Onde está o seu deus?
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No início do século II d.C., no mercado principal de Enoanda, cidade de 10 mil habitantes no sudoeste da Ásia Menor, foi erigida uma enorme muralha de oitenta metros de largura e quase quatro metros de altura, com inscrições baseadas na filosofia de Epicuro, e cuja finalidade era atrair a atenção dos compradores. Era uma espécie de alerta:
“Comidas e bebidas requintadas... de modo algum libertam do mal ou proporcionam a saúde da carne. Deve-se atribuir à riqueza excessiva o mesmo grau de inutilidade que representa acrescentar água a um recipiente que já estava prestes a transbordar. Os verdadeiros valores não são gerados por teatros e termas, perfumes e essências... mas pela ciência natural.”
O muro foi pago por Diógenes, um dos homens mais ricos de Enoanda, que desejava, 4 séculos após Epicuro e seus amigos terem fundado o Jardim de Atenas, compartilhar os segredos da felicidade que ele havia descoberto na filosofia de Epicuro.
O antigo filósofo cuja maior parte das obras se perdeu foi bem mais incompreendido – ou analisado de forma superficial – do que compreendido. Dizem que tudo que ensinava era a busca pelo prazer (hedonismo) e o materialismo (atomismo), mas é preciso desconhecê-lo profundamente para tais tipos de hiper-simplificações de seu pensamento.
Sobre a busca do prazer, Epicuro em realidade afirmava que “o homem que alega não estar ainda preparado para a filosofia ou afirma que a hora de filosofar ainda não chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que é jovem ou velho demais para ser feliz.” Longe de ensinar uma busca desenfreada por prazeres mundanos, ele defendia que uma vida equilibrada e na companhia de boas amizades era todo o necessário para a felicidade – neste caso, pão e água eram suficientes... “De todas as coisas que nos oferecem a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da amizade... alimentar-se sem a companhia de um amigo é o mesmo que viver como um leão ou um lobo.”
Poucos foram aqueles que, ao longo da história, enxergaram o quanto a filosofia de Epicuro sempre se fez necessária para nos afastar das tentações e desejos inúteis da vida em sociedade. Ele separava os desejos da seguinte forma:
O que é essencial para a felicidade
Natural e necessário | Natural mas desnecessário | Nem natural nem necessário |
Amigos, Liberdade, Reflexão, Casa, Comida, Roupas | Palacete, Terma privativa, Banquetes, Empregados, Peixe, Carne | Fama, Poder, Status |
Dizem também que Epicuro era ateu. Mas de fato tudo o que defendia era que os deuses viviam em uma realidade muito superior a mundana, de modo que provavelmente não estariam preocupados com nossos afazeres, e nem era necessário que nos afligíssemos com eles ou que preparássemos rituais e oferendas para aplacar sua ira ou barganhar por favores sobrenaturais.
Para Epicuro, isso tudo era fonte de angústias desnecessárias... Porque se preocupar com política, com os deuses, com o acúmulo de riquezas ou com a morte, se o prazer da vida está exatamente em compartilhá-la com os amigos, em não viver com mais do que o necessário, e na constante reflexão sobre a natureza infinita do Cosmos?
Em sua recusa em se preocupar com um panteão de deuses com seus próprios afazeres e em sua exaltação da felicidade que advém da vida harmoniosa, em contato constante com os amigos e a natureza, Epicuro era bem mais religioso que a maioria dos eclesiásticos – e bem mais monoteísta que a maioria dos religiosos que dizem seguir somente a um único Deus, mas que ao fim do dia seguem a vários...
Pensemos nos dias atuais, em que a maior religião e o maior deus passam desapercebidos da grande maioria, embora quase todos acabem rezando para ele: o deus do consumo. Seus evangelizadores estão em cada canal de TV paga ou aberta, sua bíblia é ensinada desde as “orientações vocacionais” das escolas aos “discursos sobre a dura realidade da vida e sobre como um bom salário é mais importante do que tudo”... Andando pelas ruas, vemos suas orações expostas em outdoors e páginas de jornal. Ele é tão poderoso que abocanhou até mesmo o tempo – “tempo é dinheiro, eu sou o tempo, eu sou o seu deus!”
Ao contrário do deus de Epicuro, que podia ser encontrado em qualquer grama de jardim, nalgum galho partido ou nos sorrisos dos amigos, este deus é feito sobretudo de coisas sem vida e de desejos desenfreados; muito embora possa parecer “onipresente” em nosso dia a dia – uma roupa de grife, um terno, um celular, um videogame, um carro, um iate... Ele nunca se cansa, e o tempo é a prova:
Porcentagem dos norte-americanos que declararam os seguintes itens como necessários
1970 | 2000 | |
Segundo carro | 20% | 59% |
Segunda televisão | 3% | 45% |
Mais de um telefone | 2% | 78% |
Ar-condicionado no carro | 11% | 65% |
Ar-condicionado em casa | 22% | 70% |
Lava-louças | 8% | 44% |
Hoje em dia vivemos correndo, "utilizando" todas as horas do dia. Comendo em fast-foods e tendo relacionamentos no estilo fast – simples, rápidos, indolores, muitas vezes “anestesiados”. Se nos angustiamos com a vida ou se caímos em depressão, oramos também ao grande profeta do deus do consumo – o guardião dos comprimidos em seu manto de tarja preta... Com tudo isso economizamos bastante tempo. Tempo para...?
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Não era esse tipo de religião que Epicuro professava. Ele preferia simplesmente ser livre, talvez por reconhecer que perto da imensidão da natureza, suas angústias e desejos eram como poeira e folhas espalhadas pelo vento em seu jardim.
Quaisquer que sejam as diferenças entre as pessoas e seus desejos e angústias, elas não são nada perto das diferenças entre os seres humanos mais poderosos e os grandes desertos, as altas montanhas, geleiras e oceanos, a luz das estrelas. Existem fenômenos naturais tão grandes que tornam as variações entre duas pessoas quaisquer ridiculamente pequenas. Ao passar um tempo em amplos espaços, a consciência de nossa própria insignificância na hierarquia social pode se transformar na consciência reconfortante da insignificância de todos os seres humanos no Cosmos.
Podemos superar o sentimento de que somos insignificantes não nos tornando mais importantes ou desejando fama, poder ou status, mas reconhecendo a insignificância relativa de todos. Nossa preocupação com quem é alguns milímetros mais alto do que nós pode dar lugar a uma reverência a coisas infinitamente maiores que nós, uma força que podemos ser levados a chamar de natureza, vida, infinito, eternidade – ou simplesmente Deus.
Mas, sobretudo, quem mantém os pés no chão florido das amizades duradouras e a mente na imensidão estelar do Cosmos, este não poderá jamais ser seduzido pelas efêmeras promessas dos arautos do deus do consumo, tampouco necessitará recorrer a tratar da angústia com comprimidos (*). Este tem a seu lado o amor ao saber, as reflexões diárias, a liberdade de pensamento: este encara toda angústia e todo desejo por si mesmo, ou talvez com a ajuda de amigos. Seres reais, não imaginários nem inanimados – aí está o deus de Epicuro. Onde está o seu deus?
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(*) Certas doenças necessitam de medicação, e é excelente dispor da medicina atual para tratá-las. O que não podemos é usar comprimidos como muletas - nesse sentido nossos comprimidos serão nossos deuses, e nós os seus fantoches. Por outro lado, também é necessário "cortar o mal pela raiz": a filosofia nos ajuda a evitar a necessidade de comprimidos, evitando antes a doença.
Leitura recomendada: “As consolações da filosofia” e “Desejo de status” – ambos de autoria de Alain de Botton e publicados no Brasil pela Editora Rocco. As citações de Epicuro e Diógenes foram retiradas do primeiro.
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Crédito das imagens: Bettmann/Corbis (anúncio de cigarros de 1936) [topo], Iplan/amanaimages/Corbis [ao longo].
Marcadores: Alain de Botton, artigos, artigos (71-80), desejo, Deus, economia, Epicuro, filosofia, liberdade, materialismo, panteísmo, vontade
7 comentários:
Eu acho o panteismo interesante,aproposito tem um texto sobre o relacionamente entre a religião e a ciencia escrita por um cetico que eu gostaria que voce desse uma olhada:http://mbarbatti.sites.uol.com.br/def/p83.html
(Eu não tenho a intenção de te converter ao materialismo,so quero saber sua opinião como espiritualista de mente aberta)
Oi Lucas, já que considera a minha opinião acho interessante lembrar que segundo o Livro dos Espíritos o espírito em si mesmo (e o perispírito) é feito de matéria, apenas matéria fluida e ainda não detectada diretamente em laboratório (como o restante dos 96% que não interagem com a luz, segundo a Teoria da Matéria Escura). Portanto, há muitos espíritas e espiritualistas (como eu) que consideram a matéria espiritual (isso não veio do espiritismo mas passou a ser bem mais considerado à partir dele).
Um materialista, em suma, apenas crê que a matéria QUE JÁ FOI detectada (os cerca de 4%) explicam TODO o processo de consciência humano. Ele também tende a ser monista, no sentido de não crer na separação mente-corpo... Mas você pode ser espiritualista e monista (e não dualista), considerando que o espírito só existe junto ao corpo. Um exemplo é Amit Goswami...
Mas claro que a maioria dos espiritialistas é dualista mesmo... Assim como praticamente não faz sentido ser materialista sem ser igualmente monista.
O artigo lerei agora...
Abs
raph
Sobre o artigo:
"Se o questionário de Leuba fosse estendido para avaliar tanto a crença num Deus pessoal quanto num Deus-harmonia, o número de crentes entre os cientistas norte-americanos provavelmente subiria para algo similar ao número de crentes entre a população inglesa ou francesa."
Concordo plenamente. É preciso lembrar que muitos grandes sábios eram panteístas, como Epicteto e muitos dos estóicos, e posteriormente o grande Espinosa, e o próprio Einstein nos dias mais atuais...
Minha religião é meu pensamento, mas conforme disse no blog algumas vezes, a minha crença em Deus se aproxima muito da de Espinosa.
O problema é que mesmo Espinosa não é inteiramente panteísta (*), pois crê (como eu) numa "intenção" da natureza, que atua como um guia oculto sempre a nos inspirar para a evolução constante. Toda a "Ética" de Espinosa trata exatamente de compreender essa "intenção" da natureza e segui-la da melhor forma possível.
E, convenhamos, um Deus que criou tudo a partir de si mesmo (a substância-primeira, pois uma substância jamais criou outra) e estabeleceu leis tão elegantes, simétricas e constantes, não iria se dispor a ir falar com um povo perdido no deserto de um cantão de um pequeno planeta orbitando um pequeno sol na periferia de uma de bilhões e bilhões de galáxias no Cosmos.
Ser panteísta, ou deísta, é sobretudo reconhecer que Deus é muito, muito maior do que o senhor dos exércitos ou o filho ungido, etc.
Nada contra Jesus (muito pelo contrário), apenas não acho que poderia ser Deus...
(*) Da maneira como ele é as vezes compreendido - uma simples oposição a um "deus pessoal" -, isso daria um longo debate heh...
Abs!
raph
Ainda falando sobre ateismo aqui tem um bom blog caso resolva voltar a escrever sobre o tema:http://adrianoped.blogspot.com/
Também foram encontradas mais inscrições de Diógenes sobre a filosofia de Epicuro. Numa inscriçao em pedra ela aparece sob a forma de um tetrapharmakon, um quadruplo remedio, composto por ingredientes das doutrinas principais do filósofo:
"Não há o que temer quanto aos deuses.
Não há nada a temer quanto a morte.
Pode-se alcançar a felicidade.
Pode-se suportar a dor."
Eu tenho certa convicção que todo cientista apaixonado francamente pelo seu trabalho é de certa forma panteista. Falando de mim, minhas primeiras experiências místicas se deram através da ciência. Apenas estudando espiritualidade mais a fundo consegui classificá-las como tal. Um cientista que medita sobre os mistérios da realidade com dedicação e amor não esta distante dos grandes filósofos da natureza do passado. Ouso dizer que estão mais proximos de um ofício sagrado do que a maioria de nossos atuais sacerdotes.
Acho interessante considerar que a maioria dos cientistas que conheço sao pessoas simples. Talvez de gosto refinado, porém simples. Pessoas com atitudes muito mais voltadas a honrar ao Deus de Epicuro do que ao do consumo. Pode ser, é claro, que eu seja muito otimista. Mas afinal, como a realidade é mental, acho produtivo pensar desta forma sobre um meio que estou inserido. =)
Certamente Dionisio, os cientistas de outrora (do renascimento da ciência no Ocidente) chamavam a si mesmos não de cientistas, mas de Filósofos da Natureza.
Se formos considerar grandes cientistas como Feynman e Sagan, eles eram mesmo pessoas muito simples (mas jamais pessoas simplórias ou medíocres). Como influenciaram tantos outros cientistas, acaba que o seu próprio "jeito de ser" tende mais a simplicidade e a despreocupação com o consumismo.
Afinal, quem tem toda a Natureza para observar, não se incomoda em ter um smartphone de duas ou três gerações atrás :)
Abs!
raph
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