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23.5.11

Reflexões sobre o tempo, parte 2

« continuando da parte 1

“Existe este gigantesco híper-momento onde tudo ocorre, apenas nossa mente está ordenando tudo em passado, presente e futuro.” – Alan Moore.

O tempo em nossas mãos

Santo Agostinho de Hipona talvez tenha sido o primeiro homem a se aprofundar na reflexão filosófica sobre o tempo. O grande pensador do cristianismo abriu caminho para sua análise com um comentário bastante peculiar:

“Que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. [1]”

Então, logo após, colocou em xeque a própria noção da divisão do tempo em passado, presente e futuro:

“Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo claro e brevemente? [...] e de que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro – se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, como poderíamos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir? [2]”

Para tentar resolver tal paradoxo, Agostinho foi se aprofundando cada vez mais no problema do tempo, até que seu caminho puramente lógico lhe levou a uma intrigante conclusão, talvez uma das conclusões mais importantes da história da filosofia – e que até hoje não foi superada por nenhum pensador que lhe precedeu:

“O que agora transparece é que, não há tempos futuros nem pretéritos. É impróprio afirmar: Os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente dos presentes, presente dos futuros. Existem pois estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras. Se me é lícito empregar tais expressões, vejo então três tempos e confesso que são três. [3]”

Mas a solução de Agostinho não era propriamente uma solução, ela apenas deslocava o problema do tempo para nossa percepção subjetiva do mesmo. Isso significava, é claro, que o tempo não poderia realmente ser medido de forma objetiva, e tampouco era uma medida absoluta. Agostinho havia precedido Einstein em muitos séculos, o ex-boêmio havia se embriagado, desta vez, não de vinho, mas do conhecimento do Cosmos... Ele já sabia que o tempo não poderia ser o mero movimento dos corpos:

“Ninguém me diga, portanto, que o tempo é o movimento dos corpos celestes. Quando, com a oração de Josué, o Sol parou, a fim de ele concluir vitoriosamente o combate, o Sol estava parado, mas o tempo caminhava. [4]”

Podemos ser céticos com relação ao fato do Sol ter realmente parado, mas a essência lógica do pensamento agostiniano estava tão correta na época quanto nos dias atuais...

Atualmente, o tempo é um tema especialmente quente na física. A procura por uma teoria unificada (das quatro grandes forças da natureza) força os físicos a reexaminar diversas suposições básicas, e poucas coisas são mais básicas que o tempo. Alguns físicos argumentam que não existe algo como o tempo. Outros acham que o tempo deveria ser promovido em vez de rebaixado. Entre essas duas posições há a fascinante ideia de que o tempo existe, mas não é fundamental. Um mundo estático dá, de certa forma, origem ao tempo que percebemos. Essas ideias vêm sendo debatidas desde a época dos filósofos pré-socráticos, mas só agora os físicos as estão levando mais a sério como genuínas possibilidades para teorias científicas consistentes... De acordo com uma delas, o tempo pode resultar da maneira como o universo está dividido; ou seja, o que percebemos como tempo reflete a relação entre as partes.

O que normalmente chamamos de tempo é tão somente uma maneira de descrever o ritmo de um movimento ou mudança, tal como a velocidade em que pulsa o coração, ou ainda a velocidade de giro de um planeta. O curioso é que tais processos podem ser relacionados diretamente um ao outro, sem fazer referência ao tempo em si. Por exemplo, tanto podemos afirmar que a luz viaja a 300 mil km/s, que o coração dá 75 batimentos por minuto ou que a Terra faz uma rotação por dia quanto, igualmente, poderíamos dizer que enquanto o coração humano dá 108 mil batidas, a Terra gira em torno de seu eixo uma vez; ou que, por exemplo, a luz viaja a 240 mil km por batimento cardíaco.

Assim, alguns físicos dizem que o tempo é uma moeda comum, tornando o mundo mais fácil de descrever, mas não tendo existência independente. Medir os processos em termos de tempo poderia ser como usar o dinheiro em vez da troca direta de bens e serviços, em nossas relações comerciais. Por exemplo, se uma xícara da café custa US$ 2, um par de tênis custa US$ 100, e um carro usado sai por US$ 2 mil, poderíamos simplesmente esquecer do dólar e concluir de uma forma mais simples, talvez, que um par de tênis vale 50 xícaras de café, enquanto que um carro usado sairia por mil xícaras. Nós usamos moedas para facilitar a vida, pois ninguém vai querer comprar um carro com mil xícaras de café. No entanto, cédulas monetárias nada mais são do que folhas de papel com curiosas gravuras impressas, é a nossa crença em seu valor que as fazem valer isto ou aquilo. Não seria o tempo, portanto, apenas o resultado de nossa crença de que existe um tempo?

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty argumenta que o próprio tempo não flui realmente e seu fluxo aparente é produto de nossa atitude de “colocar secretamente dentro de um rio uma testemunha de seu curso”. Ou seja, a tendência de acreditar que o tempo flui é resultado de esquecer de colocarmos a nós mesmos – e nossas conexões com o mundo – no quadro geral. Merleau-Ponty estava falando de nossa experiência subjetiva de tempo e, até recentemente, ninguém imaginou que o tempo objetivo pode, ele mesmo, ser explicado como resultado dessas conexões. O tempo pode existir apenas ao quebrar o mundo em subsistemas e olhando para o que os une. Nesse cenário, o tempo físico surge pelo mérito de pensarmos sobre nós mesmos como separados de todo o resto [5].

Se optarmos por nos arriscar a realmente encarar o problema do tempo face a face, precisamos retornar a origem de tudo o que há, ao Big Bang, pois que Einstein também nos provou que tempo e espaço são ambos constituintes, fios tecedores do tecido do espaço-tempo. Não é possível falar de um sem falar do outro, e não é possível falar de ambos sem falar do todo, de todo o Cosmos.

O grande Espinosa, em sua genial análise do primeiro capítulo de sua “Ética”, já havia chegado a conclusão de que “uma substância não pode criar a si mesma”. Como a história cósmica é uma sucessão de transformações e danças de matéria e energia, pela lógica somos obrigados a concluir que tudo o que há é fruto de uma única substância.

Talvez o Cosmos seja como a roda da carroça do velho Lao Tsé, sempre a percorrer os velhos sulcos... Talvez o eixo seja a essência, através da qual a substância se irradia para o aro, que parece-nos girar... Supomos que ele realmente gira, principalmente porque vivemos neste aro, porque estamos todos conectados – somos poeira de estrelas, fagulhas divinas das fornalhas solares, enfim, somos também parte da mesma substância...

Enquanto o aro gira, sustentado pelo eixo, parece-nos que os eventos realmente se sucedem. Mas, e se o aro for o espaço-tempo, sendo constantemente sustentado e mantido pela irradiação que parte do eixo, temos que o tempo, assim como o espaço, nada mais é do que fruto da dança cósmica que a substância de Espinosa têm nos agraciado observar desde o início das eras.

Se for este o caso, não devemos nos angustiar com a profundidade do infinito, tampouco com a ansiedade do futuro ou a saudade dolorida do passado. Se tudo o que há é a substância, tudo o que há é também este momento, o momento em que temos o tempo nas mãos e a vontade, a sagrada vontade, para o esculpir a nosso bel-prazer. Talvez o paradoxo de Agostinho nem precise ser resolvido, não enquanto ainda temos coisas mais urgentes para resolver. Se o passado já não existe, e o futuro não chegou, agarremos ao presente com toda nossa alma, e façamos dele um hino em homenagem à substância, um hino para toda eternidade.

» Na continuação, o final dos tempos...

***

[1] Confissões, livro XI (14).

[2] Confissões, livro XI (14).

[3] Confissões, livro XI (20).

[4] Confissões, livro XI (23).

[5] As referências científicas dos 4 últimos parágrafos foram retiradas do excelente artigo "O tempo é uma ilusão?", do filósofo da ciência Craig Callender, para a Scientific American (edição especial #41, “A longa história do universo”).

***

Crédito das imagens: [topo] Laurence Acland/First Light/Corbis; [ao longo] Joe Sachs/Corbis.

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7 comentários:

Blogger Gean Machado disse...

Ótimos textos, os questionamentos evoluem, mesmo que a resposta seja totalmente diferente, não se descarta a solução anterior.
Talvez a dificuldade de isso tudo dar-se pela compreensão de enxergamos o mundo pela dimensão temporal. Reamente a melhor descrição de um movimento ou uma mudança é dada pelo tempo.
A física quântica funciona quando aplicada aos átomos e suas partes constituintes, como a relatividade geral é uma descrição testada e comprovada do espaço-tempo, quando, no entanto estas leis se encontram surge o conflito e o desentendimento, para descrever o que acontece dentro de um buraco negro ou como o universo era na época do Big Bang.
É esperar um pensamento novo e um novo comentário a respeito.

25/5/11 10:02  
Blogger raph disse...

É isso. E eu nem me atrevi a falar da relatividade geral, do efeito da gravidade na cruvatura do (espaço-)tempo, e muito menos na incerteza quântica... Há qualquer coisa de profundamente misteriosa que todos sentem que está para ser descoberta, como se houvéssemos encontrado as passadas de um dragão na areia, mas o dragão ainda não conseguimos ver.

Não há um dragão na minha garagem, mas há algum dragão cósmico a voar pelas estrelas e no interior dos átomos...

25/5/11 11:22  
Anonymous Ronaud disse...

Comment off-topic:

Só hoje, "por acauso" percebi no analytics que o teu blog enviou 65 visitas ao meu nos últimos 30 dias.

Muitíssimo obrigado pelo link!!!

Te acompanho pelo GReader e não havia notado :)

25/5/11 12:36  
Blogger raph disse...

Poxa, legal, bom saber. O que eu faço é colocar ali todos os blogs que visito com maior frequencia, então algumas das visitas podem ter sido as minhas :)

Abs!
raph

25/5/11 18:58  
Anonymous Dionisio Ribeiro disse...

sua analogia do tempo com as cedulas como unidade de comparação me faz lembrar do guia dos mochileiros. Em que o autor diz algo relacionado ao dinheiro. "Os seres humanos são pessoas engraçadas, eles vivem preocupados e frustrados devido as idas e vindas de uns pedaços de papel coloridos. Mas, o mais engraçado disso tudo e que os pedaços de papel na verdade nao se importam com nada disso, preferem viver suas vidas numa boa." acho uma metafora interessante que pode ser utilizada para o tempo... e o texto e so o que eu lembrei dele...
rsrs

28/5/11 23:01  
Blogger raph disse...

Pois é, Dionisio.

Mas o mais irônico é que são realmente apenas papeis coloridos, é tão somente nosso sistema de crença que lhes confere valor:

http://textosparareflexao.blogspot.com/2009/04/padrao-fe.html

Abs!
raph

30/5/11 11:09  
Anonymous Anônimo disse...

Existe apenas o presente o passado e o futuro nao existe é só criaçao da mente que esta a serviço do Ego. O ego é o 'eu falso' q todos nos temos q dissolver, para que existe em nós a nossa verdadeira essência do Ser. O ego vive da dualidade ele so sobrevive divido por isso nao vivemos o (momento)presente e sempre estamos ora no passado ora no futuro, estamos sendo enganado a vida inteira co essa ilusão. O presente é um caminho muito estreito entre o passado e o futuro, o presente é o q realmente existe. O presente é o caminho estreito que Jesus fala Bíblia para que alguém consiga ir para o Reino do Céu. Leia o livro O Poder do Agora lá está bem explicado isto q falei acima.

21/8/13 22:08  

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