Quase morte, parte 3
E vivem como se nunca fossem morrer... e morrem como se nunca tivessem vivido – Dalai Lama
Neófito, não há morte
O reino de Hades, na mitologia grega, é o local para onde seguem os mortos. Existe um conceito bastante interessante desta travessia simbólica, que fala sobre o julgamento dos recém-chegados. Em seu entendimento mais profundo, este mito narra uma espécie de auto-análise da consciência sobre os atos da vida pregressa. Desta forma, o assassino é assombrado pela repetição incessante de seus atos criminosos, como se todas as vítimas estivessem ao seu entorno – ao mesmo tempo sendo assassinadas e amaldiçoando-o. Aquele que enviou pessoas (inocentes ou não) para a fogueira pode se encontrar ardendo no fogo juntamente com elas. Aquele que esteve na Terra julgando-se um “semi-deus”, tratando a todos como escravos, desta feita é ele mesmo um escravo, enquanto seus antigos escravos agora são seus donos, etc.
Já os bem-aventurados, os que tocaram a vida com a leveza de alma necessária, seja por serem almas simples, seja por serem seres de grande sabedoria, praticamente não se afligem nesta passagem derradeira. Acostumam-se ao “lado de lá” como quem chegou de uma longa viagem em uma nação estrangeira. Não têm o que temer nem o que duvidar, pois continuam existindo, e não se encontram em débito com as próprias consciências. Apenas continuam a tocar a vida, em uma nova dimensão da realidade. O Hades não lhes pesa a alma, pois a alma que não é em si mesma pesada, nada tem a ver com a escuridão...
Porém, este mito foi cuidadosamente erradicado pela nova ordem da igreja de Roma, aos cuidados de Constantino... Curiosamente, é exatamente o Apocalipse bíblico – um verdadeiro hino pagão – que afirma que o “Hades cristão” é quase exatamente igual ao mito; No entanto era necessário lhe dar um outro nome, e mudar o seu sistema para que ficasse verdadeiramente assustador.
Assim nasceu o Inferno, governado não por um deus secundário, mas pelo verdadeiro anticristo, o grande adversário, o supremo bode expiatório – aquele de quem era conveniente sequer citar o nome! Mas não era somente isso, agora o julgamento nas portas do Inferno era sumário: ou iremos para o jardim da Árvore da Vida, admirar ao Criador eternamente em uma aparente ociosidade sem fim; ou seremos condenados a arder eternamente em um Lago de Enxofre. Curioso imaginar como os santos do Céu poderiam estar em paz sabendo que qualquer reles mentiroso ou adúltero estaria ardendo eternamente logo abaixo de seu jardim. Tudo bem, você pode até crer que nunca mentiu ou que nunca traiu, mas será que não conhece, será que não ama alguém que cometeu tais pecados? Pois é...
Essa pequena história do Hades e do Inferno diz muito sobre a diferença entre dois conceitos fundamentais: a religião e a igreja.
A religião, etimologicamente vinda do latim re-ligare, significa um caminho de volta, de eterno retorno, de re-ligação a Deus ou ao Cosmos. De compreensão de nossa própria origem e, conseqüentemente, de união com todas as outras coisas e seres, pois que mais dia menos dia neste caminho percebemos que estamos todos conectados. Somos filhos não apenas do mesmo Pai, mas da mesma substância, aquela mesma que o grande Espinosa compreendeu como “o que não poderia criar a si mesmo”... A religião é essencialmente uma experiência subjetiva, e precisa ser assim. Não se pode querer ditar o seu rumo, pois assim como cada um tem a sua impressão digital, sua menina dos olhos e sua própria crença ou descrença, a religião precisa ser livre – ou corre o risco de se tornar dogma.
Já a igreja vem do grego ekklesia, e significa algo como “a comunidade dos escolhidos por Deus”. Em sua forma pura e não dogmática, como é muito comum encontrarmos em doutrinas orientais, a igreja é simplesmente uma comunidade de irmãos e seres afins, que se unem em torno de algum guru ou mestre espiritual, ou em torno de si mesmos, para buscar de forma conjunta, em grupo, o caminho que pertence à religião. É nesse sentido que todo eclesiástico é religioso, embora nem todo religioso pertença a alguma igreja...
Mas é na forma hierárquica, dogmática, que a igreja tem se portado como uma verdadeira seção do Hades na Terra. São nas doutrinas “editadas” por imperadores e governantes evidentemente distantes da religião que nasceram os grandes dogmas e os ultimatos mais irracionais: “ou crê em nosso Manual da Verdade Absoluta, ou estará condenado ao Inferno”; “ou está conosco, ou contra nós”; “ou marcha conosco em nossa Cruzada para converter os infiéis, ou será tu mesmo um infiel”... Nada disso faz sentido, nunca fez, nunca fará. Para qualquer verdadeiro religioso, isso é evidente. Nem Moisés nem Jesus nem Maomé jamais marchariam com exércitos para “evangelizar” seus próprios irmãos, nem tampouco afirmariam que “só será salvo aquele que se converter para este ou aquele grupo eclesiástico”.
É precisamente nessa batalha entre a liberdade e o dogma, entre o conhecimento que se busca e o que se julga já ter, entre a dúvida e a “certeza”, que muitas almas tem se esfacelado desde que o primeiro sacerdote julgou-se a única via entre os homens e Deus. Para quem é espiritualista e reencarnacionista, é até mesmo esperado e compreensível o crescimento do anti-teísmo – para aqueles que foram dizimados pela irracionalidade, não basta hoje não crer no “deus barbudo senhor dos exércitos”, é preciso contra atacá-lo, é preciso fazê-lo pagar, é preciso “evangelizar” aos outros que ele é o pior Diabo que já pisou em nossas terras...
Mas, e para aqueles que já se cansaram de alistarem-se em guerras (santas ou não), o que resta fazer? Será que ainda vale à pena tentar dialogar neste mundo polarizado? Será ainda possível fazer aos seguidores de dogmas perceberem que não se pode matar em nome de Deus? Que Deus não quis nos trazer revelações, mas quis que nós mesmos as encontrássemos em seu Reino – debaixo de uma pedra, dentre um galho de árvore? Que não faz sentido existir um rival do próprio Criador, e que o Céu e o Inferno, e inclusive o Hades, sempre estiveram inscritos em nossa própria consciência profunda?
É nesse momento que a ciência e a observação cuidadosa dos fenômenos espirituais e/ou paranormais (mas nunca sobrenaturais) pode ser o grande elo de um verdadeiro ecumenismo universal. Pois desta vez não estamos mais falando de povos no deserto que eventualmente entraram em contato direto com eventos e seres miraculosos, não estamos falando de fenômenos que se perderam em eras pregressas e hoje só podem ser vislumbrados pela fé – estamos falando de coisas que acontecem aqui e agora, todos os dias, em todos os cantos do planeta. As experiências de morte são apenas uma delas...
Sendo elas um evento conhecido tanto da ciência “oficial” quanto das alternativas, tanto de céticos e ateus quanto de espiritualistas e teístas, e que ocorrem com crianças, adultos e idosos, elas podem ser um elo, um campo de estudo em que (quase) tudo é ainda possível – onde não existe um “deus barreira” ou um dogma a ditar: “é assim!”.
Não, não é assim. Talvez seja mais ou menos como afirmam os espíritas e reencarnacionistas em geral, talvez seja uma ante-sala do purgatório ou uma mensagem dos anjos de Deus, talvez seja um sonho panteísta, talvez apenas um delírio da consciência em sua despedida rumo ao sonho sem sonhos... A única verdade é que ainda não sabemos, mas podemos saber, juntos!
A questão da Criação, do “porque existe algo e não nada”, da natureza exata de Deus, talvez esteja ainda além do nosso alcance – mas o estudo do que acontece quando morremos é um campo promissor tanto da ciência quanto da religião, tanto da neurologia quanto da parapsicologia. É algo palpável, é algo que ocorre em diversos hospitais em todo o mundo. Só não vê quem não quer, só não procura compreender quem tem medo do desconhecido, ou quem se fossilizou abraçado ao seu precioso Manual da Verdade Absoluta.
Mas para todo neófito, não há morte.
***
Crédito das imagens: Maxfield Parrish
Marcadores: artigos, artigos (81-90), céu e inferno, Deus, ecumenismo, eqm, espiritualidade, mitologia, morte, reencarnação, religião
6 comentários:
Tudo muito bem colocado e um texto muito gostoso de ler. Um prato cheio na verdade para quem gosta deste assunto. Experiências de quase morte são realmente um assunto intrigante que deve sim, ser estudado profundamente e ser levado a serio. Ver imagens passadas, recordações marcantes e uma luz no fim do túnel podem ser fatos explicados pela ciência como reações do cérebro ao seu estado de baixo funcionamento, como eu vi no documentário ‘’O Momento da Morte’’ do National Geographic, mas a questão que se diz respeito a relatar fatos que seriam impossíveis em tal situação, deixa ali uma duvida forte, que pode inclusive dar um pouco de medo e receio. Como alguém que esta supostamente morto, parado em uma cama, ou ainda, totalmente sedado, poderia lembrar-se de conversas e movimentos feitos pelos médicos e pessoas ao seu redor?
Talvez como bem colocado em um dos episódios da serie Cosmo do glorioso Carl Sagan, existem outras dimensões além da nossa, onde as mesmas não podem ser vistas por nós, assim como as que estão abaixo de nós não podem viver a nossa. Talvez a morte seja a transferência de nós mesmos para outra dimensão acima da nossa, onde quem aqui vive só poderá presenciar e viver caso passe para ela. Eventos sobrenaturais podem ser influencias e interferências de seres nessas outras dimensões. Existe muita coisa que não podemos enxergar, mas que um dia poderemos viver.
Ótimo texto, li todos os três referentes ao assunto em questão, blog salvo aqui nos favoritos!
Iury, em meus textos eu (quase) sempre deixo uma brecha para interpretações céticas a agnósticas, e fico muito feliz quando vejo comentários como o seu, que consideram todos os lados das questões, mesmo (aparentemente) não vindo de uma visão puramente religiosa (e muito menos de algum dogma).
Também gosto muito daquele trecho do Cosmos. Talvez essas "maças de outras dimensões" sejam uma explicação, uma analogia, muito mais pertinente do que muitos imaginam...
Também são neófitos os que assistiram o Cosmos :)
Abs
raph
Muito bom o texto cara, uma leitura agradável e bem clara, parabéns !
Valeu Eduardo,
É o que tento fazer também. Textos não muito longos e o mais agradáveis possíveis, por isso divido em 3 partes e insiro os negritos para as pessoas terem um guia do que estão para ler :)
Abs
raph
Excelente texto. Aproveito pra confessar que não gosto muito dessa parte da vida: repleta de mistérios. Algumas pessoas dizem que é justamente esse o encanto de se viver. Será mesmo?
Mas, voltando ao tema, acho que merece um aprofundamento cientifico, sim. Seduz-me e traz esperança de que a vida seja mais do que essa presenciada por nós.
Parabéns pela sensibilidade!
Abraços.
Thomas
Oi Thomas,
Seu comentário é bastante pertinente porque reflete exatamente a dualidade existente nessa área, dita "misteriosa".
Ora, o mistério é ruim e incompreensível, parece perda de tempo até considerá-lo, quando o analisamos apenas racionalmente e de forma imediatista. Nesse sentido é até bom que seja ruim...
Pois nos obriga a, mais dia menos dia, analisá-lo com o olhar da alma, com um pouco mais de emoção. E então chegamos ao "buscar para encontrar e encontrar para continuar buscando", de Sto. Agostinho, que serve tanto para um praticante de meditação quanto para um astrônomo que quer achar super-terras na imensidão cósmica.
Já a questão da morte em si, é certamente revigorante que tenhamos indícios de que ela não é uma aniquilação... Mas não devemos encarar isso como um consolo do tipo "salvação religiosa", e sim como uma lei natural - afinal, mesmo que continuemos conscientes, não fazemos idéia de para onde vamos exatamente, e do que exatamente lembraremos, e do que esqueceremos...
E dizem que viver é lembrar, mas não é verdade: viver é existir, desenvolver potencialidades. As lembranças são apenas o pano de fundo de uma história, uma odiseia bem maior do que podemos vislumbrar na era atual.
Por tudo isso, assusta e atrai ao mesmo tempo. Isso é bom, isso é seguir o caminho com um "friozinho na barriga", mas sem nada a nos assombrar, ao menos não ao ponto de impedir que continuemos adiante!
Abs
raph
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home