douradas a nadar tranquilamente em direção à outra margem, como que apontando o caminho, e dizendo: “Venha Moshê, traga contigo todo o teu povo liberto, agora basta dar o primeiro passo”...
E ele, inspirando longamente, tomou da coragem final e adentrou, com seu povo, ao mar. Assim, na medida em que caminhavam dentre as colunas, eram abençoados e elevados, de modo que os soldados que vinham atrás, mesmo com suas carruagens e camelos, escorregavam e tropeçavam uns nos outros, até que metade foi levada pelas águas, quando as colunas desceram.
Diz-se que a outra metade retornou e, contando a notícia ao Faraó, fez com que este enlouquecesse ante sua ausência. Mas Moshê havia vencido, e era livre, finalmente livre. Com a ajuda de seu povo, plantou na Terra Prometida um imenso bosque; e diz-se também que, até hoje, todo aquele com a vontade suficiente para atravessar o deserto, e mergulhar ao mar, é recebido por este povo liberto e alegre, na outra margem da Alma do Mundo.
Isto foi o que compreendi da história da fuga de Moshê do Egito...

O outro rabi tinha lágrimas nos olhos, transbordando de luz irradiada:

Andarilho – Deus te ilumine em todos os teus passos, no deserto ou acima do mar, tu és um recitador divino!

Mensageiro – Mas tudo o que fiz foi ler o mesmo texto que você leu, ó rabi. Agora que sabe do mesmo que sei, vai e retorna a sua sinagoga, e trata de os ensinar tudo isso... Pois eu vim trazer a este mundo todo o tipo de luz que tenho visto na casa de meu Pai. Mas algumas luzes são cintilantes demais para que sejam expostas de uma vez ao mundo. Você, que tem olhos para enxergar, e não ficar cego, será aquele que guardará este segredo, até que um dia este deserto esteja suficientemente ungido e umidificado, para que a luz possa ser exposta, a fim de que o povo do futuro também possa, como Moshê, rebelar-se contra seu Faraó, meditar no deserto, atravessar o mar, e atingir sua própria terra de boa aventurança.
Vá em paz, ó rabi!


(escrito com base na interpretação compartilhada por Rafael Chiconeli no III Simpósio de Hermetismo, em São Paulo, Novembro de 2012)


raph’12

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Este conto é uma continuação direta de "O filho da vida". A série se concluí em "O amante".

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Crédito da foto: RelaXimages/Corbis

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