Para ser um médium, parte 2
Para saber o que é loucura, a gente tem que entender o que é ser normal. E isso ninguém conseguiu definir até hoje. Mas, uma coisa é certa, um pouco de maluquice faz parte da normalidade e ser normal demais é o mesmo que ser muito louco. (Psicologia UERJ) [1]
De médicos e loucos
A esquizofrenia é um transtorno psíquico severo que se caracteriza pelos seguintes sintomas: alterações do pensamento, alucinações, delírios e distúrbios no contato com a realidade. É hoje encarada não como doença, no sentido clássico do termo, mas sim como um transtorno mental, podendo atingir diversos tipos de pessoas, sem exclusão de grupos ou classes sociais. De acordo com algumas estatísticas, a esquizofrenia atinge 1% da população mundial.
Quando aqueles que se sentem escandalizados com o fato da mediunidade ser praticada até hoje são céticos quanto à existência de deuses e demônios, eles invariavelmente costumam resumir a questão com um comentário do tipo: “sim, mediunidade existe, e é loucura, esquizofrenia, mas tem tratamento!”. Você pode ficar especialmente chateado por ser chamado de louco, e até mesmo entrar numa discussão inútil, mas existe uma outra questão que estará ignorando: E o que é exatamente “ser louco”? O que é “ser esquizofrênico”?
A esquizofrenia como entidade de diagnóstico tem sido criticada como desprovida de validade científica ou confiabilidade e é parte de críticas mais amplas à validade dos psicodiagnósticos em geral. Uma alternativa sugere que os problemas com o diagnóstico seriam melhor atendidos como dimensões individuais ao longo das quais todos variam, de tal forma que haveria um espectro contínuo em vez de um corte entre normal e doente... Para alguns produtores de pornografia, ou criadores de comerciais de cerveja, podemos talvez separar a população entre jovens e velhos: “jovens” seriam todos aqueles com menos de 25 anos, “velhos” seriam os demais. Esta visão radical obviamente não condiz com a realidade, e o mesmo poderia ser dito da esquizofrenia e da loucura – não é a questão de dizermos “este é louco, aquele é são”, mas sim de analisarmos as patologias psíquicas uma a uma, tentando tratar das que são prejudiciais ao convívio social.
Taxar alguém de esquizofrênico ou louco pode ser também um julgamento político. Particularmente na antiga Rússia comunista este diagnóstico foi utilizado com a finalidade de silenciar os dissidentes políticos ou forçá-los a desistir de suas ideias através da utilização forçada de confinamento e tratamento. Em 2000, houve preocupações semelhantes quanto à detenção e “tratamento” de praticantes do movimento religioso Falun Gong pelo governo chinês. Se pensarmos em médiuns ativos e equilibrados, me parece óbvio que julgá-los loucos é também uma espécie de “julgamento político” – assim alguns céticos evitam ter de pensar muito no assunto.
Desde 2009, pesquisadores da UFJF analisam cerca de 100 médiuns de Juiz de Fora para listar critérios para um diagnóstico que diferencie experiências espirituais saudáveis de transtornos mentais, como os psicóticos, pois os dois estados podem se confundir, afirmam pesquisadores. Outro estudo captou imagens do cérebro de médiuns quando psicografavam e quando escreviam um texto de sua autoria, para avaliar quais áreas são ativadas nessa parte do organismo. Já uma pesquisa, finalizada, concluiu que as ocorrências mediúnicas não implicam necessariamente em esquizofrenia: "Se a pessoa diz que está vendo vultos, será que é uma experiência espiritual não patológica ou alucinação, indicando um transtorno mental?", questiona o professor da UFJF, Adair Menezes Júnior.
Se as imagens da atividade cerebral indicam que médiuns quando em transe apresentam características muito semelhantes a dos esquizofrênicos, isso nada nos diz sobre a capacidade do médium de controlar este transe, de “entrar e sair da loucura” como quem entra e sai de casa. Na verdade, tais estudos genuinamente científicos com eletroencefalogramas (EEGs) e outras ferramentas de scanning cerebral são muito interessantes e promissores, pois desde muito cedo já identificaram dois fatos que muitos médiuns já sabiam, mas alguns céticos não: (1) a grande maioria dos médiuns não está fingindo, dentro de seus cérebros “coisas estranhas” realmente ocorrem; (2) a mediunidade não é doença mental, pois se os médiuns “ligam e desligam” seus transes de forma consciente, isso em nada interfere em seu convívio social e equilíbrio mental geral – de fato, tais pesquisas indicam que os médiuns em geral são mais equilibrados do que a média da população.
O Dr. Sergio Felipe de Oliveira, psiquiatra com mestrado na USP que vem estudando a mediunidade há anos [2], talvez tenha resumido essa questão da melhor forma: “Na doença mental, o paciente não tem crítica da razão; no transe mediúnico, ele tem essa crítica. Quando o médium diz que incorporou tal entidade espiritual, mas que ele, médium, continua sendo determinada pessoa, ele usou a crítica, julgou racionalmente o que aconteceu. Agora, um indivíduo que diz ser Napoleão Bonaparte? Aí ele perdeu a crítica da razão. Essa é a diferença. O que não quer dizer que o indivíduo que esteja em psicose não possa estar em transe também. A mediunidade se instala no indivíduo são, ou pode dar uma dimensão muito maior a uma doença. A mediunidade sempre vai dar um efeito superlativo. Se a pessoa alimenta bons sentimentos, ela cresce. Se ela tem uma doença, aquela doença pode ficar fora de controle”.
Esse tipo de abordagem é interessante para os médiuns porque é sempre importante considerar que nossa sensibilidade é mais aflorada do que a das demais pessoas – podemos dizer que ser médium é essencialmente sentir mais do que os outros, de acordo com as capacidades da mediunidade de cada um. Porém, se “abrimos nossa mediunidade” há todo momento e em qualquer lugar, estamos nos arriscando... É como andar com um rádio ligado tentando sintonizar diversas estações ao mesmo tempo, uma após a outra, sem muito controle, sem muito cuidado: às vezes vamos ouvir música boa, muitas vezes vamos ouvir algo de que não gostamos.
Muitos médiuns procuram centros espíritas ou terreiros de umbanda não exatamente por curiosidade ou por vontade de auxiliar nos trabalhos da casa, mas simplesmente porque estão desesperados, desequilibrados, aturdidos, prestes a entrar em colapso mental... Nesses casos, a pior coisa que um dirigente pode dizer é: “não se preocupe, isso é mediunidade, com o trabalho na casa vai passar rapidinho”. Não! Não vai passar rapidinho, e pode até piorar... Pois a mediunidade é uma atividade sagrada de contato com as forças espirituais que preenchem toda a natureza, algo tão antigo quanto às primeiras tribos e os primeiros xamãs. Mas os xamãs não eram pessoas desequilibradas e desesperadas, eles eram, pelo contrário, os mais equilibrados e sábios, e exatamente por isso que tinham a oportunidade de guiar sua tribo nos assuntos espirituais. Ainda que um centro espírita esteja desesperadamente precisando de médiuns ativos, aceitar qualquer ser angustiado que bata a porta como “trabalhador da casa”, da noite para o dia, só vai agravar ainda mais a situação.
O primeiro espírito que um médium precisa aprender a incorporar é o seu próprio. Precisa estar equilibrado, no mínimo, para poder exercer sua mediunidade de forma sadia. Não estou querendo dizer que um médium precise ser muito normal, pois como vimos ser muito normal pode ser a mesma coisa que ser muito louco – mas precisa pelo menos tomar posse de seus sentimentos, pensamentos, intuições. Nem que seja apenas para saber diferenciar melhor as informações que vem de dentro, das que vem de fora.
No mais, aqueles seres angustiados que procuraram a casa espírita ou espiritualista pela dor, e não pelo amor, não são irrecuperáveis, pelo contrário: muitos dos grandes médiuns começaram assim. Mas precisam primeiro se tratar, inclusive na medicina tradicional, inclusive tomando remédios, caso necessário. E, paralelamente, irem estudando a doutrina que pretendem seguir: sejam livros de Allan Kardec, sejam livros de Umbanda Sagrada, sejam livros espiritualistas em geral. Quanto mais conhecimento, mais poderão compreender o que se passa em seu interior, particularmente durante os transes. Nesse sentido o trabalho nas casas espiritualistas pode servir de um excelente complemento terapêutico para o tratamento de distúrbios mentais, desde que se desenvolvam gradualmente, sem procurarem ser “grandes médiuns” em alguns meses [3].
Diz o ditado popular que de médico e louco, todos têm um pouco. Talvez por isso mesmo todos sejam médiuns. Em maior ou menor grau, com a sensibilidade desperta ou ainda sonolenta, com compreensão ou sem compreensão, com muitas ou poucas dúvidas, todos nós somos um pouco loucos. Todos às vezes captamos pensamentos, belos ou obscuros, que parecem ter vindo com o vento, a escorar pelo ombro – e não adianta nos virarmos para tentar identificar para onde foram: se perderam com as brisas. Mesmo assim, por vezes captamos tais pensamentos, de início fragmentados mas, caso queiramos realmente desenvolver tais sentidos ocultos, dia virá que os perceberemos de forma cada vez mais clara.
Então faltará sermos também médicos. Faltará auxiliar aos outros a curar suas dores e angústias através de uma poderosa corrente de amor. Faltará converter nossa loucura em luz.
» A seguir, as diversas formas de manifestação da mediunidade...
***
[1] Li este texto em uma imagem que circulava nas redes sociais anos atrás. O texto estava em um cartaz no centro acadêmico de psicologia da UERJ.
[2] Sua pesquisa, genuinamente científica e objetiva, procura associar o número elevado de cristais de apatita encontrados na glândula pineal dos pacientes a um grau mais elevado de mediunidade. Segundo este promissor estudo, os cristais da pineal podem ser receptores e emissores de ondas eletromagnéticas, e esta poderia ser a via pela qual a troca de informações com espíritos “de fora” ocorre. O Dr. Sergio pode comprovar que Descartes estava errado – a pineal não é a sede do espírito no corpo –, mas nem tão errado assim.
[3] Suspeite de qualquer um que lhe diga que a mediunidade se desenvolve “rapidinho”. Na verdade, um médium só se torna plenamente equilibrado e de posse das próprias capacidades após muitos e muitos anos. Uns 10 a 15 anos não seria um cálculo muito distante da média.
***
Crédito da imagem: CJ Burton/Corbis
Marcadores: artigos, artigos (151-160), espiritismo, espiritualidade, falun gong, mediunidade, neurologia, psicologia, umbanda sagrada
10 comentários:
tem até um centro espirita bezerra de menezes próximo a minha casa, mas fico com receio, vcs falam de tantos centros e terreiros picaretas que fico na dúvida, já que não saberia distinguir um centro sério.
sinceramente não sei se tenho mediunidade. eu olho para os outros e acabo conhecendo traços da personalidade dele, mas quando eu começo a conversar com a pessoa eu consigo descobrir mais coisas pelo jeito que a pessoa falar ou como ela olha.
enfim, me veio algumas dúvidas. como é treinado a mediunidade no centros? depende do tipo da mediunidade? quais são os métodos?
Oi Vinícius,
Na verdade, todos tem mediunidade, ou pelo menos é assim a visão da maioria dos espiritualistas; mas apenas alguns desenvolvem.
De certa forma, desenvolver a mediunidade é desenvolver a sensibilidade artística. Por isso artistas em geral, músicos, atores, escritores, pintores, e particularmente poetas e compositores, tem mais facilidade em desenvolver a mediunidade.
Mas é uma faculdade natural do ser humano, não é algo do tipo "escolhido por Deus" ou "parte de uma elite superior" - todos podem ser médiuns, de verdade, basta saber desenvolver.
Já sobre os centros e terreiros, realmente existem os picaretas, ou os mal intencionados, mas não são nem perto da maioria, então há uma boa possibilidade de o primeiro que você visitar já servir. Porém, se não se sentir bem, ou se sentir "obrigado" a desenvolver mediunidade ou qualquer outra coisa, principalmente se passar por doações de dinheiro, pode esquecer, melhor tentar outro em que se sinta melhor.
Eu particularmente gosto de centros espíritas onde existe a metodologia de um treinamento teórico inicial, mesmo que seja paralelo ao desenvolvimento da mediunidade. Mas, se a pessoa não tem "problemas espirituais", o ideal é passar até uns 3 anos apenas na teoria (geralmente aulas teóricas 1x por semana, iniciando por "introdução ao espiritismo" ou algo parecido), para só depois começar a desenvolver a mediunidade. Daí seria pelo menos 1 ano apenas em reuniões de treinamento, para começar a trabalhar diretamente com o público que visita a casa.
E, mesmo assim, ainda vão uns bons 10 a 15 anos para se desenvolver plenamente a mediunidade. Isso sem contar os percalços no meio do caminho. Mas para quem gosta, e se sente bem, vale muito a pena - isso sem contar os amigos que a gente faz :)
Abs
raph
obrigado pela respostas. sempre fiquei meio confuso, pq existem pessoas que possuem uma mediunidade mais aflorada e outros treinam ou até "misteriosamente" na primeira vez que vai a um barracão acaba incorporando.
é como se a mediunidade fosse uma ferramenta que pode ser aprimorada e te fazer aceitar e vivenciar uma outra realidade através da emoção com o auxilio da razão. é isso ou eu romantizei demais?
É mais ou menos isso, embora a proporção de emoção seja geralmente bem mair que a da razão e, em alguns casos, como em médiuns inconscientes, que praticamente "emprestam o corpo e não se lembram de nada depois", não há mesmo qualquer razão envolvida no processo :)
Mas o ideal é treinar mesmo, para que tenhamos cada vez mais consciência plena de todo o processo, embora em alguns casos seja bem difícil treinar... É como aqueles músicos que "tocam de ouvido", e não se preocupam em aprender teoria musical, ler partitura, etc. Não quer dizer que sejam músicos ruins por conta disso...
Abs
raph
Particularmente, prefiro a meditação em casa, às vezes associada à escrita por livre associação e demais métodos similares, como a cristalomancia para fins de comunicação e não de previsão, além é claro, de muita leitura e muito estudo sobre todo o material disponível das diversas crenças e modelos. Não me levem a mal, adoro a umbanda, mas várias vezes fiquei inconsciente nas giras, o que me fez afastar das reuniões. Não conseguia acompanhar e ainda dava trabalho, pois ficava inconsciente por horas, mas nunca parado, então ainda fazia o pessoal perder tempo em me vigiar. Atualmente só apareço num terreiro de umbanda ou candomblé em dia de festa ou gira de orixás, que para mim não é muito problemática e consigo manter o controle. Quanto aos centros Kardescistas, acho bacana, vou quando convidado, mas não tem muito a ver comigo. Em casa, apesar da dificuldade em distinguir o que é puramente anímico do que é externo, se é que no fim há interno e externo, ao menos dá para manter o mínimo de consciência que seja, mesmo que se sinta com mais de uma consciência na cabeça, atuando ao mesmo tempo. Ficar inconsciente por horas, sem saber o que houve, apenas saber pelo que os outros dizem, não é lá muito agradável e confiável...
"Ficar inconsciente por horas, sem saber o que houve, apenas saber pelo que os outros dizem, não é lá muito agradável e confiável..."
Entendo perfeitamente o que quer dizer. Ou melhor, não tão perfeitamente assim, já que até hoje sempre que um espírito se "aproximou" para incorporar em mim, eu não deixei.
Abs
raph
Não tem muita relação com o texto,
mas me lembrei desse poema, do mestre Khalil Gibran:
O Louco
"Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim:
um dia, muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo e notei que todas
as minhas máscaras tinham sido roubadas
- as sete máscaras que eu havia confeccionado
e usado em sete vidas -e corri sem máscara pelas
ruas cheias de gente, gritando:
"Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"
Homens e mulheres riram de mim e alguns correram
para casa, com medo de mim E quando cheguei à praça
do mercado, um garoto trepado no telhado de uma
casa gritou: "É um louco!".
Olhei para cima, pra vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e
minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras. E, como num
transe, gritei:
"Benditos, bendito os ladrões
que roubaram minhas máscaras!"
Assim me tornei louco.
E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura:
a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido,
pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.."
Na verdade tem até bastante relação com o texto. O Gibran é um dos meus poetas preferidos e existem influências dos livros e poemas dele em diversos artigos, contos e poemas meus...
Muito obrigado por trazer um pouco de Gibran, um pouco de loucura feita luz, para este artigo :)
ps. se quiser veja também o "Após Gibran" ali no menu, no drop-down de "Contos".
Abs
raph
Eu só colocaria algum limite quanto ao uso do Sérgio Felipe como referência. As palestras dele são, em geral, pseudocientíficas. Aqui tem uma análise:
http://ceticosblog.wordpress.com/2013/11/23/guia-cetico-para-a-palestra-a-glandula-pineal-sergio-felipe-de-oliveira/2/
Acredito que a principal questão, tanto da palestra citada quanto da sua análise cética, gira em torno do materialismo ser, em realidade, uma questão filosófica e não científica. E nesse ponto eu concordo inteiramente. Só que não são apenas os espiritualistas que confundem o materialismo com teoria científica, há muitos cientistas que fazem o mesmo.
Já quanto a citação utilizada no artigo, acho que ele tem ao menos uma boa propriedade para falar do assunto, já que entende de psicologia, neurologia e mediunidade. As críticas objetivas ao seu experimento com os cristais da glândula pineal não vou comentar pois é algo secundário para o âmbito deste artigo (tanto que mereceu somente uma nota de rodapé); mas basta dizer que não há nenhuma pretensão de indicar que o experimento "comprovou" alguma coisa.
Abs
raph
Postar um comentário
Toda reflexão é bem-vinda:
Voltar a Home