Ainda é cedo
Noutro dia fui ver Somos tão jovens, filme que conta a trajetória musical inicial de Renato Russo e retrata com certa competência o estado espiritual de sua juventude em Brasília. O filme propositadamente se encerra antes de ter de falar das fases mais tristes de sua vida, e portanto deveria ser apenas mais um fim de tarde agradável no cinema... E era, até o finalzinho do filme, quando Renato canta Ainda é cedo. Apesar de ser uma cena de certo teor emocional, não parecia justificar o fato de eu haver chorado em pequenas cascatas ao longo de boa parte da música. Havia algo a mais que eu não havia identificado ainda... Algo que parecia estar mais profundo dentro de mim.
Eu gosto muito de fingir que este blog é impessoal – e tenho certeza que há muitos que acreditam. Mas, na prática, nunca foi, é apenas fingimento mesmo.
Não sei se estavam por aqui em 2006, quando ele começou, mas alguns de vocês devem saber que eu comecei este blog em homenagem a uma amiga. O nome dela é Flávia Lopes, e ela é poetisa.
Se hoje mesmo eu ainda conto nos dedos os poetas que conheço pessoalmente, antes de haver o blog e a própria massificação do acesso a internet no país, eu conhecia somente ela. E quem é poeta sabe: você pode ter pais, familiares, amigos próximos, mas somente outro poeta poderá entender de certos assuntos existenciais. Somente um poeta pode servir a uma certa carência de todo poeta, que é poder se comunicar com os outros sem as palavras, essas cascas de sentimento...
Eu me comunicava com ela sem as palavras. À noite, no telhado do seu prédio na Tijuca (no Rio de Janeiro; ela morava numa cobertura de um prédio antigo de onde dava para passear no telhado), contemplávamos tanto as estrelas quanto os gatos e transeuntes das calçadas – tudo nos interessava, mas nada precisava realmente ser dito.
Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo [1]
***
Flávia era grande fã de Renato Russo e sua trupe, eu só fui virar fã de verdade anos depois de sua morte. Então é isto que o tempo me fez: começar este blog, e virar fã da Legião Urbana; e ambos são fruto direto do tempo que já não há: o tempo de visitar minha amiga, seja a noite ou de dia.
Dizem que inventamos essas histórias de vida após a morte para suportar a dor da perda de alguém querido, mas me custa identificar onde exatamente isto nos ajuda, se não podemos realmente visitar quem lá está, e retornar, exatamente como eu fazia quando passava pela Tijuca. A Tijuca onde minha amiga mora está hoje inacessível para mim...
Se eu creio que ela ainda existe? Claro que sim, mas isto não me serve exatamente de conforto. Não é isto o que me conforta, se querem saber.
Não me conforta, pois não sei o que ela anda lendo, nem quais gatos ela cria hoje, nem mesmo que tipo de videogame ela anda jogando do outro lado do véu. Serão games mais modernos, ou aqueles clássicos que jogávamos na sua casa? Isto que eu não sei!
A questão não é, portanto, se ela ainda se lembrará do meu nome quando me encontrar noutro canto do Cosmos. A questão é que ela será muito diferente, e eu também, pois estamos sempre mudando, sempre morrendo e renascendo. E terá passado muito tempo, então quem seremos nós um para o outro?
Seremos ainda poetas? Talvez... O que me conforta é saber que pelo menos o time de futebol ela irá manter. Então, como nossa única briga foi por causa de futebol (e prometemos nunca mais brigar por causa disso), eu espero poder encontrar com ela para pode instigá-la e brigarmos outra vez (e quebrar a promessa): “E o seu time hein? Meia vida depois, ainda sempre vice!”.
De resto, o que sobra? Só a saudade, e palavras escritas em sangue...
Ela fazia muitos planos
Eu só queria estar ali
Sempre ao lado dela
Sei que ela terminou
O que eu não comecei
E o que ela descobriu
Eu aprendi também, eu sei
E eu dizia: - Ainda é cedo
cedo, cedo, cedo, cedo... [2]
***
Eu não me importo em ocultar que muito da minha poesia é escrito com sangue:
Já se perguntou, amiga, o que aqui fazemos?
Nesse telhado, de frente para o luar,
E os espaços infinitos entre as estrelas,
E os espaços finitos entre todos nós...
Já se perguntou, alguma vez,
O que será que estamos a observar?
(...) Será que existe o telhado?
Será que existe essa conversa?
Será que existem gatos a pular?
Ou, antes de tudo isso,
Existem amigos, e amizades,
Existem seres conscientes de si,
E consciências etéreas, esvoaçantes...
Indetectáveis senão pelo amor, e pela dor,
De observar ao mais belo luar
Sem ter minha amiga para conversar? [3]
Na poesia, mesmo as cascas de sentimento parecem conseguir trazer algum resquício metafísico do sentimento, da sensação, da intuição, do amor e da alma do mundo... Ou pelo menos foi tudo isto que aprendi com minha amiga.
No filme de Renato, a personagem que é sua melhor amiga, e para quem ele supostamente compõe Ainda é cedo, se trata na realidade de um amálgama das três melhores amigas da sua juventude. Além de tudo, ela ainda está lá, ela reaparece.
No meu caso, será um pouco mais complicado. Por isso chorei daquela maneira no cinema, hoje sei. E por isso continuarei chorando sempre que calhar de relembrar minha amiga, hoje também sei. Mas ainda que seja tão dolorido tudo isso, há um alento, uma consolação, que não tem absolutamente nada a ver com vida após a morte...
Tem a ver com esta vida, que necessita ser vivida intensamente, como se não houvesse o amanhã que na verdade não há. Conforme os estoicos diziam: é preciso viver atento ao chamado do Barqueiro. Isto que vivemos aqui é somente a aventura de um náufrago em meio ao Oceano. É preciso estar atento, pois o Barco ainda irá velejar para muitas outras ilhas, e cruzar com muitos outros faróis a iluminar a neblina espessa. E não somos somente nós a navegar: cada um está a seguir o seu caminho!
Se ainda sofro com a ferida aberta da saudade? Sofro, e choro, e sangro!
Mas é melhor amar e perder que nunca haver sequer amado. É melhor ter uma poetisa somente na memória do que não a ter em canto algum, por antes nunca a haver conhecido... E que privilégio, que privilégio foi a ter conhecido!
De resto, o que sobra? Apenas a selvageria e a compaixão...
Depois de ter-lhe revelado tanto,
O que eu tenho,
Para minha causa?
Para meus prantos?
O que eu toquei,
O que eu senti?
Entre suas muitas faces?
Escondidas dentre mil mentiras?
(...) Depois de procurar todo esse tempo,
O que eu chorei,
O que eu quebrei?
A não ser meu ser incomodado,
A não ser minhas marés de vaidade?
Envoltas por poemas e livros,
Dentre selvageria e compaixão. [4]
***
Outra coisa que passa pela minha mente de vez em quando é uma pergunta estúpida: “Se eu pudesse trocar todo este blog, e tudo o que consegui com ele, pela vida de minha amiga, eu trocaria?”.
Sim, é uma pergunta estúpida e os estoicos também já sabiam disso: há coisas que nos cabe decidir, e há outras, muitas outras, que estão além da nossa capacidade de escolha...
Esta pergunta não tem resposta, pois a Natureza é simplesmente como é, e o tempo, passado ou futuro ou eterno, é apenas este momento e o que fazemos dele...
E eu sei meu amor, que disciplina é liberdade, e compaixão é fortaleza, e ter bondade é ter coragem, e também sei que lá em casa há um poço de águas tão límpidas e cristalinas. Mas, ainda assim, eu trocaria... Se pudesse, trocaria, e nem pensaria muito sobre o assunto.
Como ti, amiga, continuarei buscando. Continuarei buscando... Afinal, ainda é cedo...
Busco um canto
em que todas as crenças,
se consumam,
e todas as raças
se despatriotizem,
e todas as doenças
se extinguam,
e todos os braços
se encontrem.
Busco um canto
em que a paz
se solidifique,
em que os sábios
não se corrompam,
e que as luzes
jamais apaguem.
Busco um canto
em que toda humanidade
em uníssono,
acompanhe,
e que a melodia,
atravesse séculos
de progressos e sangue,
e nos traga de volta
o dom da eternidade. [5]
Sou poeta e cronista - o lirismo é a amálgama destes dedos, confronta a vicissitude de meus passos. Conheci, desde a infância, o poder incutido na alma das palavras, como moldá-las, seduzindo cada frase, ora liberta e sem destino, repentina, ora trabalhada. Se me privassem de tal dom, necessidade ou vício, decerto enlouqueceria... (Flávia Lopes)
***
[1] Tempo perdido (trecho), Legião Urbana.
[2] Ainda é cedo (trecho), Legião Urbana.
[3] A conversa (que não houve) (trecho), Rafael Arrais.
[4] Poema sem título (trecho), Flávia Lopes.
[5] Eternidade (trecho), Flávia Lopes.
Um conto por raph’13
***
Crédito das imagens: [topo] Divulgação (Somos tão jovens); [ao longo] Flávio (o último namorado dela, e também meu amigo).
Marcadores: amizade, cinema, contos, contos (81-90), estoicismo, existência, Flávia Lopes, poesia, Renato Russo, saudade
14 comentários:
Ah, o princípio da impermanência...é tão difícil entendê-lo!
"Eu gosto muito de fingir que este blog é impessoal – e tenho certeza que há muitos que acreditam. Mas, na prática, nunca foi, é apenas fingimento mesmo."
Rá! Sempre desconfiei!
Sucesso na jornada, bróder!!
E mesmo sem te ver, acho até que estou indo bem. Só apareço por assim dizer quando convém aparecer.
Ou quando quero...
Desenho toda a calçada! Acaba o giz, tem tijolo de construção. Eu rabisco o Sol que a chuva apagou...
Quero que saibas que me lembro, queria até que pudesses me ver. És parte ainda do que me faz forte, pra ser honesto, só um pouquinho infeliz.
Bom dia amigo...
Desculpe peruntar...
Como sua amiga faleceu?
abs!
Anorexia bulímica, que a família percebeu quando já era tarde demais (ela era bastante inteligente e disfarçou muito bem, eu mesmo nunca percebi nada).
Este foi o diagnóstico. Mas, na prática, ela adoeceu de estar neste mundo pantanoso, quando tinha a alma aberta até demais...
Poxa... que triste...
Parabens pelo site!
ABS
Assisti ao filme ontem, e já era MUITO fã da banda. O filme foi bem light, mas ao chegar nas últimas cenas (desde a última briga com a Ana até ele cantar Ainda é Cedo), começou a rolar uma catarse.
Mas, diferente de você, não foi por ter vivido algo assim, e sim por NÃO ter vivido. Eu sou uma pessoa bem sensível a música e a histórias (filmes, livros), e o Vazio Nostálgico que senti, e ainda sinto, algo como uma saudade de tudo que ainda não vi, só me faz pensar em como é raro ter uma relação sincera mesmo.
Sabe, olhar alguém por trás da máscara e gostar do que vê, admirar. E ser igualmente admirado. Algo sincero mesmo. Estamos atolados num lugar onde todos fingem. Nós mesmos fingimos. Não há espaço para admiração real, e talvez seja por isso que a Arte e a Religião sejam tão importantes. São a válvula de escape. Pelo menos é assim que enxergo tudo.
O meu lado mais "racional" ainda me diz: "deixa de ser bobo! É só filme/livro/história! Essas coisas não existem na vida real!"
Contudo, se uma história provoca essa sensação de vazio, só me resta pensar que é algum indício de que "essas coisas" existem sim, ou pelo menos deveriam existir.
Qual tua opinião sobre isso, Raph? Eu sei que esse post foi bem pessoal e emocional, por isso nem queria te apurrinhar perguntando sua opinião sobre essas maluquices. Mas eu não resisto.
Abs.
É claro que isso existe. De certa forma, isso é **tudo** o que existe.
Mas para lidar com o transcendente criamos máscaras, segundas e terceiras peles, carapaças... É como disse Alan Moore:
"[...] esta é, particularmente, a coisa mais importante que podemos obter: o conhecimento do verdadeiro Eu.
Assim, parece haver uma quantidade assustadora de pessoas que não apenas têm urgência por ignorar seu Eu, mas que também parecem ter a urgência por obliterarem-se a si próprias. Isto é horrível, mas ao menos vocês podem entender o desejo de simplesmente desaparecer, com essa consciência, porque é muita responsabilidade realmente possuir tal coisa como uma alma, algo tão precioso. O que acontece se a quebra? O que acontece se a perde? Não seria melhor anestesiá-la, acalmá-la, destruí-la, para não viver com a dor de lutar por ela e tentar mantê-la pura. Creio que é por isso que as pessoas mergulham no álcool, nas drogas, na televisão, em qualquer dos vícios que a cultura nos faz engolir, e pode ser vista como uma tentativa deliberada de destruir qualquer conexão entre nós e a responsabilidade de aceitar e possuir um Eu superior, e então ter que mantê-lo."
Mas não quer dizer que seja simples olhar diretamente para o sol, quando ainda não estamos preparados. Gente como minha amiga, e o próprio Renato Russo, viveu com suas carapaças "abertas demais", e quando não estamos preparados para tal, isto pode ser prejudicial ou mesmo letal.
É a emoção que nunca desliga, a intelectualidade é algo que usamos de vez em quando, no resto do tempo vivemos como seres emocionais, como seres que, antes de terem um cérebro, tem uma alma.
E não sou somente eu que estou dizendo isso. Há neurocientistas que estão comprovando isso:
http://textosparareflexao.blogspot.com/2013/05/nunca-desliga.html
Abs
raph
Sinto muito por sua perda Raph.
Mas que homenagem bonita você prestou para ela! Parabéns!
Emocionante como sempre, como consegue ser mesmo quando nos traz ciência e ocultismo ao mesmo tempo, sendo impossível ser de maneira mais claro em suas verdadeiras lições, e desta maneira, praticamente obrigando o meu "Tico e Teco" da razão a concordar com cada vírgula enquanto minha mente se expande e minha alma se alegra... como sempre lhe agradeço, e desta vez obrigado por trazer a todos um pouco da amiga e poetisa Flávia Lopes.
Obrigado Juliano,
Cada comentário e cada luz refletida também são, de certa forma, um tributo ao que ela significou e significa para mim :)
Abs
raph
Eu conheci a Flávia num bate-papo do UOL em 98, num domingo de decisão de taça guanabara Flamengo x Vasco, e dali foram 4 inesquecíveis anos, onde trocávamos cartas, telefonávamos as vezes um para o outro, teclávamos todos os fins de semana (via ICQ - naquela época internet cobrava pulsos telefônicos durante o dia e banda larga era uma realidade distante). Após 4 anos eu pedi para ela corrigir o português da minha tese, o que ela aceitou e eu enviei, mas a partir daí ela sumiu. Mal conseguia falar com ela via e-mail apenas; percebia que algo estava errado mas eu nada podia fazer. E o tempo passou, e perdi completamente o contato com ela. E assim foi até o dia 31 de julho de 2006, quando eu por volta das 9h da manhã, ao ir pro banheiro me preparar para o trabalho, eu tive uma rápida visão dela num vestido branco, uma visão que não durou um segundo mas que não esqueço até hoje. Eu não fazia ideia do que aquilo significava, mas algumas semanas depois eu entenderia
àquela visão: ela estava se despedindo. Um amigo dela me ligou me dando esta triste notícia, conversamos por quase 1h sobre a Flávia, e como ela era incrível, uma pessoa especial, marcante. Lembro-me dela sempre sempre no mês de abril (aniversário dela e quando nos conhecemos) e novembro (finados) e espero que realmente esse outro mundo exista, pois como ateu, tenho dificuldade em crer nisso, mas saber que um dia de alguma forma eu possa encontrá-la, me conforta poder acreditar nisso, e esta página me trouxe esse sentimento. Linda homenagem à Flavia.
Parabéns.
Cléber.
Obrigado pelo depoimento Cléber. Olha que engraçado, você é o ateu que tem visões, e eu que não sou ateu, nunca tive visão alguma dela, exceto é claro pelas lembranças e quem sabe um ou outro sonho que, em todo caso, estão mais esquecidos do que as lembranças daquilo tudo que realmente se passou no lado de cá.
Outra diferença que temos é provavelmente que você é vascaíno, e eu flamenguista. Mas isso é o de menos, temos esta amiga em comum, o que vence todas essas diferenças superficiais :)
Se lhe interessar, este blog é inteiramente dedicado a ela.
Abs!
raph
Quando li esse texto sentia a sinceridade e sentimento das tuas palavras, mas hoje sinto bem mais. Perdi uma amiga a 5 anos, esse mesmo vazio que descreve no texto eu sinto. E tbm custo a acreditar que não vou ter a chance de vê-la de novo. Talvez me falte querer construir um lugar, um santuário, algo que me faça ir e ficar por alguns instantes pra sentir a presença dela, ali. Onde possa reviver as lembranças. Obrigado, Ralph.
Obrigado Nick,
Esse Santuário, penso que já está em nós mesmos, basta buscar adentro. O próprio fato de sofrermos ainda de saudade significa que, no fundo, valeu a pena: a saudade é o amor que ficou, e é melhor amar e perder do que nunca haver sequer amado.
Abs!
raph
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