Reflexões sobre o nada, parte 2
Por que existe algo, e não nada?
Outra grande questão filosófica e certamente existencial é a questão da existência em si. Não a existência de nós, seres humanos, ou deste planeta, ou das estrelas nos confins do universo, ou até mesmo do espaço-tempo como um todo... A questão é mais específica: porque afinal existe algo, e não nada?
Essa questão nos obriga a nos aproximar dos limites de nossa razão. Já dissemos que o nada não é o vazio a espera de ser preenchido, que o nada não pode existir já que obviamente alguma coisa existe. Então chegamos a dualidade coisa vs. não-coisa, que não deve ser compreendida como matéria vs. anti-matéria, ou qualquer outra coisa vs. alguma outra coisa qualquer. Esta coisa existe, é fato – e nesse caso, talvez sequer venha ao caso nos perguntar sobre o porque dela existir: se não existisse, não estaríamos aqui para fazer tal pergunta.
Ela compreende tudo que existe, toda matéria detectada e não-detectada, todas as galáxias e campos gravitacionais, todas as partículas em alvoroço quântico (seja em que dimensão ou universo estiverem) e, sobretudo, todos os pensamentos e idéias já formulados. Algo existe, algo incrivelmente infinito, eterno, mas que nos é profundamente desconhecido.
Em sua Ética, Benedito de Espinosa define de forma contundente, simples e genial o que seria esta coisa. Ele preferiu chamá-la de substância. Espinosa dizia que “uma substância não pode criar a si mesma”, e toda a razão e lógica estão ao seu lado. O grande apóstolo da razão era também cientista, e sabia muito bem que as substâncias apenas se transformam umas nas outras, e que absolutamente nada é criado ou aniquilado na natureza. Ora, se todas as bilhões e bilhões de partículas-substância do espaço-tempo não podem ter criado a si mesmas, e se derivam de alguma outra substância primordial, têm-se pela lógica que tal substância-primeira é a origem de tudo o que há. Não pode ter surgido do nada, pois nada pode surgir do nada. Não pode deixar de existir, pois o cerne do que compreendemos como “existir” depende dela. Não pode senão ser a substância primária de onde todas as outras se sub-dividiram e se transformaram.
Sim, Espinosa sabia. Sabia que no início de tudo, quando apenas esta substância fazia sombra a si mesma, nem mesmo o tempo e o espaço como o compreendemos existiam. Era a eternidade. A eternidade é a casa de tal substância, e graças as suas incessantes transformações, vivemos em um sistema-natureza onde o espaço-tempo nos possibilita ter a condição de viver em pelo menos três dimensões espaciais, e num fluxo incessante de tempo, o que possibilita nossa evolução.
Disso também se tira que estamos todos interligados. Como dizia o cientista Neil deGrasse Tyson: “Estamos todos conectados. Um ao outro, biologicamente; A Terra, de forma química; Ao universo, de forma atômica”. Tal é a profunda reflexão que mais dia menos dia chega a todo homem que observa a imensidão do Cosmos. Não necessariamente é preciso ser cientista para chegar a tal compreensão – Há mais de um século o indígena norte-americano, Chefe Seattle, chegou a uma conclusão bem parecida: "Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo."
Seja seguindo a teia do Chefe Seattle, ou aos átomos que apontam que somos poeira de estrelas longínquas, que explodiram em épocas remotas do universo, desejamos chegar ao mesmo lugar: ao local de onde fomos arremessados a incontáveis eras, e para o qual é nosso destino regressar. Este é o eterno retorno, o re-ligare... Porém, em nossa jornada de volta, passaremos de princípios inteligentes a deuses.
“Vós sois deuses”, dizia o rabi da Galiléia. No entanto, obviamente ainda somos deuses em formação, talvez quem sabe alunos do maternal na grande escola do Cosmos. Como fazer para vencer o vazio que há em nós, esta angústia de retornar para casa?
Ora, já dissemos que o vazio não é o nada. O vazio espera ser preenchido. O vazio é o lugar onde um deus em potencial pode se formar. O vazio se conecta a substância-primária – de alguma forma maravilhosa e incompreensível, sentimos que dentro de nós também arde uma fornalha cósmica. Lao Tsé não sabia dar nome a tal experiência, ao contato direto de tal substância incomensurável. Mas terminou por chamá-la simplesmente de Tao.
À seguir, o Tao e o vazio em nós.
***
Crédito da foto: Descubra o Cosmos (NASA)
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6 comentários:
Rafael:
Gostei muito dos dois textos sobre o Nada.
Realmente, o problema em se falar do "Nada" (com "N" maiúsculo, para dar-lhe toda a dimensão de um Absoluto) é que já caímos numa armadilha da linguagem, pois temos que hipostasiá-lo, reificá-lo, a fim de poder dar-lhe atributos e discuti-los conceitualmente.
Ao agirmos assim, já dizemos algo como "O Nada/Não-ser é"... e lá vamos nós dando uma bela escorregada lógica!
Para fugir disso, teríamos que fazer como Parmênides ("O Ser é, o Não-ser não é!) Rsss. E ponto final.
O texto é muito bom.
Gostei, também, da referência a Spinoza, que só poderia concordar que não há o Não-ser, ou o Nada; afinal, tudo é modificação da Substância, que é.
Continuo lendo.
Abração.
Oi Ricardo, fico feliz que tenha gostado e, principalmente, entendido perfeitamente o que eu queria passar... Até mesmo porque você provavelmente entende bem mais de Espinosa do que eu :)
Abração,
raph
Creio que a questão do "Nada" é um desafio conceitual. Como não podemos abarcar pela lógica o que vem antes de uma singularidade (aquele ponto infinitamente pequeno que abarcaria todo o espaço-tempo e tudo o que compõe o universo, antes desse surgir pelo big-bang, descrito pela física teórica, já que é tão infinitamente pequeno que não pode-se falar em tempo e espaço, mas mesmo assim, tem em si a matéria e energia de todo o universo que seria criado), o que muitos fazem é atrelar o conceito de "Nada" ao assunto. Assim, antes da singularidade havia o "Nada" para alguns, porque está fora do conceito espaço-tempo que define a existência em si, ao menos como a conhecemos. Creio que essa visão, além da nomenclatura, não difere muito da "substância" de Espinosa. Na realidade esse "Nada" não é visto pela maioria dos que assim o definem como completa nulidade, mas como um estado de devir da manifestação. Dentro do ocultismo, por exemplo, Crowley usou muito o conceito de "Nada", sempre o tratando como a potencialidade de vir a ser do "Todo" que é o "Uno", antes da manifestação em dualidade. Ao menos é como vejo sua famosa equação 0=2. Se o termo "Nada" é filosoficamente correto, já é outro assunto, mas não vejo equívoco se interpretado dessa forma, como fazem alguns ocultistas e alguns orientais. São apenas nomes diferentes para a mesma idéia. No fim, os conceitos 0=1=2, dá no mesmo... 0 como o Absoluto Imanifestado, ou Deus Imanifestado, ou o "Imutável", etc; 1 como o Absoluto Manifestado ou Uno, ou Ser Cósmico, ou Deus, ou qualquer nome que queira dar-lhe e 2 como princípio da dualidade e multiplicidade de sua manifestação, que é toda a diversidade que vemos no universo.
Abraços
Para clarear essa definição talvez errônea do ponto de vista filosófico, por utilizar o termo "Nada", vou me referenciar na árvore da vida, já que símbolos são melhores que palavras para transmitir conceitos. Ain seria o "0", Kéter o "1" e a multiplicade o "2" e todas as esferas subsequentes na descida da árvore.
Sandro,
Parabéns, essa sua definição está perfeita (ao meu ver).
É tudo uma questão de nomenclatura, mas há de convir que essa Nada do ocultismo realmente não tem nada a ver com o Nada a que me refiro na parte 1... Seria muito mais próximo da Substância de Espinosa do que daquele Nada de que falei :)
Abs
raph
Claro, Raph. Entendi sua posição. Só coloquei o comentário, para que que quando alguém veja "Nada" em algum texto, não esqueça de verificar o contexto da palavra. Ela é muito usada por estudantes de ocultismo dentro do conceito que descrevi acima e que difere muito do Nada colocado em discussão.
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