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9.8.10

Pornografia científica

Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.443 a 446. Tradução de Claudio Angelo. As notas ao final são minhas.

[Alguns trechos do livro trazem um diálogo entre dois personagens fictícios, I.M. é uma espécie de crítico das idéias expostas no livro, enquanto que M.E. é uma espécie de heterônimo que reúne o pensamento de ambas as autoras:]

I.M.: Então quais são as implicações morais da visão de vocês [1]?

M.E.: Biólogos que abordam a hereditariedade e a evolução de maneiras diferentes em geral têm valores e objetivos sociais parecidos. A maioria se opõe ao racismo; a maioria quer um mundo melhor e mais justo, e assim por diante. O grande problema é a imagem pública das diversas idéias biológicas [2]. Como muitos biólogos enfatizam o aspecto genético do comportamento humano, seus pontos de vista muitas vezes são interpretados de forma a levar à crença generalizada de que comportamentos comuns (em geral repreensíveis) são “genéticos”, “naturais” e, como doenças monogenéticas simples, inevitáveis. Isso é bobagem, mas é a maneira como as ideais dos biólogos são percebidas, e a maioria deles não faz nada para mudar essa percepção [3].
Uma visão mais ampla da hereditariedade e da evolução torna explícitos a riqueza de possibilidades abertas diante de nós e o fato de que nossas atividades, como indivíduos ou grupos, constroem o mundo em que vivemos [4]. Especificamente, reconhecer que temos uma história e podemos planejar o nosso futuro, que somos capazes de construir mundos imaginários compartilhados e explorá-los e persegui-los sistematicamente expande em muito a nossa liberdade. A plasticidade do comportamento humano é imensa. Com base no conhecimento atual, ninguém pode negar o poder da construção social histórica e explicar o status quo comportamental e social apenas em termos de genes e memes. Não podemos transferir o poder e a responsabilidade explanatórios para essas entidades!

I.M.: Isso é uma critica da sociobiologia humana, não é?

M.E.: Isso é uma crítica de “persona pública” dessa disciplina, o que em grande parte é culpa dos sociobiólogos. Queremos ser justas e claras: a maioria dos sociobiólogos não acredita que sejamos escravos dos nossos genes. O problema é que alguns deles tendem a promover uma imagem pública vulgar de “tendências” geneticamente determinadas [5]. Para isso eles ridicularizam seus oponentes, erguendo espantalhos e destruindo-os em triunfo, interpretando cada padrão de comportamento, da piada ao estupro, como manifestação de uma adaptação evoluída selecionada em algum momento do passado. O livro A natural history of rape [Uma história natural do estupro], de Thornhill e Palmer, é um exemplo perfeito desse gênero.
Eles não afirmam não ser possível sobrepujar a manifestação de um comportamento como a propensão ao estupro, mas sugerem que isso é muito difícil por se tratar de um comportamento embutido num módulo mental que evoluiu [6]. Nem é preciso dizer que não existe nem sombra de evidências para essas alegações evolutivas. São apenas histórias inventadas [just so stories].
[...] Eles estão sugerindo que é impossível mudar a tendência comportamental por meio de educação e mudança social? Com certeza os defensores dessas visões diriam que não. Diriam que, ao contrário, esses fatores ajudam a saber como moldar a sociedade e educar as pessoas para que elas superem os problemas associados ao lado desagradável de nossos comportamentos evoluídos. Mas ninguém nos diz como construir uma sociedade na qual tendências ao estupro evoluídas geneticamente não possam se manifestar. Essas pessoas e suas obras não trazem nada de significativo além de descrições suculentas e vendáveis de comportamentos sexuais e um punhado de platitudes sobre como evitar ou controlar impulsos inadequados – por exemplo, dando cursos de comportamento sexual a adolescentes do sexo masculino antes que eles aprendam a dirigir ou aconselhando mulheres jovens a se vestirem com discrição (ninguém defendeu ainda a adoção do cinto de castidade masculino).
Há pouco conteúdo real nessa pornografia “científica” soft. Este é um exemplo extremo, claro; Nem todas as histórias sociobiológicas humanas são tão vazias. O problema é que a oposição a elas não é tão forte quanto deveria ser nas fileiras de sociobiólogos mais sérios. [...] E suas versões vulgarizadas são muito populares.

I.M.: Porque elas são tão populares? Que tipo de necessidade elas satisfazem? Talvez isso possa dar uma pista sobre o tipo de visão de mundo que elas refletem.

M.E.: É provável que não exista só uma resposta. Talvez elas satisfaçam uma necessidade de pensar em termos de causas únicas, como na física clássica. Como as leis de Newton explicam os movimentos dos corpos celestes, os genes mendelianos explicariam o comportamento humano. A complexidade é explicada de uma forma simples e científica. Mas há um outro lado nesse fascínio com os genes. Os genes são vistos como elos com nosso passado distante, com os nossos ancestrais, que nos governam de uma maneira irracional e misteriosa.
Há algo de muito romântico nessa noção – na eterna força escura e profunda dos genes a nos guiar [7]. E essa combinação peculiar do romântico com o científico é incorporada a muitas das histórias evolutivas dos sociobiólogos. Talvez seja isso o que torne essas explicações baseadas nos genes tão atraentes para as pessoas [8].

***

[1] A teoria exposta pelas autoras ao longo do livro identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir. Veja também meu comentário em outro trecho do livro publicado neste blog – “Astrologia genética”.

[2] É interessante como eu, que nem sou cientista, muitas vezes sou confundido com um em discussões online, apenas porque me mantenho algo informado sobre a divulgação científica mais atual. Talvez seja sorte em escolher os autores certos, mas acredito que no geral as pessoas mal se esforçam para ler sobre ciência – ao primeiro cientista (ou pseudo-cientista) que lhes traz uma teoria que combine com sua visão de mundo, dão-se já por satisfeitas... É mais ou menos por isso que muitos crêem piamente que os memes de Dawkins explicam a evolução não-física, quando em realidade os memes são muito mais entidades místicas do que elementos genuinamente científicos.

[3] Ou seja: quem não gosta de vender livros? Escreva o que o povo quer ler, ou invente uma nova teoria mirabolante baseada em genes, e venderá bem... Ocorre que raramente essa prática auxilia no desenvolvimento de nosso conhecimento e nossa ciência em geral, por razões óbvias.

[4] Não posso deixar de citar o Chefe Seattle: “Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo.”

[5] Esta é a atual ilusão persistente do determinismo. Anteriormente este papel já coube a deusa Fortuna (e mitos similares), depois a “mão de Deus”, depois aos governantes totalitários (que se diziam infalíveis e/ou representantes divinos), e hoje cai na conta do genecentrismo. Isso é mais sério do que parece, pois somos “educados” pela mídia a pensar que os genes determinam muito do que somos ou iremos ser, embora nem científico isso seja (e mesmo que fosse, a ciência tampouco é infalível).

[6] O pior de tudo é que essas teorias se valem de conceitos de psicologia evolutiva que podem fazer sentido, mas que devem ser analisados de maneira bem mais ampla e profunda... Por exemplo, em “A pré-história da mente” o arqueólogo Steven Mithen argumenta que os hominídeos pré-humanos apresentaram variadas gradações de módulos de inteligência – a inteligência geral, a naturalista, a técnica e a social. Porém, somente nos homo sapiens esses módulos da mente se unificaram em um único grande conjunto, de modo a possibilitar o surgimento da cultura, da arte e da religião humanas. Desnecessário dizer que o estudo de Mithen é muito mais profundo do que essas teorias de “módulos do estupro”.

[7] Eis que, mesmo num mundo científico-materialista, o lado misterioso, os antigos mitos e arquétipos continuam forçando-se adentro da imaginação humana. Ocorre que pode ser bastante perigoso lidar com eles no campo errado – não se trata de uma ciência exata e racional, mas de uma experiência que deve ser compreendida em seu contexto correto. Obviamente que a maior parte de nós já se perdeu desse contexto há muito tempo; mesmo os que se dizem religiosos muitas vezes rezam na verdade para o deus do consumo, e são tão materialistas quanto muitos ateus.

[8] “O gene da fé”, “o gene da racionalidade”, “o gene do bom humor”, “o gene da homossexualidade”, etc. – e o que seria tudo isso senão um politeísmo genecêntrico? Mas, se a “ciência” diz que sim, quem dirá que não?

***

Crédito da foto: Divulgação/"This Ain't Star Trek XXX"

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