Intervista, parte 2
Esta é uma "entrevista de mim mesmo" que escrevi em 1999 e agora trago para este blog. Continuando da parte 1:
Você ama?
-Claro que amo. Agradeço todos os dias por isso.
-(sorri) Eu adoraria pular para a próxima pergunta e poupar tempo, mas ainda preciso saber... O que você ama?
-Ora, se eu amo, amo o tudo. Amo tudo o que existe...
-Era o que eu temia...
-Tudo bem, eu também não estou habituado a encarar o amor dessa forma. Talvez por ser assustador, infinito. Mas se eu sinto que amo, e isso só mesmo eu posso dizer, posso apenas amar ao tudo, já que essa é a finalidade do amor.
-Então você não odeia ninguém, ou nada? Nem os políticos corruptos ou torturadores da guerra?
-Uma coisa não leva a outra... Mas eu posso dizer que não tenho nada contra eles, e até me dedico a gostar deles. Mas gostar de sua essência, que é a mesma presente em cada um de nós. Não posso amar o que eles fazem, naturalmente, pois seria extremamente contraditório.
Amar ao todo significa amar a essência que é o universo, cada um de nós. É amar a energia que molda e move a existência a cada segundo de nossas vidas. No que cada um de nós usa tal energia vai de acordo com nossa liberdade, mas não importa o que façamos, seremos sempre seres maravilhosos e dignos de amor... Uns estão sujos de tanta ignorância e brutalidade, mas outros são leves e cintilantes, da mais pura beleza.
-Tudo bem, o seu amor é uma espécie de amor religioso... Mas você não acha que precisamos de mais do que isso para compreender e aceitar as pessoas?
-(ri) É fácil para você enquadrar as coisas e classifica-las, afinal esse é o seu trabalho, não o culpo. Acontece que meu amor não é apenas religioso, pois eu não gosto só de um velhinho que mora no alto do céu e dita a existência... Esse arquétipo não existe, o que existe é a ignorância das pessoas para com essa energia que criou o tudo, e constantemente se mostra presente em nossas vidas, a cada segundo, como já disse.
O que eu amo é aquilo que criou e moldou nosso mundo, que rege as leis da natureza, que mantém nossos átomos unidos e não nos deixa simplesmente dispersar numa nuvem caótica de partículas... É o algo mais que estava aqui antes mesmo do aqui existir. É a inteligência máxima, que não quis que fôssemos robôs e nos deu o direito de escolher nosso próprio rumo. Que nos deu o direito de observar o mundo, amar, aprender e evoluir por nossos próprios passos... E, além disso tudo, é também a folha que cai anunciando o outono, a criança que brinca e nos faz recordar e sorrir, o criminoso que se regenera e nos faz ter esperança de dias melhores, ou mesmo o sábio, que no fim da vida ainda encontra forças e determinação para ensinar, e aliviar nosso medo do penoso fim. Isso tudo, mais ou menos, é o que eu amo.
-Bonito, bonito... Mas você disse a pouco que odiar não era uma consequência de não amar...
-Sim, claro... Odiar não é exatamente o oposto de amar, acho eu. Quero dizer, você pode odiar as ações de certo alguém, mas não o alguém em si, já que todos somos livres para errar e aprender, corrigindo a nós mesmos. Não poderemos cometer todos os erros possíveis, muito menos alcançar todos os acertos, por isso mesmo é tão vital que amemos não só as pessoas, mas nossa própria história, para que aprendamos com nossos acertos e erros, visando não repetir os últimos, e evoluir com os primeiros...
-(confuso) Hmm... O que seria o oposto de amar então?
-Veja bem, amando ao tudo, estaremos transportando energia, conhecimento, e muitas outras coisas que não podemos explicar ao certo ainda, para nossa memória, ou nosso ser. Quando você olha para uma árvore sob a luz da manhã, poderá se encantar com aquele cilindro de madeira que sustenta pequenas gotas de verde que se agitam para lá e para cá quando as brisas passam... Retornando a mesma árvore à noite, você perceberá que o brilho verde deu lugar a uma penumbra semiprateada, refletindo a lua, e que o tronco está tão escuro que mais parece um arauto negro de aspecto retorcido... Você pode preferir a árvore da manhã, ou a da noite, mas de qualquer jeito a árvore continuará sendo somente uma árvore. Você só poderá saber qual das duas prefere se observar com carinho e atenção, se gostar do que vê, se lhe interessar o que aprendeu da natureza visível da árvore. E quando você tiver observado o suficiente para entender isso tudo, e amar o que viu, ainda lhe restarão uma infinidade de outras coisas para aprender, pois que viu somente uma das faces da árvore...
Imagine quanta coisa não poderá descobrir mais de uma árvore? Quantos segredos não lhe reservam essa empreitada? Isso é amar uma árvore, amar todas as árvores, e consequentemente transporta-las para o seu próprio ser, para que quando você estiver numa cidade de puro concreto, ou sob o sol punitivo de um deserto, você possa recordar do ar puro e da sombra fresca, características das árvores... Se fizer direito, poderá se sentir realmente feliz na cidade ou no deserto, tal que saberá que existem coisas tão belas, coisas que ama, dentro de si próprio.
Melhor ainda seria amar a areia e a imensidão do deserto, ou os arabescos e muros cinzentos da cidade, já que daí se encontraria maravilhado em qualquer lugar. Agora, odiar a areia ou os muros não lhe fará deixar de lembrar das árvores... Portanto você pode ainda não entender que o tudo é produto da mesma energia e inteligência, e pode mesmo acreditar que ama uma parte e odeia outras, quando na verdade se ilude totalmente.
O oposto do tudo é o nada absoluto, o grande e abominável nada. O oposto do amor talvez seja melhor definido na indiferença ou mesmo na ignorância do mundo a volta, posto que quando não nos interessamos por nada, não nos sensibilizamos com as árvores nem gostamos de cidades ou desertos, somos poços de imenso vazio, angustiados e profundamente solitários, sem nada nem ninguém dentro de nós mesmos a nos confortar, a nos auxiliar em nossa evolução e aprendizado, que necessariamente irá nos colocar a prova no decurso de nossas vidas. Não amar é estar morto em vida, mas talvez mesmo no poço mais negro, mais profundo, ainda exista um pouco dessa energia que faz o mundo girar, e a civilização crescer.
» A entrevista concluí em breve...
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Crédito da imagem: Anônimo
Marcadores: amor, contos, contos (61-70), natureza
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