Astrologia genética
Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.77 a 81. Tradução de Claudio Angelo. Os comentários e notas ao final são meus.
Infelizmente, o entendimento de muita gente da relação entre genes e caracteres é baseado nesse minúsculo conjunto de doenças monogênicas [1]. A visão popular é a de que os genes determinam, individual e diretamente, a aparência de uma pessoa e o seu comportamento. Nós temos genes para isso e aquilo (a cor dos nossos olhos, o formato do nosso nariz, o quanto somos tímidos, a nossa orientação sexual etc.), e a pessoa que você vê é em grande parte a soma dos efeitos dos genes dele ou dela mais um pequeno verniz social e educacional. O indivíduo é visto como pouco mais do que um robô, guiado por seus genes [2].
Obviamente, tal concepção de como os genes agem abastece a crença de que a biotecnologia dará enormes poderes aos geneticistas. As pessoas acreditam (e são incentivadas pelos cientistas a acreditar) que num futuro não muito distante os geneticistas conseguirão descobrir tudo a respeito delas apenas seqüenciando o seu DNA [3]. Não apenas os geneticistas poderão traduzir o “livro da vida” de cada pessoa como também serão capazes até mesmo de editá-lo, cortando os erros se necessário.
[...] A convicção de que o caráter de uma pessoa está “escrito nos genes” foi uma das razões para a reação histérica do público quando a clonagem produziu a ovelha Dolly. Aquela ovelhinha invocou uma estranha mistura de sentimentos, pois por um lado parecia oferecer a esperança da imortalidade pessoal [4]; por outro, porém, dava a impressão de que a nossa identidade individual única estava sob risco. Ambas as noções derivam da crença de que a relação causal entre genes e caracteres é simples e previsível – ou seja, que conjuntos idênticos de genes sempre produzirão fenótipos [5] idênticos. Essa convicção, no entanto, é muito enganosa e potencialmente prejudicial.
Nós não podemos garantir que no futuro não haja institutos de genética que finjam ler o futuro de um embrião no seu DNA. Se houver demanda, com certeza haverá pessoas dispostas a estabelecer esses institutos. No entanto, poucos geneticistas profissionais (ao menos em seus momentos mais lúcidos) acreditam em tal astrologia genética [6]. Isso apesar de incessantes alegações nos meios de comunicação de que o gene para a homossexualidade, o espírito de aventura, a timidez, a religiosidade ou de alguma outra característica mental ou espiritual foi isolado. Os geneticistas são em geral muito mais cautelosos em relação ao seu trabalho. Se você ler artigos científicos genuínos em vez de reportagens nos jornais sobre esses genes maravilhosos, vai perceber que na verdade o que se descobriu foi uma correlação entre a presença de uma determinada seqüência de DNA e a presença do caractere. De forma geral não fica claro que a seqüência de DNA tem uma relação causal com o caractere, e quase sempre fica bem claro que “o gene” não é condição necessária nem suficiente para o desenvolvimento do caractere.
[...] Estudar a genética humana não é fácil, pois os pesquisadores não podem controlar com quem as pessoas devem se casar e como elas devem viver [7]. Sempre há muitos fatores incontroláveis que poderiam estar influenciando aquilo que eles descobrem. Mesmo quando um estudo mostra que existe uma correlação entre a presença de um alelo [8] em particular com algum aspecto do comportamento humano, nós temos de ter cuidado em aceitar que essa relação seja causal. Por exemplo, precisamos saber se a associação observada é encontrada sob todas as condições e em todas as populações ou apenas na amostra estudada pelo cientista. Uma das razões pelas quais muitas celebradas descobertas dos “genes para” várias coisas terminaram em um silêncio constrangedor é que, quando começaram a seguir a descoberta original, os cientistas concluíram que a correlação não existia em outras populações. É muito raro que a associação entre um gene e um traço seja algo simples [9].
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Comentário geral
Aqueles que costumam ler meus artigos a algum tempo devem lembrar que abordei a questão do problema da evolução cognitiva em artigos como “A evolução desconhecida” e no mais aprofundado “Onde estarão os memes?”; Nesses artigos questionei a solução encontrada por teorias da biologia (os memes de Dawkins) e da psicologia (o Inconsciente Coletivo de Jung) para a questão da transmissão de características não físicas entre as gerações, e tentei demonstrar como a hipótese da reencarnação é ao mesmo tempo mais lógica e mais abrangente para a explicação do problema.
Pois bem, neste excelente livro (talvez revolucionário, tento pelas questões levantadas quanto por ser um dos poucos livros de grande alcance na divulgação científica atual escrito por mulheres – ver também, por exemplo, a excelente crítica recebida na Scientific American de Abril de 2010 [ano 8, #95]) as autoras trazem a primeira teoria inteiramente científica (leia-se, “ciência oficial” e/ou “não espiritualista”) que explica o problema levantado.
Sua teoria identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir.
Não significa que explique alguns fenômenos como o das crianças que se lembram de vidas passadas, mas ao menos trata-se de uma teoria muito mais sólida, plausível e abrangente do que as propostas por Dawkins, Jung, pelos psicólogos evolutivos e ainda muitos outros.
O importante é que elas estão, verdadeiramente, caminhando adiante – e não estagnadas em um “genecentrismo” que nada mais é do que um antigo dogma da biologia.
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[1] Doenças de origem em componentes genéticos que se resumem a alterações de um único gene. São menos de 2% do total de doenças genéticas mapeadas – a maioria envolve a interação complexa de inúmeros genes e muitas vezes do ambiente em si.
[2] Essa é precisamente a visão do determinismo genético. Uma visão que vem se provando cada vez mais falha com o passar dos anos, e da divulgação de estudos mais honestos e corajosos sobre a evolução das espécies – em particular do homo sapiens.
[3] É o sonho neo-modernista do “autoconhecimento fast food”. As pessoas estão tão distantes delas próprias que crêem piamente que poderão “se descobrir” pelo seu DNA. As pessoas ainda vão sofrer muito, sem idéia do que fazer com seu sofrimento, e a indústria do “antidepressivo tarja preta” agradece...
[4] Como se a imortalidade (física) fosse resolver nossos problemas... Mas isso já é uma outra história.
[5] O fenótipo são as características observáveis ou caracteres de um organismo como, por exemplo: morfologia, desenvolvimento, propriedades bioquímicas ou fisiológicas e comportamento. O fenótipo resulta da expressão dos genes do organismo, da influência de fatores ambientais e da possível interação entre os dois.
[6] Seria melhor recorrer à astrologia tradicional, que tem muito mais a ver com uma “previsão” das potencialidades e da personalidade do bebê, do que o que vem codificado em seu DNA – e trata apenas de características físicas. Mas não quero aqui discutir sobre a astrologia em si, deixo isso para meu amigo Marcelo Del Debbio, que a conhece bem mais do que eu.
[7] Muitos pesquisadores investigam certas regiões da Índia onde a tradição dos “casamentos familiares” entre primos é seguida a milênios. Se existe alguma “raça pura” no sentido de ter seus genes restritos a um pequeníssimo grupo de pessoas a incontáveis gerações, ela está na Índia – e é bem mais fácil “isolar genes” entre eles.
[8] Um alelo é cada uma das várias formas alternativas do mesmo gene. Por exemplo, o gene que determina a cor da flor em várias espécies de plantas - um único gene controla a cor das pétalas, podendo haver diferentes versões desse mesmo gene. Uma dessas versões pode resultar em pétalas vermelhas, enquanto outra versão originará pétalas brancas.
[9] Não somos máquinas nem robôs, não adianta buscar “manuais de código fonte” para nos decifrar. Esse tipo de conhecimento será sempre um conhecimento “pela metade”, ou até bem menos da metade. Pretender que seres que interpretam informação se assemelhem a máquinas que simplesmente a computam é algo tão ou mais fantasioso quanto crer na literalidade bíblica.
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Crédito da imagem: Autism News
Marcadores: autores selecionados, autores selecionados (41-60), biologia, ceticismo, ciência, Eva Jablonka, evolução, Genoma, Marion J. Lamb
6 comentários:
Muito bom seu site, sua analises e seus textos. Está nos meus favoritos! Grande abraço!
Obrigado, achei bem interessante o blog sobre araras (que você segue, vi no seu perfil). Um dos lugares mais belos que já visitei foi o Buraco das Araras em Bonito/MS.
Abs!
raph
Então Rafa, o blog é do meu irmão. Ele tem um pequeno zoo em casa e é apaixonado por animais, em especial papagaios. Abração. Qualquer coisa me contata no e-mail.
Sem dúvida a abordagem deve ser a mais holística possível. Acredito que somos um 'balaio de gato', onde tudo pesa, genes e experiências, que, consequentemente, determinam as preferências e por fim, as escolhas.
Boa noite:
Bastante oportuno o texto!
O achei pela imagem que consta...
De fato - a GENÉTICA é responsável por inúmeras coisas da natureza humana (e também da ANIMAL); além de muita coisa ainda ter que ser desvendada.
Assisti recentemente a um documentário abordando o GENE DA VIOLÊNCIA (denominado de GENE GUERREIRO). Bem curioso o programa_mostra que muita coisa ainda deve ser descoberta.
Até acho que coisas que envolvem PSICOLOGIA (sem esquecer da PSIQUIATRIA) seja complexa; a parte mais enigmática do ser humano - mais difícil que a ONCOLOGIA!
Essa última aí provavelmente está ligada ao psíquico em grande parte...
Valeu,
Rodrigo Rosa
http://rodrigo-arte.blogspot.com/
Oi Rodrigo,
Pois é, a grande dificuldade dos cientistas é compreender como genes que transmitem apenas características físicas podem, hipoteticamente, serem responsáveis pela transmissão de características psicológicas e comportamentais.
Falo mais sobre isso na série Onde estarão os memes?
Abs!
raph
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