Comentário: o que é Deus?
Comentário das respostas da pergunta “o que é Deus?”, parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori responderam a 7 perguntas sobre o tema. Para saber mais, leia a premissa da série.
[Raph] Alguns leitores se perguntaram qual seria a minha própria resposta para esta e outras perguntas da série, mas a minha intenção não era propriamente responde-las (até mesmo porque algumas delas não têm exatamente uma resposta), e sim iniciar uma reflexão, uma nova gama de pensamentos, um debate proveitoso e respeitoso sobre os temas que, por alguma estranha razão, volta e meia são taxados de polêmicos. Às vezes, até mesmo de tabus.
Com o tempo, eu passei a compreender em parte o motivo pelo qual a maioria das pessoas se sente desconfortável quando alguém chega para elas e diz: “Deus é assim”; ou “Deus é desse jeito”; ou “Aceite Deus como dizemos que é, e será salvo”; ou até mesmo “Não existe Deus, não creia nessa grande bobagem”... Talvez seja mais simples me fazer entender evocando a própria linguagem, pois é afinal apenas através dessas cascas de sentimentos, as palavras, que tentamos compreender e nos comunicar uns com os outros. E a linguagem é muito proveitosa e útil em inúmeros casos – é sempre bom falarmos em “rua” e “avenida” quando queremos saber de algum endereço; ou em “comida” e “restaurante” quando estamos famintos no meio da cidade. Em outros casos, entretanto, a linguagem nem sempre é o suficiente – falamos em “liberdade”, “disciplina”, “justiça”, “Deus”, etc., e as pessoas prontamente pensarão nos conceitos (subjetivos) mais distintos, em alguns casos até mesmo opostos uns dos outros.
Substituamos, então, a palavra “Deus” por “amor”, e temos afirmações desse tipo: “O amor é assim”; ou “O amor é desse jeito”; ou “Aceite o amor como dizemos que é, e será salvo”; ou até mesmo “Não existe o amor, não creia nessa grande bobagem”... Sim, é um exercício proveitoso, mas devemos tomar cuidado com esse jogo de linguagem. Se, por um lado, cada um tem sua própria visão de Deus, e do amor, e do Cosmos, e da vida, e da natureza, etc., há uma boa razão para todas essas palavras terem sido nalgum dia criadas, e não serem uma mesma ideia, um mesmo conceito. Não são. O que eu queria dizer ao associar Deus com o Cosmos ou, agora, com o amor, não é que tais conceitos são a mesma coisa, mas pelo contrário: que assim como cada um tem sua própria visão deles, mesmo quando falamos em uma só palavra – “Deus” –, ainda assim essa divergência, essa interpretação subjetiva, própria de cada um, persiste.
É exatamente por isso, por não existir um único Deus enquanto conceito, mas sim o Deus de cada um, que eu aprendi que é bem melhor iniciar uma conversa sobre este assunto com uma pergunta, e jamais com uma afirmação: pergunte “o que é Deus para você?”, mas jamais diga “Deus é desse jeito” ou “Deus existe” ou “Deus não existe”... Depende de cada um, de cada visão específica do Cosmos sobre si mesmo – nenhuma digital em 7 bilhões é igual, nenhuma mente é igual, nenhuma crença (subjetiva) é igual. Os radicais e dogmáticos são aqueles que pretendem que acreditemos que todos podem efetivamente pensar igual, num mesmo conjunto de regras morais infalíveis, seguindo manuais de verdades absolutas – mas a única verdade absoluta que existe é que existe algo, e não nada. O resto, todo o resto, é apenas derivado desse fato extraordinário, desse mistério inefável, infinito: existe algo, isto tudo a nossa volta, isto tudo dentro de nossa mente, é parte disso, é parte do Cosmos, é parte de Deus, não é nada, jamais foi ou será nada...
Mas, então, não estamos realmente falando do Deus antropomorfizado, reduzido a nossa semelhança, que parece ter personalidade e desejos específicos, que parece ser um ser, um deus pessoal. Estamos nos aventurando a um infinito maior, a origem de todas as coisas, ao que mantém a ordem e harmonia de todo o Cosmos, da mais ínfima informação subatômica ao mais vasto agrupamento de galáxias a vagar pelo tecido do espaço-tempo. Estamos falando de uma força, ou de várias forças irradiadas de uma só. Estamos falando de um Deus que parece ser um Todo, um deus impessoal, incriado, mas que tudo mais irradiou a partir de si.
E, se ao engendrar o conceito de tal Deus substância, a substância que não pode criar a si mesma, Espinosa se preocupou em estabelecer um Deus em oposição aos demais, isso até tem sua relevância, mas é muito pequeno perto da magnitude de nos aventurarmos nessa viagem, nesse caminho de horizonte sem fim, dessa tentativa de sondar a mente do Cosmos. Podemos dizer, sem dúvida, que aqueles que creem nesse Deus-Substância são em realidade ateístas, pois o próprio termo “ateísmo” admite inúmeras interpretações. Mas não podemos imaginar que apenas um rótulo incerto como esse (“ateísta”, “espinosista”, “panteísta”, que seja!) sirva para que ignoremos o assunto, evitando ter de nos aproximar do pensamento alheio, como se o pensamento alheio fosse alguma espécie de vírus capaz de nos afetar as ideias e nos fazer abandonar nossas próprias crenças ou descrenças.
Quem sabe, afinal, o que é Deus? Seja uma entidade descrita por livros infalíveis, seja um conceito filosófico além de nossa atual compreensão, seja um grande acaso cósmico, nada disso é definitivo, pois nada disso encerra a ideia. A única coisa de que sabemos é que ainda não sabemos responder a tal pergunta e, segundo os agnósticos, talvez jamais possamos respondê-la. Mas, alguns de nós também sabem de outra coisa, que passa desapercebida da maioria: que quem têm de responder somos nós, juntos!
Se vamos usar a Deus como um Deus-Barreira, se interpondo entre aqueles que pensam como a gente, e aqueles que discordam de nós, estaremos fazendo, talvez, o uso mais vil e pernicioso deste conceito tão abrangente, infinito, iluminado... Melhor seria aprender com Espinosa (e Einstein, e os estóicos) e imaginar um Deus-Substância a irradiar-se por tudo o que há, que foi, e será. Um Cosmos que talvez tenha mesmo possibilitado a vida consciente para que a própria consciência pudesse visualizar esta luz, esta beleza, esta harmonia infindável. É pensando nisso que nos conectamos a eternidade. É pensando nisso que despertamos, passo a passo, nossa intuição, nossa consciência, nosso amor... É pensando nisso, enfim, que percebemos quanta felicidade, quanta alegria, quanta sabedoria, nos esperam no caminho de volta.
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» Veja também o artigo "Teísmos e ateísmos", que foi escrito inspirado por esse debate.
» Ver todos os posts desta série
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Crédito da foto: APOD
Marcadores: ateismo, ciência, Del Debbio e Mori, Deus, Espinosa, espiritualidade, existência, filosofia, linguagem, panteísmo, religião
3 comentários:
ótimo!
Provar quem ou o que é Deus é uma tarefa dificil, senao impossivel.
Mas negar a existencia dessa força maior é negar a propria existencia e a propria sabedoria.
Gostei muito do texto
Muito bom, amigo. O tal "nada" surge, creio eu, devido a necessidade de representação do Imanifestado. é comum chamarmos o Cosmo, todo o universo manifestado de o Todo, o Uno, a unidade primordial, etc e ficou uma lacuna com o que havia antes. Para Espinosa, a "substancia" foi uma saída inteligente: seja como matéria, matéria escura, energia, anti-matéria, potencialidade, singularidade, etc, ela é. Dion Fortune teve sua citação de "Pressão", que também acho atraente, apesar de rasa e o bicho-papão do Aleister falava de "zero cabalístico", "o nada como o devir do Tudo e não como nulidade" (o que é confuso) para representação do Imanifesto versus o Todo como o somatório do manifesto. Creio que esse paradoxo "Todo x nada" é apenas mais um para "Manifesto x imanifesto", só que o que é imanifesto, nem por isso é nulidade absoluta, ausencia absoluta, etc. Eu, particularmente, prefiro chamar esse tal "nada que não é nulo", essa "pressão inicial", ou essa "substancia", quando imanifesta, de "potencialidade oculta", sem o termo energia, pois energia já requer manifestação preexistente (mesmo a energia potencial, que existe em potencial pq qualquer corpo pode entrar em movimento, precisa do corpo parado). Claro, é só mais um ponto de vista dentro dos trilhões, só mais um degrade de cores, que eu mesmo posso mudar amanhã, durante o café... Talvez, "infinito" ou "absoluto" sejam mais adequados, mas as palavras perdem totalmente o sentido ao cair nesse tipo de reflexão, pois é uma tentativa da mente de reconciliação de todos os opostos e isso não pode ser nem mesmo pensado, nos moldes do pensamento cognitivo, quanto mais transcrito.... abraços!
Acho que a grande questão, a reconciliação do paradoxo da existência, do Tudo vs. Nada, é que não existe esta dualidade nem aqui, pois no caso de Tudo e Nada, ou existe um, ou outro.
E, em existindo o Uno, em o Cosmos, o Universo, serem "o inverso do Uno", sua irradiação, sua divisão, seu pensamento, sua substância, em realidade o Nada jamais existiu, e jamais existirá.
Pode parecer muito "fora do padrão atual" pensar em tais coisas, mas, por outro lado, acho que toda nossa questão existencial deriva dessas reflexões... De certa forma, toda a Religião, a Filosofia e a Ciência se sustentam nesse tipo de questionamento...
Disse Jesus: se vocês disserem qual a vossa origem, dizei-lhes: viemos da Luz, de onde a Luz se originou dela mesma. Ela permaneceu e revelou-se a si mesma em sua imagem. Se vos disserem quem sois vós, dizei-lhes: somos seus filhos e somos eleitos do Pai Vivo. Se vos perguntarem qual é o sinal do vosso Pai em vós, respondei-lhes: é o movimento e o repouso. (O Evangelho de Tomé [o Dídimo] – v.50)
Abs!
raph
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