Reflexões sobre o tempo, parte 3
Igne Natura Renovatur Integra (INRI) - Pelo Fogo a Natureza se Renova Inteiramente.
O fim do tempo
De tempos em tempos acontece, e nem precisa ser uma “data cheia”, como o ano 1.000 ou o 2.000 (esquecem-se de que o milênio novo se iniciou em 1.001 e 2.001, respectivamente), a última data “prevista” foi 21/05/2011, precisamente às 18h do horário local de cada país do mundo... Segundo o pastor protestante Harold Camping, os bons seriam arrebatados aos céus de acordo com seu respectivo fuso-horário: na Nova Zelândia teriam a oportunidade de se aventurar aos céus mais cedo, na ilha de Samoa seriam alguns dos últimos, já que o governo ainda não efetuou a troca de fuso-horário.
E para quem os portões do céu não se abrissem, restaria o inferno na Terra até 21/10/2011, data em que um deus colérico poria fim não somente ao planeta, mas a toda criação – o fim do Cosmos, o fim de todo o espaço-tempo!
Não é a primeira vez que Camping foi ridicularizado por uma previsão errada do fim do mundo. Ele chegou a escrever um livro sobre como o arrebatamento ocorreria em 1994, e já estava errado desde aquela época. Interessante como eles parecem não se importar... O ocultista (e ultimamente, especialista em desmistificar lendas do fim dos tempos, como a baseada no calendário maia) Marcelo Del Debbio costuma dizer que não tem coisa mais inútil do que se prever o fim do mundo – se o sujeito errar, será ridicularizado; se acertar, não restará ninguém para lhe dar atenção (há não ser aqueles poucos que conseguirem se encontrar no céu, supondo que quem previu não tenha cometido o pecado da falsidade em previsões anteriores).
Saibam que a previsão de Camping nem de longe soa tão absurda quanto a que Charles Russell realizou para 1914, e sobre a qual as Testemunhas de Jeová depositaram toda sua fé... O absurdo não é por ter se equivocado, mas porque existem Testemunhas que creem que o mundo acabou em 1914. O que vivenciamos hoje é uma espécie de sonho, uma ilusão que nos impede de perceber que o mundo já acabou. Sim, não faz sentido, mas e daí?
Um dia recebi em minha caixa de correio uma carta de uma Testemunha me convidando para visitar uma de suas igrejas. A carta era muito amável, mas o que realmente me surpreendeu é que foi escrita a mão! Fiquei imaginando quantas cartas aquela senhora escreveria toda semana, de próprio punho, provavelmente para serem descartadas antes mesmo de terem sido lidas... Os religiosos gostam de se sacrificar por suas causas, e que maior sacrifício, que maior evento divino, cósmico, que o próprio fim dos tempos?
Quando, em 1722, o explorador holandês Jakob Roggeveen alcançou, num domingo de Páscoa, aquela distinta ilha isolada do resto do mundo por muitos quilômetros de oceano, encontrou apenas alguns nativos miseráveis, com barcos de pesca precários, numa terra árida... Mas viu também os gigantes de pedra, os moais de formas humanas, que chegavam a ter até 10m e em torno de 270 toneladas. Como aquele povo miserável conseguira erguer tamanhas maravilhas?
Os moais da ilha da Páscoa nada mais eram que a testemunha de um pequeno fim do mundo local... Se hoje o cenário da ilha é desolador, fósseis encontrados na lava vulcânica de Terevaka, um deus vulcão, revelam que a ilha chegou a abrigar a maior espécie de palmeira do mundo e uma floresta tropical com mais de 21 espécies de grandes árvores. Essa foi a grande fonte de matéria prima da civilização dos Rapanui em seu apogeu.
Nessa época, entre 1400 e 1600, a sociedade se dividia em 12 clãs. Eles compartilhavam pacificamente os recursos naturais da ilha. A competição se resumia à fabricação dos moais, a partir das rochas vulcânicas. Eles representavam membros mortos das elites dos clãs. Ao longo da história da ilha, o tamanho dos moais foi aumentando, o que sugere um acirramento na competição ente os clãs ou um maior apelo aos deuses. As árvores da ilha precisavam ser derrubadas para a construção de trenós, trilhos e alavancas para a construção dos moais (além, é claro, para as canoas de pesca e residências). Infelizmente, para os Rapanui, a natureza tinha um limite...
O desmatamento desenfreado teve impactos profundos na ilha. As poucas aves marinhas que não foram extintas pela caça predatória dos Rapanui ou dos ratos, migraram. Erosões no solo dificultavam o plantio. Em 1500, já não haviam mais árvores para a construção de canoas, e então a pesca de peixes grandes desapareceu. Por volta de 1680, explodiram guerras civis, e os clãs começaram a derrubar as estátuas dos rivais (Roggeveen já encontrou a maior parte delas no chão). Nobres e sacerdotes das elites já não conseguiam justificar seus status junto aos deuses, e foram eliminados por uma milícia que assumiu o poder na ilha.
Os novos donos da ilha adotaram um deus menor do antigo panteão e começaram a desenhar homens-pássaros e genitais femininos nos antigos moais, representando a nova divindade. Faminta, a sociedade se degradou até o canibalismo – muitos foram morar em cavernas. Em 1700, 70% da população de Páscoa havia desaparecido. No lugar dos imensos moais, escultores agora faziam pequenas estátuas (os moais kavakava) que mostram pessoas famintas, com o rosto fundo e as costelas à mostra.
Após a chegada de Roggeveen, vieram às epidemias de doenças europeias, os sequestros de insulares para trabalhar como escravos no Peru, e em 1864, com a vinda dos missionários católicos, o que restava da tradição oral dos antigos Rapanui foi perdido. Em 1872, restavam 111 habitantes de um povo que um dia, estimasse, contou 15 mil pessoas. Os moais, restaurados, são a testemunha petrificada do fim do tempo de um povo – na maior parte, causado por ele mesmo [1].
Teriam os sacerdotes Rapanui previsto um fim do mundo? Nesse caso, teriam eles acreditado que o fim da ilha da Páscoa significava o fim de toda a criação? Teria sido a construção de moais cada vez maiores uma tentativa desesperada de barganhar com os deuses em troca de alguma espécie de salvação, de arrebatamento dos “puros” aos céus?
O tempo e o espaço da ilha da Páscoa soa assustadoramente como um espaço-tempo contido, uma bolha temporal, de nossa civilização como um todo... Em nossa ignorância, em nossas desavenças, cremos que deuses virão para salvar somente um pequeno grupo, uma pequena elite, “preparada” para a salvação. Para estes, estranhamente, o fim dos tempos não é uma coisa ruim. O fim de toda a vida no Cosmos se justificaria se, em troca dessa catástrofe, alguns poucos se encontrassem com algum deus estranho nos céus, para fazer “não se sabe o que”.
A história dos Rapanui, entretanto, nos traz lições de como tudo poderia ter sido diferente... Prosperaram por séculos dividindo de forma harmônica os recursos da natureza ao seu alcance. Foi o desejo de competição, de parecer “mais especial” perante aos deuses, que fez com que se arriscassem a ir além dos limites de seu ecossistema, apenas para erguer estátuas de pedra. Erguidas não para os deuses, mas para eles próprios, para que o clã ao lado se sentisse inferiorizado.
E o que tem sido a história de nosso tempo, e de nossas igrejas, senão um reflexo do tempo de Páscoa em maior escala? Senão uma tentativa desesperada para fazer os infiéis, os escolhidos dos “outros deuses”, se sentirem inferiorizados perante as conquistas e a “verdade” de suas próprias igrejas?
Houvessem eles lido nas entrelinhas da natureza, houvessem eles se apercebido que vivemos numa pequena ilha cercada de infinito por todos os lados, saberiam que todo o tempo do mundo se resume ao momento em que o ser se encara, face a face com Deus, com o Cosmos, com a substância que permeia todo o tecido do espaço-tempo... Esse momento é eterno, e se faz na consciência, no paradoxo da mente que sabe de cada momento de sua ascensão, mas ainda assim os encena com maestria, passo a passo, rumo ao que quer que seja que os gigantes de pedra estão a observar – mas não houve tempo para nos contar.
Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: há tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou, tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de edificar, tempo de chorar e tempo de rir, tempo de prantear e tempo de saltar de alegria, tempo de espalhar pedras e tempo de juntar pedras, tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de guardar e tempo de deitar fora, tempo de rasgar e tempo de coser, tempo de estar calado e tempo de falar, tempo de amar e tempo de odiar, tempo de guerra e tempo de paz (Eclesiastes 3:1-5).
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[1] Ver o artigo “As testemunhas de pedra”, de Pedro Pracchia, na edição especial da Superinteressante sobre “O fim do mundo” (Maio/2011). Porém, esta teoria pode estar errada, conforme explico no adendo a este artigo.
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Crédito das imagens: [topo] Gary Sean Burrows; [ao longo] Micheal Kenna (Silent World).
Marcadores: apocalipse, artigos, artigos (121-130), cristianismo, ecologia, espiritualidade, história, natureza, rapanui, religião, tempo, testemunhas de jeová
1 comentários:
Estou sem palavras diante de tanta sabedoria. Gratidão
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