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4.4.12

Enquanto a bola está no ar

Era o primeiro jogo das finais da NBA de 1992, onde era decidido o maior time de basquete do mundo, visto que, especialmente naquela época, não se jogava basquete naquele nível em nenhum outro lugar que não nos Estados Unidos, e em nenhuma outra cidade que não em Chicago, onde os Bulls decidiam o título contra os Blazers de Portland. Michael Jordan até então havia ganho apenas um título na NBA, e a partir daquele jogo ficou claro para todos que ele não só ainda ganharia aquele campeonato e muitos outros, como se firmaria como o maior da história do esporte, como de fato ocorreu.

Mas este artigo não é uma adulação de Jordan, e sim da mente humana, mente esta que ele soube utilizar como ninguém, precisamente no início daquele jogo. Na primeira metade do jogo, Jordan estabeleceu o recorde histórico de maior número de pontos (35) e arremessos de longe (6) para uma final da NBA, que é onde todos dão a vida por cada palmo de campo e cada jogada... Jordan, no entanto, parecia jogar sozinho: apenas quando acertou o sexto arremesso de três pontos, é que percebeu seu amigo Magic Johnson (outro craque do jogo, que havia se aposentado recentemente) sentado na bancada de narradores, sorrindo largamente. Foi então que Jorden se deu conta, conscientemente, do que estava a ocorrer. Ele deu de ombros, quase como se pedisse desculpas.

“Estava além de mim, era como se eu jogasse por instinto, como se não existisse mais ninguém na quadra, no ginásio inteiro – apenas eu, a bola, e a cesta do outro lado” – Admitiu Jordan tempos depois. Na segunda metade do jogo, ele fez poucos arremessos e anotou apenas mais 4 pontos: não era mais necessário, a vantagem estabelecida fez com que os Bulls pudessem apenas administrar o placar contra os Blazers. Porém, assim que se apercebeu do que estava a ocorrer, Jordan também sabia, em seu íntimo, que não adiantaria mais perseguir aquele “estado” no restante do jogo. Tudo que podia fazer era agradecer por tem chegado lá uma vez mais. Michael Jordan estava in the zone (“na zona”), como só os maiores esportistas nalgum dia puderam estar... Dentro de suas mentes.

Estar in the zone é um conceito conhecido entre os grandes atletas do basquete que equivale a um certo estado mental onde a pressão de ganhar se esvai, junto com o medo de perder. Quando não importa se o ginásio está lotado ou vazio, de torcedores do seu time ou do time adversário, quando nem a altura nem a cara feia dos adversários faz alguma diferença. Quando a bola chega nas mãos e é arremessada, e não há nem mesmo o desejo de que ela entre na cesta – e, ainda assim, ela quase sempre entra.

Mas tal estado não é, obviamente, exclusivo do basquete, nem do esporte em geral. É uma capacidade, uma potencialidade humana. Muitos anos antes de Jordan ter entrado no Bulls, um professor de psicologia da Universidade de Chicago já havia iniciado sua extensa pesquisa sobre o que ele chamou de “o fluxo” (the flow). Mihalyi Csikszentmihalyi publicou os resultados de sua pesquisa em Flow: The Psychology of Optimal Experience, onde deu atenção detalhada exatamente aos grandes esportistas, embora tal estado, como foi dito, abarque todas as capacidades humanas. De certa forma, alcançar o fluxo em uma atividade física é o mesmo que alcançar um estado de consciência alterada, de grande paz interior, em atividades contemplativas e espirituais, como a oração fervorosa ou a meditação profunda.

Eu poderia estender os exemplos para outros grandes esportistas, como Pete Sampras ou Ayrton Senna. Poderia também falar dos grandes músicos a improvisar em seus instrumentos, de pintores e poetas, budistas e dervixes, mas por enquanto me bastará permanecer no jogo de basquete...

Muitos talvez não saibam, mas eu amo basquete. Jogo desde mais ou menos quando aquela final de 1992 passou na TV (embora não seja torcedor do Bulls, e sim de um de seus grandes rivais, o New York Knicks), e mesmo hoje em dia jogo com amigos todo sábado à tarde, num parque perto de casa... Uma das características que sempre me atraiu no basquete é o fato de poder praticá-lo só: apenas eu, a bola e a cesta. Claro, o jogo em si é coletivo, assim como a vida. Mas, assim como na vida, muitas das coisas que fazemos em meio a multidão são o reflexo daquilo que pensamos conosco mesmo, nos momentos de solidão... Eu, a bola e a cesta: jogar basquete também pode ser uma experiência profundamente espiritual.

Aquilo que Jordan e outros craques conseguiram experienciar em meio a ginásios lotados talvez possa também ser alcançado na solidão de um treinamento de arremessos. Não para que seja filmado ou aplaudido, mas apenas para ser experienciado mesmo... Que bela metáfora para a vida, o ato de se arremessar a bola a cesta: treinamos incontáveis vezes para que o mecanismo do arremesso seja o mais correto possível, para que cada arremesso tenha a maior chance de acerto possível – no entanto, mesmo entre os maiores jogadores da NBA, um índice de acerto de 50% nos arremessos de quadra já é considerado excepcional. A grande maioria dos craques de basquete do mundo ainda erra mais do que acerta, a despeito de treinarem o arremesso por décadas a fio.

Tudo bem, no jogo não estamos mais sós, e o papel do adversário é exatamente impedir nosso arremesso, dificultando que tenhamos uma boa visão para a cesta, e alguns centésimos de segundo para arremessar... Mas assim é também com a vida: não existe almoço grátis, e estamos aqui, desde tempos imemoriais, lutando a guerra da fome e da morte, competindo pela sobrevivência. Viver não é fácil, e ninguém disse que seria: tudo que podemos fazer é continuar arremessando a bola da melhor forma que pudermos arremessar. Se muitas vezes erramos o alvo, há que se comemorar as tantas outras em que o acertamos...

Mas, não importa se somos um Michael Jordan ou um adolescente magrelo e baixo sonhando com enterrar a bola na cesta: a maioria dos arremessos da vida se faz a uma certa distância, e para todos há essa angustiante chance de errar... Mesmo Jordan, após ter acertado 6 em 8 arremessos da linha de 3 pontos no início da final de 1992, no restante do jogo errou todos os 3 outros arremessos que tentou. Há sempre a chance de errarmos, e de continuarmos errando. Porém, assim como Jordan no início do jogo, todos temos alguma chance de entrarmos no fluxo, de estarmos in the zone, e de arremessarmos a bola sem medo, sem angústia, sem sequer o desejo de acertar. Quando estamos nesse estado, estamos apenas aqui, vivos, e na verdade não importa muito se a bola irá ou não entrar na cesta: a vida é o que ocorre enquanto a bola está no ar.

***

A performance de Jordan no jogo citado no artigo (1992)

Crédito da imagem: Neal Preston/Corbis

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6 comentários:

Blogger Alfredo Carvalho disse...

Tenho saudades da época que eu jogava no time do colégio e assistia às finais da NBA todo ano. =)

4/4/12 16:42  
Blogger raph disse...

Eu também. Na verdade tenho saudades é da NBA da década de 90 :)

4/4/12 16:49  
Anonymous Samuel Otemi disse...

O seu texto me lembrou de uma palestra do TED sobre essa experiência.

http://www.ted.com/talks/elizabeth_gilbert_on_genius.html

É muito interessante!
Faz tempo que não comentava. No livro de Paulo coelho O alquimista in the zone é simbologicamente representado como o encontro do rei do mundo Melquisedec , quando tudo para , os animais silenciam e tudo que você pode ouvir é a música das esferas dançando em seu coração.

5/4/12 08:12  
Blogger raph disse...

Oi Samuel, a palestra dela é extraordinária, indo até bem mais além do que é exposto aqui no artigo... Acho que vou postá-la aqui no blog um dia desses.

ps. eu gostei particularmente da história da poeta que precisava "correr como o diabo" para conseguir escrever o poema antes da inspiração passar... é bem assim mesmo, ao menos comigo :)

Abs
raph

5/4/12 09:56  
Anonymous Mariana disse...

Lindíssimo. Dava pra sentir a energia do jogo, e o ponto de calmaria e perfeição "basquetiana" que foi o Micheal Jordan na primeira metade.

5/4/12 13:06  
Blogger raph disse...

Sim por isso achei relevante postar o vídeo do jogo. Embora ele mostre apenas as jogadas do Jordan, dá para sentir como o público acompanha extasiado a sequencia de cestas, particularmente as de longe, até a derradeira, a sexta, quando ele finalmente se dá conta do que vinha ocorrendo: o "encanto" se quebra quando tomamos consciência dele, um mistério!

5/4/12 14:18  

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