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13.1.11

Monstros e heróis

Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces” (Ed. Cultrix/Pensamento) – pgs. 25 a 28. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. As notas ao final são minhas.

A figura do monstro-tirano é familiar às mitologias, tradições folclóricas, lendas e até pesadelos do mundo [1]; e suas características, em todas as manifestações, são essencialmente as mesmas. Ele é o acumulador do benefício geral. É o monstro ávido pelos vorazes direitos do “meu e para mim”. A ruína que atrai para si é descrita na mitologia e nos contos de fadas como generalizada, alcançando todo o seu domínio [2]. Este domínio pode não ir além de sua casa, de sua própria psique torturada ou das vidas que ele destrói com o toque de sua amizade ou assistência, mas também pode atingir toda a sua civilização. O ego inflado do tirano é uma maldição para ele mesmo e para o seu mundo – pouco importa quanto seus negócios pareçam prosperar. Auto-aterrorizado; dominado pelo medo; alerta contra tudo, para enfrentar e combater as agressões do seu ambiente – que são, primeiramente, reflexos dos incontroláveis impulsos de aquisição que se encontram em seu próprio íntimo –, o gigante da independência autoconquistada é o mensageiro do desastre do mundo, muito embora, em sua mente, ele possa estar convencido de ser movido por intenções humanas. Onde quer que ponha a mão, há um grito [...]: um grito em favor do herói redentor, o portador da espada flamejante, cujos golpes, cujo toque e cuja existência libertarão a terra [3].

O herói é o homem da submissão autoconquistada. Mas submissão a quê? Eis precisamente o enigma que hoje temos de colocar diante de nós mesmos. Eis o enigma cuja solução, em toda parte, constitui a virtude primária e a façanha histórica do herói [4]. Como indica o professor Arnold J. Toynbee, em seu estudo de seis volumes a respeito das leis que presidem a ascensão e desintegração das civilizações, o cisma no espírito, bem como o cisma no organismo social, não serão resolvidos por meio de um esquema de retorno aos bons tempos passados (arcaísmo), por meio de programas que garantam produzir um futuro projetado de natureza ideal (futurismo), ou mesmo por meio do mais realista e bem concebido trabalho de re-união dos elementos que se encontram em processo de deterioração. Apenas o nascimento pode conquistar a morte – o nascimento não da coisa antiga, mas de algo novo [5]. Dentro do espírito e do organismo social deve haver [...] uma contínua “recorrência de nascimento” (palingenesia) destinada a anular as recorrências ininterruptas da morte. Pois o trabalho da Nêmesis – caso não nos regeneremos – se realiza por intermédio das próprias vitórias que obtemos: a maldição irrompe da casca de nossa própria virtude. Portanto, a paz, assim como a guerra, a mudança e a permanência, são armadilhas. Quando chega o dia em que seremos vencidos pela morte, ela vem; nada podemos fazer, exceto aceitar a crucifixão – e a consequente ressurreição –, ou o completo desmembramento – e o consequente renascimento [6].

Teseu, o herói que matou o Minotauro, veio para Creta do exterior, como um símbolo e agente da civilização grega em ascensão. Ele foi a coisa nova e viva que surgiu. Mas também é possível buscar e encontrar a regeneração no interior dos próprios muros do império do tirano. O professor Toynbee utiliza os termos “separação” e “transfiguração” para descrever a crise por intermédio da qual é atingida a dimensão espiritual mais elevada que possibilita a retomada do trabalho da criação. O primeiro passo, a separação ou afastamento, consiste numa radical transferência da ênfase do mundo externo para o mundo interno, do macrocosmo para o microcosmo, uma retirada, do desespero da terra devastada, para a paz do reino sempiterno que está dentro de nós [7]. Mas esse reino, como nos ensina a psicanálise, é precisamente o inconsciente infantil. Este é o reino no qual penetramos durante o sono. Carregamo-lo dentro de nós eternamente. Todos os ogros e auxiliares secretos de nossa infância habitam nele, lá reside toda a mágica da infância.

E, o que é mais importante, todas as potencialidades vitais que jamais conseguimos levar à realização adulta, aquelas outras partes de nós mesmos, aí estão; pois essas sementes douradas não perecem [8]. Se pelo menos uma ínfima parcela dessa totalidade perdida pudesse ser trazida à luz do dia, experimentaríamos uma maravilhosa expansão dos nossos poderes, uma vívida renovação da vida. Atingiríamos a estatura de um arranha-céu [9]. Além disso, se pudéssemos recuperar algo esquecido, não apenas por nós mesmos, mas por toda a geração ou por toda a civilização a que pertencemos, poderíamos vir a ser verdadeiramente portadores da boa nova [10], heróis culturais do nosso tempo – personagens do momento histórico local e mundial.

Numa palavra: a primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo [...] e penetrar no domínio da experiência e da assimilação, diretas e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas”. Este é o processo conhecido na filosofia hindu e budista como viveka, “descriminação [entre o verdadeiro e o falso].

Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas do rituais, da mitologia e das visões. Esses “seres eternos do sonho” não devem ser confundidos com figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são distorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade.

O herói, por conseguinte, é o home ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes primárias da vida e do pensamento humanos [11]. Eis porque falam com eloquência, não da sociedade e da psique atuais, em estado de desintegração [12], mas da fonte inesgotável por intermédio da qual a sociedade renasce. O herói morreu como homem moderno; mas, como homem eterno – aperfeiçoado, não específico e universal –, renasceu. Sua segunda e solene tarefa e façanha é, por conseguinte (como declara Toynbee e como indicam todas as mitologias da humanidade), retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu.

***

[1] Monstros, heróis, personagens e arquétipos vindos da mitologia estão em geral presentes em quase todas as ficções do mundo – incluindo certamente literatura, cinema e quadrinhos –, mas na maior parte dos casos são sombras diluídas, superficiais, das essências presentes em nossa mitologia ancestral.

[2] Somente o ignorante do verdadeiro bem pode crer que os maus – em realidade, seres mais ou menos no mesmo estágio de ignorância – podem realmente “vencer”. A resposta é muito simples, mas sua compreensão pode levar eras: é que a vivência do verdadeiro bem já é a vitória em si mesma, enquanto que a ignorância do bem – ou o caminho do mal – é em si mesma sua própria ruína, sua amarga derrota.

[3] Há muitos heróis que empunharam tal espada, mas talvez o maior deles tenha sido Jesus. O próprio rabi da Galiléia afirmou que trouxe a espada no lugar da paz (Mateus 10/34). A espada serve obviamente para derrotar o monstro interno, o ego, e libertar o Eu-verdadeiro. Desta batalha, entretanto, podemos esperar tudo menos a paz – a paz virá depois da vitória necessária.

[4] Em sua submissão a uma espécie de vontade superior – um destino manifesto, um desígnio divino, uma lei inexorável da natureza, etc. – o herói alcança paradoxalmente uma espécie de liberdade ainda desconhecida dos demais, aprisionados ao próprio ego em maior ou menor grau.

[5] De fato, engana-se que algo antigo possa nascer. Embora todos esperem pelo “já conhecido” no nascimento, é fato que a natureza não cansa de renovar-se a todo instante, e todo nascimento ou renascimento só poderá trazer algo de novo, embora o novo por vezes pareça assustador.

[6] Por vezes podem parecer absurdas e fantásticas tais lendas de heróis que constantemente vencem a morte, mas os mitos sempre trazem suas verdades ocultas, esperando serem desveladas por aqueles que tiveram olhos para ver e ouvidos para escutar. Não se trata de vencer a morte, mas de compreender a vida – ou, como disse Fernando Pessoa através da poesia: “Neófito, não há morte”.

[7] As jornadas de autoconhecimento da mitologia oriental não deixam de lidar com tais assuntos de uma forma mais sutil, e ao mesmo tempo mais direta e literal. O próprio Buda, ao lutar com seus próprios desejos, travou a mesma batalha dos heróis, embora sua história não faça menções a espadas ou minotauros.

[8] Vão-se as personalidades e seus egos inflamados, ficam as potencialidades, as eternas vencedoras da morte.

[9] Como saber disso sem haver alcançado? Eis que todos nós trazemos tal intuição dos reinos esquecidos... Em cada um, em cada cultura, em cada crença, tal intuição se manifesta de uma forma específica – mas ela sempre estará lá.

[10] Como a lembrança do que foi esquecido pode ser apresentada como uma boa nova? Uma novidade? É que a novidade, a renovação, passa pela reinterpretação de antigas verdades nos contextos temporais específicos.

[11] E o mais curioso, que pode ser atestado por qualquer antropólogo, é como tal essência da vida e pensamento humano é compartilhada por todos os povos, desde os primeiros caçadores-coletores a pintar as rochas, desde os primeiros xamãs em seus transes misteriosos.

[12] Os pós-modernistas apostaram que a ciência e a tecnologia resolveriam todos os nossos problemas, mas esqueceram que elas nada podem fazer quanto a nossa alma, pois trata-se de uma linguagem que lhes é profundamente desconhecida.

***

Crédito da foto: Robbie Jack/Corbis (performance "The Minotaur", no Royal Opera House, Londres)

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2 comentários:

Blogger Natalia B. disse...

Parabéns por abordar um tema tão importante quanto a mitologia e os arquétipos de forma tão sucinta. Ler seu blog com tantas mensagens positivas e espiritualistas foi um bálsamo. comentei também no post "Matéria".
Abraços, Natalia.

19/1/11 11:57  
Blogger raph disse...

Obrigado Nath. Eu já respondi seu comentário lá também. Abs--raph

19/1/11 17:23  

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