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13.3.12

Xamãs ancestrais, parte 3

« continuando da parte 2

Xamã é um termo de origem tungúsica, que nessa língua siberiana quer dizer, na tradução literal, "aquele que enxerga no escuro". Os xamãs são os portadores da função religiosa na tribo, que podem entrar em um estado extático, “voar” para outros mundos e ter acesso e contato com seus aliados (animais, vegetais e minerais), seres de outras dimensões e os espíritos ancestrais. Apesar de ter surgido na Sibéria, o termo “xamanismo” se aplica atualmente a práticas espiritualistas em vários pontos do mundo, tanto no espaço quanto no tempo.

Isso tudo está apenas na sua mente

Sigmund Freud, quase todos no Ocidente o sabem, foi o fundador da psicanálise. O que talvez muitos não saibam é que a própria psicanálise talvez deva sua origem a uma droga que nos dias atuais é ilegal em quase todo o mundo...

Entre as idades de 28 e 39, por onze anos, Freud utilizou regularmente a cocaína em sua forma de alcaloide, em pó (diluída em água). Como jovem neurologista, essa foi sua primeira tentativa experimental fora da prática médica tradicional. Ele estava buscando o reconhecimento público capaz de gerar a clientela que lhe traria fama e recursos financeiros permitindo, assim, que se casasse com sua noiva, de quem estava separado havia dois anos. Durante esse período, Freud publicou três artigos importantes e fez uma apresentação para a Sociedade Psiquiátrica de Viena sobre os usos terapêuticos da cocaína. Embora esse experimento não tenha atingido suas expectativas, e seus artigos sobre a cocaína nunca tivessem aparecido em seus escritos publicados, esses estudos fizeram de Freud, na verdade, um fundador da psicofarmacologia e, provavelmente, influenciaram seu trabalho com os sonhos e o inconsciente.

Freud acreditava que a cocaína era fundamental para curar as “doenças da alma”, mas com o tempo se apercebeu de seu seus perigos, quando verificou que seus pacientes, e ele mesmo, estavam ficando viciados na substância. Foi a partir dessa experiência, entretanto, que Freud se concentrou em alcançar novamente algumas daquelas reflexões e pensamentos de quando era influenciado pela cocaína, porém apenas com a própria mente, e a linguagem correta: a droga não era mais necessária, estava fundada a psicanálise.

Nos dias atuais, após meio século de uma Guerra as Drogas que parece ter gerado apenas mais e mais violência em todo o mundo, substâncias como a cocaína são demonizadas: não são tratadas apenas como um psicotrópico perigoso, mas como uma espécie de “pó do inferno”, algo que, uma vez consumido, nos condenará eternamente a carregar a alcunha de “drogados”, sem jamais, jamais, sermos capazes de dia sequer retornar ao que éramos antes. No fundo, sabemos que não é bem assim, mas, não obstante, essa é a crença generalizada, embutida em nossa mente pela mídia mundial, particularmente a americana, e da qual é realmente difícil escapar.

Longe de mim querer aqui relativizar o perigo da cocaína e outras drogas (já a cannabis, poderia muito bem ser legalizada). Na verdade, eu nem posso falar com tanta propriedade do assunto: nunca usei droga alguma além do álcool, ao menos nessa vida... Mas, talvez estejamos pegando pesado demais com a cocaína e outros psicotrópicos. Afinal, quem somos nós para julgar o que mesmo um papa recomendou com grande entusiasmo?

O Vin Tonique Mariani, ou Vin Mariani, era um vinho misturado com cocaína (também diluída em água), criação do químico francês Angelo Mariani, que era uma bebida bastante popular no fim do séc. XIX. Popular ao ponto de ter sido regularmente consumida por pelo menos dois papas da Igreja de Roma... O Papa Leo XIII chegou ao ponto de participar de uma campanha de publicidade da época, como “garoto propaganda” do grande Vin Mariani. Será que, por ser o papa, ele estaria livre do inferno ao consumir cocaína?

Gostemos ou não, o ser humano sempre teve, ao longo de toda a história, uma relação muito íntima com as drogas e todo o tipo de substância psicoativa... Como vimos anteriormente na série, é bem capaz de a própria pré-história, antes das civilizações e da escrita, já ter registrado práticas de consumo de drogas. Práticas essas que, bem controladas e devidamente classificadas como “sagradas”, podem mesmo ter dado origem a boa parte de nossa mitologia, magia, arte e religião.

Não eram, de fato, absolutamente todos os xamãs que usavam dessas substâncias. Na verdade, sabemos que muitos deles desenvolveram outros tipos de técnicas para alcançar seus estados de transe e consciência alterada, sua experiência mística. A lógica parece nos dizer que, entretanto, existe aqui uma proporção inversa em jogo: quanto mais consumimos substâncias psicoativas, mais facilmente conseguiremos alcançar os estados extáticos, porém mais árdua e complexa será nossa compreensão acerca do que efetivamente ocorre neles, na viagem para dentro de nós mesmos. Da mesma forma, quanto menos nos valemos de substâncias psicoativas, mais árdua e desgastante será nossa prática mental até que consigamos alcançar tais estados místicos “por nós mesmos”, apenas pelo uso da própria mente, mas por outro lado, tanto mais simples será nossa compreensão acerca do que ocorre dentro da mente. Freud parece, portanto, ter começado pelo primeiro método, e depois ter preferido o segundo. Talvez seja só isso mesmo: questão de preferência. Eu estou com Freud.

Ainda assim, há muitas questões que permanecem em aberto: porque, afinal, nossos ancestrais gastavam tanto tempo e energia nessas tentativas de adentrar “dimensões ocultas” dentro de suas próprias mentes? No que exatamente isso auxiliava em sua sobrevivência? Porque, afinal, tal prática estranha parece um dia ter sido comum em todas as partes do globo onde houvessem caçadores-coletores a caminhar pela terra, os pais e as mães de todos nós, os humanos...

Os signos da arte rupestre, com similaridades encontradas em sítios na Europa e na África, distantes não apenas no espaço, mas em milhares de anos no tempo, talvez nos deem alguma pista do que nossos xamãs ancestrais buscavam. Em seu extensivo estudo [1], Graham Hancock lista alguns dos pontos em comum: (a) As pessoas ou seres podem ser parte animal, parte homem, e podem se transformar plenamente em animais; (b) Certas pessoas ou seres são, às vezes, empaladas por lanças, flechas ou arpões quando estão se transformando em animais (os “homens feridos”); (c) Animais podem se transformar em outros animais ou aparecer como híbridos de duas ou mais espécies, e alguns podem ter a aparência distorcida, “fantástica”, inteiramente desconhecida do mundo natural (de qualquer época do planeta); (d) Há padrões geométricos, pontos, grades e zigue-zagues de linhas e “linhas-serpentes”, por toda parte; (e) A face da rocha onde a arte rupestre é encontrada é dinâmica e permeável, não como uma tela em branco, plana, a espera de ser decorada, mas muito mais como uma mescla em três dimensões entre a rocha e a arte, como se a arte também fosse, ali, um portal para uma outra dimensão, acessível apenas na contemplação daquele “local sagrado”.

Após ter encontrado tantas similaridades, Hancock partiu para uma tentativa ousada de explicar aquilo tudo, o que preenche boa parte de seu livro, e da qual não entraremos em maiores detalhes aqui [2]. Porém, talvez seja uma boa hora para refletirmos acerca do que os próprios xamãs afirmam que fazem em seu xamanismo, ou pelo menos daqueles xamãs que sobreviveram ao tempo. O importante é que seu relato é bastante similar ao que os xamãs san do século XIX disseram a Bleek e Lloyd [3]: (a) Entrar em contato com uma “realidade primordial”, espiritual, acessível através de alguma espécie de “sintonia mental” alcançada em certos estados extáticos; (b) Entrar em contato direto com ancestrais (já “mortos”, mas que vivem neste outro plano de existência), entidades, deuses, semi-deuses e seres “sobrenaturais” cujo conselho é informação inestimável para a sobrevivência da tribo; (c) Influência sobre o clima, particularmente na tentativa de produzir chuvas; (d) Influência e/ou identificação da movimentação de agrupamentos de animais que são caçados pela tribo nas redondezas; (e) Conhecimento de propriedades farmacológicas de ervas e plantas; e finalmente, talvez a mais importante: (f) Conhecimento e capacidade de cura de enfermidades físicas, psicológicas e/ou espirituais que afligem os membros da tribo.

Estariam os xamãs ancestrais totalmente certos, ou absolutamente equivocados, em todas essas práticas? Disso não temos como saber sem experimentar os mesmos estados extáticos... Mas, a lógica e o bom senso nos dizem: estavam mais certos que errados; Do contrário não estaríamos aqui para contar a história, não seríamos nós mesmos os seus descendentes, o seu presente para o mundo.

O Chefe Seattle, outro grande xamã, uma vez disse em sua carta ao presidente em Washington: “Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida - ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo”. Mas, o que é afinal essa teia, esse tecido de realidade que parece habitar tanto o mundo lá fora quanto a nossa própria mente? É possível, afinal, influenciar e interagir com o mundo lá fora, através de alguma ponta de teia que puxamos ainda dentro de nossa mente?

O cético escandalizado com tal possibilidade vai prontamente nos responder: “Isso tudo está apenas na sua mente!”... Mas, afinal de contas, e o que não está?


Nossa consciência desperta, normal, a qual chamamos de racional, nada mais é do que um tipo especial de consciência. Ao redor e sobre ela, separada pela mais fina das telas, há formas potenciais de consciências muito diferentes. Podemos atravessar a vida sem nem sequer desconfiarmos de sua existência. Mas, aplique o estímulo necessário e, ao menor toque, elas estão lá, em toda a sua inteireza... Nenhum relato do universo em sua totalidade pode ser tão definitivo que deixe essas outras formas de consciência inteiramente menosprezadas... De qualquer maneira, elas proíbem um encerramento prematuro de nosso acerto de contas com a realidade (William James, Variedades da Experiência Religiosa)

***

Leitura recomendada: Sobrenatural, de Graham Hancock (Nova Era).

[1] Maiores detalhes no livro recomendado acima.

[2] Hancock prossegue em um longo, extensivamente detalhado e devidamente documentado relato de similaridades entre as experiências do xamanismo, os relatos de abdução por OVNIs (inclusive muitos séculos antes do século XX) e os relatos de encontros com seres mitológicos e do “reino das fadas”... Trata-se, talvez, de um “passo maior do que as pernas”, mas nada disso invalida o que vinha sido demonstrado desde o início do livro, particularmente o que foi resumido nas duas primeiras partes desta série.

[3] Ver parte 2 desta série de artigos.

***

Crédito das imagens: [topo] Wikipedia (Papa Leo XIII recomenda o Vin Mariani); [ao longo] Imagem criada a partir de imagem compartilhada no Facebook

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5 comentários:

Anonymous Anônimo disse...

Já comentei sobre isso antes: o maior contra que vejo no uso de substancias psicoativas é o fato de acharmos que tudo não passou de alucinação da droga. Mas obter estados alterados de consciencia sem elas, também nos leva a outra dúvida: estou ficando louco?! Já fui "pro outro lado do espelho" estando dias sem tomar uma cervejinha, como já fui a "outros mundos" dentro da minha cabeça, com um copo de vinho e posso tomar duas garrafas numa festa, sem ter nenhuma experiencia "estranha"... acho que o "problema" é mais a mente, o estado do momento, que o corpo... então, se for loucura, não ligo muito, afinal, sou um louco muito mais produtivo que a grande maioria de "sãos" que conheço e aprendi a lidar com isso. E quem vai dizer que não é legal ficar indo "pro lado de lá"? é melhor que ver filmes em 3D...kkkkkkkkkkkk... é só não levar tudo a sério na experiencia que tudo dá certo... se for imaginação, é a maior e mais emotiva forma de entreterimento inventada: triste ou alegre, voce vive outra realidade, voce nem é voce: ora é uma criança, ora uma mulher, ora um deus vagando entre mundos... a "imaginação", se for esse o caso, é sempre uma dádiva. Mesmo quando caímos em "poços" de dor e sofrimento, conseguimos sair de lá criando alegrias, ajudando aos "outros", que podem ser só criações mentais suas e terminar o passeio com um belo "final feliz". Adoro livros, música e cinema, mas nada se compara a ir pra "esses mundos" dentro de si. A volta funde um pouco a cuca e por isso confio desconfiando. Claro, acredito que sejam criações mentais sim, mas a sincronicidade com a realidade dita concreta, após um experimento é grande. O alerta que me dou sempre é: é só uma experiencia, nao leve tudo ao pé da letra, pois como a poesia, as imagens e situações sao metafóricas, na maioria das vezes. Mas preste atenção aos sinais: se foram colocados por lá, podem ser úteis por aqui... e na maioria das vezes, são...
obs: um santo de sua preferencia, pode não ser o santo, mas a ideia energetica e situações que eles representam. Idem para seres mitológicos, deuses e etc, vistos nesses passeios...
Abraços "alucinados"...

13/3/12 20:50  
Blogger raph disse...

Obrigado pelo depoimento. Certamente, se somos loucos, o importante é nos certificar, é batalhar, para que nossa loucura seja feita de luz... Abs!

14/3/12 09:47  
Anonymous HiroNakamura disse...

Nossa Anônimo, gostei muito da sua explicação.

Acredito que seja bem isso mesmo. Acho que acontecem três coisas.
Uma é quando acessamos esses reinos internos, e temos essas visões e sentimentos de uma realidade que não se encaixa bem com esta nossa realidade.

O segundo é quando trazemos o interno para o externo, e nesse caso é necessário um ideal, uma "imagem" para se identificar, que poderia ser qualquer indivíduo ou coisa, mas não necessariamente que seja aquele individuo ou coisa é só uma representação extremamente fidedigna, a melhor interpretação de um personagem que se poderia encontrar, eu diria que nesse estado, todos podem encarnar personagens com perfeição.

E terceiro seria quando este interno influencia, age sobre o externo, trazendo situações bem interessantes.

15/3/12 10:54  
Anonymous HiroNakamura disse...

onde lê-se : "Indivíduo ou coisa"
leia: "Indivíduo ou ser"

15/3/12 10:57  
Blogger Pedro Paulo disse...

E se...

Na realidade, os usuários de substâncias psicotrópicas, lícitas ou não, fossem na verdade a degradação dos sacerdotes de outras infinitas eras? Se de repente, esse contato com algo ilícito de maneira desregrada fosse uma tentativa desesperada de alcançar aquele "extase" cerimonial de tempos imemoriais? Não seriam, então, almas que caminharam rumo à um distanciamento espiritual e consciencial de si mesmas, até chegarem onde estão?

São devaneios, questionamentos que nasceram ao ler o texto e perceber que, independente da moralização e da demonização de quase tudo que era usado de maneira sagrada mihares de anos atrás, de repente essa repulsa e essa recriminação da sociedade são só um reflexo desse instinto coletivo que nos afasta da nossa verdadeira essência e gera o uso desregrado e para nada sagrado de tudo isso.

Pessoalmente, nunca fiz uso regular de nada além do álcool, mas não posso questionar e pensar nessa possibilidade... Se nós somos capazes de criar formas pensamento que nos aprisionam em casulos e medos só nessa vida, quantas outras estruturas podem não estar sendo alimentadas por nós e por toda a coletividade que dividiu o mundo com a gente desde então?
Como naquela história dos macacos que não subiam a rampa para buscar as bananas pelo choque que elas levariam ao faze-lo - e seu comportamento influenciou os macacos de outra ilha - com certeza temos muito do nosso comportamento grudado à essas paredes "invisiveis"...

5/11/14 13:24  

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