Mulher objeto
Vamos ser honestos e ir direto ao ponto: faz muito tempo que o mundo ocidental é machista – no mínimo, desde que o culto a Deusa foi destroçado pela Igreja, mas isso não vem ao caso no momento...
Sim, já foi pior, já foi muito pior. Houve época em que mulheres “não tinham alma”. Houve época em que não podiam nem estudar nem trabalhar “porque sua única função era cuidar da casa e dos filhos”. Houve época em que não podiam votar e muito menos se eleger... Mas graças aos anticoncepcionais e aos movimentos de emancipação do século passado, as mulheres hoje estão em situação bem mais digna.
Ou melhor, elas sempre estiveram em situação digna. Os homens é que eram indignos das mulheres, pois por muito tempo foram educados para as tratar como seres secundários, às vezes serviçais.
Dizem que a humanidade não evoluiu moralmente. Os dogmáticos do apocalipse adoram lembrar que nossa evolução tecnológica nada fez por nossa moral. Dizem que “não há nada de novo abaixo do céu”... Eu não concordo.
Não concordo, porque há 2 mil anos o povo ia ver feras devorarem homens no Coliseu de Roma. E aplaudiam... Hoje o povo vai a um estádio de futebol (mesmo em Roma) para ver uma disputa esportiva, e raramente aplaude algum derramamento de sangue – é claro que os hooligans estão aí para nos lembrar do quão ignorante parte de nós ainda é, mas eles são a minoria, felizmente...
Os homens diziam que o mercado de trabalho não comportaria o afluxo de mulheres, que isso provocaria desemprego e conflitos e caos generalizado... Não, o apocalipse não chegou porque uma mulher assumiu a gerência de uma multinacional, ou a presidência de um país. Elas não são tão diferentes assim dos homens, e em muitas áreas são estatisticamente melhores – como na direção de automóveis, por exemplo; Se não acredita basta verificar em qualquer seguradora quanto custa o seguro para homens, e quanto custa o mesmo seguro para mulheres.
Mas há homens inteligentes e sensíveis o suficiente para reconhecer todas as potencialidades femininas... Vejamos o presidente da França, por exemplo, que certamente não deve ter muitas reclamações acerca da belíssima ex-modelo com quem se casou – uma artista de mão cheia, que não deixou de ser musicista e nem escritora por ser uma “primeira-dama”. Quantos homens não se sentiriam intimidados por uma Carla Bruni? Alguém tão bela, tão dona de si mesma, tão deliciosamente poética... Seria “muita areia para o caminhãozinho dele”? Certamente, talvez exatamente por isso ele esteja com ela – “o mais improvável dos relacionamentos”. “Improvável”, isto é, para os machistas que ainda se sentem melhor com as mulheres serviçais, as secundárias, as que não os podem ofuscar...
Porém, os ecos da barbárie medieval e a sombra da ignorância humana ainda se fazem presentes na época atual. Há algo de obscuro enterrado no cerne de nossa educação precária. Uma idéia de que homens são provedores e mulheres são “alguma espécie de bem material” – e que os homens devem ter muito, muito dinheiro, para poder “usufruir” dessas mulheres. Eis o absurdo conceito de mulher objeto (não estou me referindo a parafilia, mas simplesmente ao conceito em si), tão absurdo que se oculta longe da racionalidade, de modo que muitas vezes ele está no inconsciente, e não no consciente. Mulheres objeto no inconsciente coletivo de homens, e também de mulheres... Não acredita?
Se não acredita, dê uma breve olhada em comerciais de cerveja, em revistas masculinas, em sites pornô – ou melhor, talvez seja mais simples ir direto ao ponto, direto na “ferida”...
Clipes de música americana! Eles infestam as mentes de jovens e adolescentes – e mesmo de crianças e pré-adolescentes... Eu poderia citar vários exemplos, mas vamos direto a um ícone, do Black Eyed Peas (vale lembrar que não tenho nada contra a música em si, mas contra a idéia que os levou a escrever uma letra que, no fim das contas, resume muito bem o conceito de mulher objeto):
Na música acima, chamada “My Humps”, temos praticamente uma relação comercial estabelecida: o homem deve prover a mulher com dinheiro e jóias caras, e ela deve prover ele (com o perdão da palavra) com “muita bunda dentro do seu jeans” – eu estou apenas traduzindo a letra!
Algumas mulheres perceberam o absurdo estabelecido na cultura musical “pop” americana... Alanis Morissette nos brindou com sua brilhante paródia da mesma música, em que ela usa a mesmíssima letra, mas com outro ritmo (ela certamente não pretendia lançar um hit com esse clipe):
Isso dá uma pequena idéia geral de como o conceito de mulher objeto penetra em nossa cultura desde praticamente o berço – e nem sempre nossos adolescentes percebem por onde esse tipo de pensamento adentrou suas vidas (e até mesmo alterou o funcionamento cerebral)... Infelizmente não somos educados para pensar por nós mesmos, e dá no que dá: “conceitos enlatados goela adentro” – muitos de nós são praticamente gansos com cérebro inchado (ao invés do fígado).
E como mudar? Como fazer com que as mulheres escapem dessa sina – e de quebra reduzir (muito) a violência contra a mulher, causa direta de muitos traumas e assassinatos, mesmo nas “melhores famílias” –?
Simples: não aceite. Não compre essas idéias. Analise a si mesmo, conheça aos próprios pensamentos, e questione-se até que ponto eles são seus, e até que ponto são fruto de uma sociedade algo decadente, onde o deus do consumo faz o que quer e aonde quer... E todos o aplaudem, ou quase todos.
Mas, sobretudo, homens e mulheres, não desanimem! Quem sabe o dia em que nos chamaremos não de homens e de mulheres – mas de seres, de almas, de consciências –, não esteja tão distante assim... Era após era. Século após século... Hoje melhor do que ontem. Amanhã melhor do que hoje. Passo a passo.
***
» Tradução da música "My Humps" (atenção: a leitura pode fazer você perder a fé na humanidade)
Crédito das fotos: Anônimo/Divulgação.
Marcadores: Alanis Morissette, artigos, artigos (71-80), Black Eyed Peas, história, ignorância, moral, música, ouro, sexo, videos, violência
6 comentários:
Parabéns Raph, seus textos são excelentes, passam uma emoção que poucos escritores conseguem passar...
Esse último me arrepiou, uma mistura de força e suavidade, alegria e sinceridade, impressionante...
Um grande abraço,
Paz profunda!
Oi Júnior,
Muito obrigado pelo comentário. É interessante que escrevi esse texto ontém a noite quase "a força"... Eu realmente não queria escrever sobre o assunto, é muito complexo escrever sobre isso porque podemos sempre ser mal interpretados, mas por alguma razão eu sentei e escrevi...
Que bom que, pelo menos no seu caso, você parece ter interpretado exatamente (ou até mais) o que eu queria passar!
Paz!
Muito bom mesmo!
=)
Cara, não sei se é pra rir ou pra chorar da tradução da letra...
Mto bom o texto, abraço!
As vezes eu gosto de pensar que o próprio Black Eyed Peas estava fazendo uma paródia - bem mais sutil do que a da Alanis... Mas deve ser porque eu sou um otimista :)
Mas enfim, nada contra a música (o ritmo é até bom para dançar, como várias outras músicas deles), o problema é a letra mesmo (e os conceitos evocados, claro).
Abs
raph
Raph, esse tipo de música apelativa é um nojo pois, várias crianças (e adultos) gostam mas nem sabem a letra (e o que elas querem dizer). Um exemplo nacional é o grupo É o Tchan, quem conhece sabe a porcaria musical que isso é (e os "funks"(quem mora no RJ sabe bem como é conviver com isso)). Prefiro a Ana Vidovic, que tem um talento gigantesco. Respeito o gosto musical alheio.
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