Monismos e dualismos
Assim como no caso dos teísmos e ateísmos, referentes a crença ou descrença numa divindade, e também ao que compreendemos pelo próprio conceito de “divindade”, há muitas confusões desnecessárias criadas em torno do mal entendimento do que cada um compreende pelo que quer que seja a mente, e da sua relação com o cérebro. Seria a mente gerada pelo cérebro, ou aquela quem tecla as teclas cerebrais, comandando o corpo? O que seria exatamente a subjetividade, algo real, ou uma ilusão persistente?
Tais questões residem no âmago da filosofia da mente e, apesar dos esforços de alguns dos maiores filósofos e cientistas do mundo, continuam sendo profundamente desconcertantes. Em geral os filósofos da mente não buscam fatos cientificamente investigáveis sobre ela [1], mas o que o conceito de mente em si envolve. Seu método inclui a exploração de conexões lógicas e conceituais existentes entre mente, comportamento e nossas várias capacidades mentais.
Para tentar auxiliar em classificar as definições e/ou visões distintas acerca da mente, os monismos, dualismos e suas variações conceituais, elaborei um pequeno glossário de termos abaixo, que é propositadamente curto – e, obviamente, não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas apenas de ajudar a resolver melhor alguns debates:
Monismo
Há várias doutrinas filosóficas que defendem o monismo. Embora elas tenham inúmeras diferenças entre si, o que nos interessa aqui é que todas elas concordam que existe apenas uma única substância responsável tanto pelo corpo quanto pela mente.
Seria muito simples dizer que todo monista crê que a mente e o corpo são inseparáveis, e não podem existir dissociados – no caso, a mente não existiria dissociada de um corpo. Poderíamos complementar a tese afirmando que todos os monistas são materialistas. Mas mesmo tais classificações poderiam ser apressadas...
Por exemplo, embora o grande Benedito Espinosa seja um monista, que crê que todas as substâncias do Cosmos derivam de uma única substância incriada, seu pensamento possuí alguns aspectos do dualismo de propriedade (que veremos abaixo), e pode se enquadrar mais definitivamente naquele caso. Além disso, por incrível que pareça, existe um polêmico cientista chamado Amit Goswami que consegue ser um monista materialista e ao mesmo tempo crer na possibilidade da mente sobreviver mesmo após a morte do corpo.
Para evitar maiores confusões, bastará aqui concluirmos que o monista crê que só existe uma substância no Cosmos, e que tanto a mente quanto o corpo são formados por ela.
Acreditam na existência da mente? Quase sempre sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Algumas vezes sim (ver dualismo de propriedade).
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Não, exceto no caso do “monismo quântico”.
“Monismo quântico”
Embora esta definição se refira exclusivamente as teorias do cientista indiano Amit Goswami, devo dizer que certos autores a classificariam dentro do chamado monismo idealista. Eu preferi falar do monismo idealista no dualismo de propriedade (que veremos abaixo), por achar que se enquadraria melhor naquela outra definição mais ampla.
Pois bem, como cientista a materialista, Goswami crê que a mente e o corpo são formados pela mesma substância, com a mesma propriedade material. Para Goswami, no entanto, nossa capacidade consciente de escolha, e a interferência fundamental que a consciência exerce nos processos da mecânica quântica, denotam que é a consciência quem “molda” o cérebro (e não o contrário). Além disso, suas teorias também abarcam a possibilidade da reencarnação e da imortalidade da consciência (alma), ao postularem que após a morte do corpo a consciência não é perdida, mas tampouco “vaga pelo ar”, e sim dá um “salto quântico” pelo espaço-tempo até a próxima possibilidade que seja criada para que uma consciência habite um cérebro – ou seja, a concepção de outro ser humano.
Esta teoria é obviamente muito controversa no meio acadêmico, e nem sequer podemos dizer aqui que o próprio Goswami a compreende inteiramente. Para maiores detalhes, recomendamos a leitura de seu livro A física da alma (publicado no Brasil pela Editora Aleph).
Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Não, porém a consciência molda o cérebro.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? De certa forma sim, embora ela só se “manifeste” a partir do momento que encontra uma nova possibilidade para “habitar um corpo”.
Monismo eliminativo
Um materialista crê que tudo é formado por substância material, muito embora, caso seja bem informado, saberá que atualmente a ciência postula que apenas cerca de 4% da matéria do universo foi detectada, pois interage com a luz – enquanto os outros 96% são Matéria Escura e Energia Escura, e até hoje não foram detectadas em experimentos, nem uma partícula sequer.
Já os materialistas eliminativos, que sempre serão monistas por definição, são um tanto mais radicais que os materialistas: eles negam que sequer exista uma mente! Eles dizem que a mente poderia parecer óbvia para nós, mas, segundo o eliminativista, à medida que a ciência avança, pode-se revelar que mentes “não são mais reais do que seres mitológicos” [2].
Segundo eles, a explicação apropriada para o comportamento humano não envolve nada semelhante a mentes ou ao que supostamente se passa nelas, como pensamentos e sentimentos. A explicação correta de nossas “vontades” envolve apenas referências a eventos naturais, sem nenhuma relação ao que chamamos de mente – que pode ser nada mais do que uma ilusão persistente do cérebro.
Os monistas eliminativistas resolveram o problema difícil da consciência, que envolve a questão da subjetividade e do “eu” (por exemplo, a interpretação subjetiva da “vermelhidão” do vermelho; ou da “profundidade” com a qual um filho ama sua mãe), da forma mais simples e reducionista: negando que exista uma consciência subjetiva... Talvez o maior representante do monismo eliminativo seja o filósofo americano Daniel Dennet.
Acreditam na existência da mente? Não. Ou seja, não existe o que chamamos de subjetividade, e nossas escolhas são eventos naturais, das quais somos em realidade apenas “espectadores”, ou nem isso.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Não.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Não.
Dualismo (de substância)
O dualismo é uma concepção filosófica ou teológica do mundo baseada na presença de dois princípios ou duas substâncias ou duas realidades opostas e inconciliáveis, irredutíveis entre si e incapazes de uma síntese final ou de recíproca subordinação. É dualista por excelência qualquer explicação metafísica do universo que suponha a existência de dois princípios ou realidades não subordináveis e irredutíveis entre si.
A ideia aparece na filosofia ocidental já nos escritos de Platão e Aristóteles, que afirmam, por diferentes razões, que a inteligência do homem (uma faculdade do espírito ou da alma) não pode ser assimilada ao seu corpo, nem entendida como uma realidade física.
Descartes foi o primeiro a assimilar claramente o espírito (substância imaterial) à consciência e distingui-lo do cérebro, que seria o suporte da inteligência. Chamou a mente de res cogitans ("coisa pensante") e o corpo de res extensa ("coisa extensa", isto é, que ocupa lugar no espaço). A ligação entre a mente e o corpo, segundo ele, seria feita através do tálamo, uma pequenina parte do cérebro [3]. Foi Descartes, portanto, quem primeiro formulou o problema do corpo-espírito do modo como se apresenta modernamente.
A maior parte dos dualistas é dualista de substância, o que se opõe em parte ao dualismo de propriedade, do qual falaremos na sequência.
Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Sim.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Quase sempre sim, particularmente entre os religiosos.
Dualismo de propriedade
Uma das posições mais sutis sobre a relação entre a mente consciente e o mundo material é o dualismo de propriedade, que também englobaria o chamado monismo idealista. Ele admite que os materialistas estão corretos ao supor que há apenas um tipo de substância – a substância física. Mas, a seu ver, as substâncias materiais podem ter propriedades físicas e mentais. Estas últimas seriam distintas das primeiras e não poderiam ser reduzidas a elas.
Sir John Eccles, neurologista vencedor do prêmio Nobel de medicina de 1963, foi talvez o mais ilustre cientista a argumentar em favor da separação entre a mente, a consciência (no caso, um processo da mente) e o cérebro. Ele dizia: "Nós, como pessoas que experienciam, não aceitamos tudo o que nos é fornecido por nosso instrumento, a máquina neuronal de nosso sistema sensorial e o cérebro, nós selecionamos tudo o que nos é fornecido de acordo com o interesse e a atenção, e modificamos as ações do cérebro, através do 'eu'".
Os dualistas de propriedade crêem que a matéria possa explicar o problema difícil da consciência, porém também acreditam que o mecanismo da subjetividade não possa ser explicado apenas com a matéria detectada no cérebro. Ou seja, na sua opinião, o entendimento atual da neurociência parece ser incapaz de nos descrever como seres que interpretam informações, e não somente como máquinas que se limitam a computar informações – neste sentido, eles se opõe diretamente a explicação do materialismo eliminativo, que basicamente compreende a mente como “a ilusão de uma máquina biológica”.
Até anos atrás poderiam ser chamados de lunáticos pelos acadêmicos, porém desde a descoberta científica de que provavelmente 96% da matéria do universo não foi detectada, pois não interage com a luz, fica um tanto complicado afirmar que “estão delirando”.
Conforme dissemos, mesmo Espinosa e os demais monistas idealistas podem se enquadrar nesta classificação, pois embora acreditem que exista somente uma substância, sua concepção leva a crer que ela tenha ao menos duas propriedades muito distintas – as propriedades físicas, e as mentais.
Note que o dualista de propriedade, embora concorde com o materialista que há apenas um tipo de substância (a material, o que faz dele também um materialista, porém não um materialista eliminativo), concorda com o dualista substancial que os fatos relativos às nossas mentes estão além da compreensão atual que temos dos fatos meramente físicos.
Acreditam na existência da mente? Sim.
Acreditam que a mente possa existir independente do cérebro? Sim.
Acreditam que a mente possa existir sem um corpo físico? Muitas vezes sim, particularmente entre os espiritualistas e ocultistas. Mas Espinosa, por exemplo, não acreditava nisso.
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Bibliografia recomendada
Wikipedia; Guia Zahar de Filosofia (Stephen Law); A física da alma (Amit Goswami); Ética (Espinosa); 25 Grandes Ideias (Robert Matthews – há um capítulo sobre a consciência); O cérebro espiritual (Dr. Mario Beauregard e Denyse O’Leary); O erro de Descartes (Antônio Damásio).
Observação (1): É preciso sempre lembrar que a ciência não é ideologia ou doutrina, não é materialista nem espiritualista, monista ou dualista, teísta ou ateísta. A ciência é tão somente o conhecimento da natureza detectável, e o estudo de seus mecanismos. Há muitos grandes cientistas da história que eram monistas ou dualistas.
Observação (2): Embora nem sempre fique claro em meus textos, como um dualista de propriedade, costumo defender este tipo de visão aqui no blog. Me coloco, portanto, em oposição total ao monismo (ou materialismo) eliminativo, embora isso não signifique que deixe de admirar a paixão com que alguns filósofos defendem tal visão, particularmente Daniel Dennet. Finalmente, embora sempre afirme ser um espiritualista, em realidade também não deixo de ser um materialista – se me entenderam bem até aqui, verão que tais conceitos não necessariamente se opõe entre si.
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[1] Embora a neurociência esteja avançando a passos largos na compreensão do processo de consciência, ao ponto de já sermos capazes de “decodificar” os comandos motores do cérebro, abrindo a possibilidade para que tetraplégicos voltem a caminhar (comandando exoesqueletos robóticos apenas por ondas celebrais), ainda estamos muito distantes de resolver o chamado problema difícil da consciência, que envolve a questão em torno da própria subjetividade e do “eu”.
[2] Notem que, ainda que seres mitológicos “existam apenas na mente”, isso nada tem a ver com a ideia de que a própria mente seja um mito!
[3] Hoje este conceito foi desacreditado, com os avanços da neurociência. Porém, é possível que o tálamo também seja, na realidade, uma espécie de “sensor” de ondas eletromagnéticas, o que supostamente explicaria a mediunidade.
Crédito da foto: Oliver Killig/dpa/Corbis (My Soul, Escultura de Katharine Dowson)
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4 comentários:
Gostei da descrição do dualismo de identidade, conceito que me era desconhecido e no qual me encaixei melhor. Se levarmos em conta que o "algo" ou a "substância" formadora da matéria e da energia segue parâmetros de informação quântica (aquele mesmo parâmetro usado na computação quântica onde ao invés do 0 ou 1 "algo" é 0, 1, os dois ou nenhum ao mesmo tempo até que se manifeste ou seja observado, conceito necessário para explicar como um elétron parece estar em dois lugares ao mesmo tempo)e na verdade molda a matéria e a energia através deste tipo de informação, fica claro que o Todo é mental: o universo é a informação manifesta pelo "pensamento" ou manifestação da informação quântica da "substância" ou do "algo". Adoro quando a física e a química se misturam à Filosofia! rsrs :).
Fazendo um "salto quântico" (desculpe, não resisti ao trocadilho) da mente do Todo (ou a informação quântica do universo) para a nossa mente humana, chegamos ao paradoxo dos efeitos do corpo psíquico/mental inferior ao cérebro. O cérebro gerou a informação ou a informação gerou ao cérebro? hummm... voltamos ao quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha....kkkk
Fico com o pressuposto de que a informação pode muito bem sobreviver sem um hardware pesado (corpo físico) se vibrar como onda ou permanecer como campo... Obrigado por me fazer pensar! Pena que aposto que me expressei de modo confuso. Sempre as dificuldades em ser claro... Abraços
Pois é, mesmo o pensamento precisa ser alguma informação, e há físicos quem postulem que no nível mais fundamental, tudo que há é informação:
"Podemos, sem dúvida, extrair algumas conclusões da metáfora do cérebro enquanto máquina, lidando com as informações da mente como um computador lida com bits digitais. Ora, uma das definições de informação é exatamente “dar forma a mente”. Mas, se aqui falamos apenas de informações que trafegam pela mente, será que elas também são substâncias reais por si mesmas?
John Wheeler, um físico americano, cunhou a expressão “o it que vem do bit”. Em suas palavras: “Cada it – cada partícula, cada campo de força e até mesmo o próprio continuum espaço-tempo – deriva inteiramente sua função, seu significado, sua própria existência – mesmo que em alguns contextos indiretamente – de respostas induzidas por equipamento a perguntas sim ou não, escolhas binárias, bits. O it que vem do bit simboliza a ideia de que cada item do mundo físico tem no fundo – bem no fundo, na maioria dos casos – uma fonte e uma explicação imateriais; que aquilo que chamamos de realidade vem em última análise da colocação de perguntas sim-não, e do registro de respostas evocadas por equipamento; em resumo, que todas as coisas físicas são informacional-teóricas na origem.” [6]
Bem, foi um físico quem disse... Na verdade, talvez a realidade virtual gerada por computador, ou através do baile neuronal mental, não seja assim tão virtual. É mesmo estranho de se pensar, mas cada pensamento, cada imagem mental, também precisa estar lidando com informações; Ou com bits de informação, se formos manter esta nossa metáfora mecanicista."
Trecho de O pensamento analógico, meu artigo para o Projeto Entrementes.
Abs
raph
Oi Hermano,
A filosofia da mente não está particularmente preocupada com a experiência do ser após a morte do corpo, se é que este existiria, claro.
No entanto, não vejo porque a possibilidade da mente existir fora do corpo não possa se adequar ao dualismo de propriedade. Embora Espinosa não acreditasse nisso, ele não ficou a par dos avanços da física de partículas, da mecânica quântica e, sobretudo, da teoria da matéria escura.
Se formos focar somente na física de partículas e "esquecer das mentes", ainda assim a matéria conhecida tem pelo menos duas propriedades fundamentais: uma pequena parte, esta que conhecemos, interage com a luz; enquanto a outra parte, muito maior, não interage com a luz, e somente pode ser postulada indiretamente, pois falta matéria para explicar toda a gravidade necessária para manter as estrelas "coladas" dentro de suas galáxias.
Claro que o dualista de propriedade postula que ao menos parte desta "matéria desconhecida" é exatamente a matéria que forma "as coisas mentais". E suas propriedades são quase que absolutamente desconhecidas, ainda mais do que a matéria escura. Mas não quer dizer que não exista, até mesmo porque nossas explicações mecanicistas da mente jamais darão conta do problema difícil da consciência.
Não foi a toa, portanto, que os materialistas eliminativos procuraram "se livrar do problema da mente" postulando que ela seja "uma ilusão": assim eles acreditam retirar um IMENSO problema das costas. Na verdade, estão apenas ignorando o problema.
Abs
raph
Hermano, amigo, não sou nenhum expert no assunto, mas no dualismo de substância é algo como: matéria é matéria e energia é energia, cada coisa em seu mundo e em seu lugar, como era antes de Einstein, só que aqui, ao invés de matéria e energia, temos informação e consciência ou plano espiritual x matéria/energia. No dualismo de propriedade é tudo uma substância só que "salta" de um estado a outro, como pode ocorrer no dualismo matéria x energia via E=mxc2. Alguns teóricos da Teoria das supercordas postulam que a informação quântica é algo como uma potencialidade latente antes de uma manifestação e que a matéria e a energia são como formas tomadas quando uma quantidade desta informação vibra (muda-se da energia puramente potencial da informação pura para um misto de energia potencial e cinética devido à manifestação da vibração, que define o surgimento da matéria e da energia a partir daquela vibração). É bem viajado, mas creio que é uma teoria plausível. Bela tacada no assunto novamente Raph. O blog tá ótimo!
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