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19.6.24

Oceânico, parte final

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Aquele que tenha explicá-lo, mente

Para realizarmos qualquer coisa, mesmo a mais banal, como ir até a sorveteria tomar um sundae ou uma banana split, antes de mais nada precisamos ter a vontade de agir. Segundo Freud, todos nós temos uma espécie de reservatório de energia psíquica, isto é, uma quantidade de energia disponível para realizar nossas atividades. Freud também chamou essa energia de libido, uma espécie de energia sexual. Tal energia pode se manifestar diretamente na vida sexual em si, como no sexo ou nas fantasias eróticas, mas Freud acreditava que ela também serve como um impulso, uma pulsão, para a realização das mais diversas atividades, mesmo aquelas que julgamos ter pouca ou nenhuma relação com o sexo. Por exemplo, para ele a atividade artística é uma forma de sublimação da libido: ao invés de buscar a satisfação de seus impulsos estritamente sexuais, o artista “desvia” tal energia para a execução de todo tipo de atividade artística. E isso também é válido para a ciência, o trabalho em geral, e até mesmo a espiritualidade. Aliás, essa foi a principal divergência de Freud com Carl Gustav Jung, o jovem psiquiatra que era uma espécie de “discípulo predileto” do fundador da psicanálise.

Ao contrário de Freud, Jung acreditava que a energia psíquica tinha uma origem espiritual, e que poderia se manifestar de diversas formas nas ações humanas, incluindo aí a sexualidade. Mas Freud permaneceu irredutível em sua crença de que tal energia era primordialmente sexual, e que poderia até influenciar a espiritualidade, mas não o contrário. Os dois grandes nomes da psicologia do século XX divergiram justamente no que seria o fundamento da energia psíquica. Ainda assim, é preciso analisar com cuidado a divergência de Jung, pois não é que ele achasse que a sexualidade não tinha papel extremamente importante na vontade humana (e nesse aspecto ele não discordava de Freud), apenas ocorre que Jung não era tão avesso à espiritualidade em geral, e de alguma forma acreditava que a sexualidade por si só não era suficiente para abarcar toda a experiência religiosa, que ela não daria conta de explicar o tal sentimento oceânico (que ele provavelmente chamaria de misticismo).

Foi Jung quem popularizou os termos introversão e extroversão (ou “extraversão”, como ele escrevia) quando fundou seu corpus teórico e clínico, que chamou de psicologia analítica. A premissa básica é que os introvertidos buscam energia internamente, em solitude, enquanto os extrovertidos a obtêm da própria relação com as pessoas ao seu redor. No entanto, embora hoje em dia muitos de nós nos descrevamos como “extrovertidos” ou “introvertidos”, e vejamos esses traços como partes essenciais de nossa identidade, as definições de Jung não eram tão polarizadas. Na visão de Jung, precisávamos buscar essa energia tanto nas relações externas quanto dentro de nós mesmos para sermos pessoas plenas. Longe de definir “o que somos”, como algo escrito em pedra, Jung considerava a introversão e a extroversão como tipos de consciência que podemos experimentar de maneiras diferentes em situações distintas. Tanto a introversão quanto a extroversão podem dominar nosso comportamento, mas também podemos nos beneficiar da outra, não dominante. Aproveitando ambas as fontes de energia, podemos realmente expandir nossa experiência de vida.

Jung trouxe da alquimia antiga essa noção de que precisamos equilibrar as nossas caraterísticas internas, e tal noção também perpassa a sexualidade sagrada, a união e o equilíbrio dos polos feminino e masculino, algo que todos nós carregamos conosco, a todo momento. Mas, para explicar isso melhor, será bom recorrermos ao taoismo chinês:

Bem, o taoismo é uma filosofia espiritual bastante vasta, aqui bastará nos focarmos nos conceitos de yin e yang. Eles descrevem duas forças fundamentais, opostas e complementares, que podem ser encontradas em tudo o que há na natureza. O yin é o princípio feminino, a terra, a passividade, a escuridão e a restrição, enquanto o yang é o princípio masculino, o céu, a atividade, a luz e a expansão. Claro que citei apenas alguns exemplos de opostos complementares aqui, pois a lista é infindável. Seja como for, não há qualquer espécie de hierarquia entre os dois princípios. Por exemplo, se dizemos que yang é positivo, ele só é positivo quando comparado a yin, que será negativo. Essa analogia se assemelha a carga elétrica atribuída a prótons e elétrons, de modo que um não é “bom” por ser positivo, tampouco o outro será “mau” por ser negativo.

Segundo essa ideia, cada ser, objeto ou pensamento do universo possui um complemento do qual depende para a sua existência e que, por sua vez, também o traz dentro de si. Disso se tira que nada existe em estado absolutamente puro nem na absoluta passividade, mas sim em constante transformação. Há um símbolo que resume muito bem o yin e yang, e que muitos de vocês possivelmente já viram em algum lugar. Ele se chama taiji, e representa duas carpas vistas do alto, nadando em círculos num lago. Há uma carpa preta, de olho branco; e uma carpa branca, de olho preto. Ou seja, a carpa preta, yin, também tem um pouco de yang; e, da mesma forma, a carpa branca, yang, também carrega um pouco de yin consigo. E ainda temos um conceito essencial no símbolo em si: ambas as carpas jamais param de nadar, e do seu nado advém o equilíbrio e a harmonia de todas as coisas.

Com isso tudo em mente, será muito importante levar em consideração, daqui em diante, que na sexualidade sagrada, nos diversos rituais e práticas de magia sexual, sempre haverá uma conexão entre dois seres humanos, entre duas almas [1], e uma delas fará o papel ativo (yang), enquanto a outra assumirá o passivo (yin). Isso não significa que tais papeis não possam eventualmente se inverter. Tampouco significa, como alguns já devem ter percebido, que todo homem seja sempre ativo, e toda mulher, sempre passiva. Aliás, sequer podemos levar em consideração a própria orientação sexual de cada participante, pois um casal homossexual também terá aquele que se sente mais à vontade no papel de yang, e aquele que está mais próximo de yin. Ou, em outras palavras, no fundo no fundo somos todos alma.

Pois bem, eu sei que muitos gostariam de saber em detalhes como eram exatamente tais rituais sexuais milenares, o que era, o que é exatamente a magia sexual. O que eu posso dizer é que, de certa forma, a única coisa que separa a magia sexual de qualquer outro tipo de magia [2] é o contato íntimo entre os operadores de determinado ritual. Afinal, nada do que se faça com falos e orifícios deveria ser alguma novidade para um mago, de modo que o próprio ato sexual em si é mera parte de um processo, e não um fim em si mesmo.

Como em qualquer ato mágico, o sexo sagrado também busca uma alteração na consciência. Ao contrário de diversas outras técnicas, no entanto, como as que se valem do controle da respiração ou de encenações teatrais específicas, nesse tipo de magia há um momento de alteração radical do estado de consciência, que no mundo profano é chamado de orgasmo.

Ora, sejam ou não magos e sacerdotisas, todos os que já experimentaram ao menos um orgasmo sabem muito bem do que se trata, não é preciso descrever nada: o orgasmo é uma experiência. A questão é saber o que diabos exatamente é essa experiência. Há um termo em francês que também é sinônimo para orgasmo, la petite mort, a pequena morte. Ele compara o orgasmo à morte no sentido de que experimentamos uma alteração tão radical em nosso estado de consciência usual, que é como se tivéssemos “morrido por alguns instantes”. Mas é precisamente esse estado quase que alienígena de consciência, onde muitas vezes sequer temos noção do tempo e do espaço, que possibilita que a própria magia sexual ocorra de modo mais potente. Se quiser saber como é, poderia, por exemplo, nos momentos que antecedem um orgasmo, começar a pensar em natureza, em montanhas e florestas e riachos, em abundância de vida, na Deusa como ela é, ao invés de nádegas e falos.

Nos primórdios da humanidade a religião era matriarcal, a mulher era sagrada, e o seu corpo era um templo. No xamanismo ancestral, os ritos de iniciação eram realizados nas cavernas, pois suas entradas eram comparadas a vaginas, uma vez que o próprio interior da caverna era o ventre da Deusa. Pode parecer estranho pensar sobre isso hoje, mas até mesmo as catedrais góticas seguiram esse padrão simbólico, uma vez que a Igreja também era a “esposa” de Cristo. E, se até hoje bebemos simbolicamente o sangue de Jesus em certas cerimônias, não deveria causar grande surpresa que isso também tenha se originado em ritos muito, muito mais antigos.

No fim das contas, o sentimento oceânico de fato sempre esteve à nossa disposição. Não é sequer o caso de termos de buscá-lo lá fora, no topo de alguma montanha, no texto de algum grimório secreto, mas simplesmente de retirar as barreiras que nós mesmos erguemos contra ele, quiçá por ser tão avassalador, tão irracional, tão além das palavras. Delimitamos nosso ego quando deixamos de ser recém-nascidos na Criação, e experimentar o sentimento oceânico pode ser a via mais breve de retorno ao que sempre fomos.

Há uma wali (amiga de Allah), uma mística sufi que viveu no Oriente Médio, lá no século VIII, que soube descrever essa tal experiência de modo muito poético – quiçá o único modo com que ela possa, de fato, ser descrita:

Em Ishq-e Haqeeqi [3], não há nada se interpondo 
entre um coração e outro.

O querer falar nasce da saudade,
a verdade acerca do real sabor da vida.
Aquele que o provou, sabe;
aquele que tenta explicá-lo, mente...

Como você poderia descrever a verdadeira forma de Algo
em cuja presença você se torna um borrão?
E em cujo Ser você ainda existe e perdura?
E que vive como um signo eterno para a sua jornada?

(Rabia Basri)


***

[1] É claro que os adeptos da não monogamia também podem adentrar a sexualidade sagrada com três ou mais almas, de uma só vez. Apenas leve em consideração que cada alma adicional torna a operação exponencialmente mais complexa. Nada impede, entretanto, a simples alternância de casais dentro de uma relação não monogâmica.

[2] Se você crê que “magia” é o mesmo que “algo que não existe”, ou “algo que se faz contra Deus”, talvez não devesse sequer estar por aqui. Mas, se gostou do que leu até aqui e ficou curioso em descobrir o que é de fato magia, recomendo o meu livro Artemagia (Edições Textos para Reflexão).

[3] Ishq-e Haqeeqi, o amor divino, a experiência de união mística com Deus, algo que pode muito bem ser comparado ao sentimento oceânico. Você pode encontrar este e outros poemas de Rabia Basri no livro Rumi – Além das ideias de certo e errado (Edições Textos para Reflexão).

Crédito das imagens: [topo] cena do filme Um método perigoso (respectivamente, Jung e Freud); [ao longo] Google Image Search (taiji taoista); Dennis Mahlmeister (O Grande Rito).

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