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16.8.10

Injusto consigo mesmo

Trecho do Projeto Ouroboros

(S.) Pois bem, mas estivemos atrelando o conceito de justiça divina primordialmente a igualdade, ou igualdade universal. Devemos então retornar a ela...
Estive considerando que um homem ou mulher pode nascer livre e pertencente a uma fraternidade. Mas pode alguém ser igual em si mesmo?

(I.) Igual em si mesmo?

(S.) Sim, da mesma forma que dizemos “este é um homem livre”, poderíamos construir uma frase como “aquela é uma mulher igual”... Mas ela faria algum sentido?

(I.) Ah sim, agora lhe entendi... Realmente não faria sentido algum.

(S.) Dessa forma, quando falamos em igualdade, estamos falando sempre de uma relação entre uma ou mais partes, uma ou mais pessoas ou seres.

(I.) Não há dúvida.

(S.) Nesse sentido, conforme estivemos atrelando o conceito de justiça universal e divina a uma igualdade universal, chegamos a conclusão de que ninguém pode ser justo ou injusto para consigo mesmo – a justiça envolve sempre a interação e o relacionamento com um ou mais seres distintos. Você ainda concorda?

(I.) Com muito gosto. Uma bela exposição lógica, minha cara!

(S.) Obrigado, mas então permaneça atento a este fio de pensamento...
Muitos concordarão, portanto, que é justo afirmar que onde termina o direito de um se inicia o direito do outro. Há aí uma linha extremamente tênue, e é precisamente esta “fronteira” de direitos que demanda a interpretação cuidadosa e lúcida dos grandes juízes, sobre os quais recaiu a monumental tarefa de atuarem conforme deuses – julgando o destino daqueles que são encaminhados as suas cortes...
Dessa forma, obviamente aquele que rouba ou agride ou tira a vida de algum outro deve se penalizado pela lei dos homens, que está tentando imitar a justiça divina desde sua criação. Quanto a isso praticamente não há discussão, exceto nos casos de legítima defesa, mas não quero entrar em detalhes; Consideremos que o assassino que mata sem ter sido provocado ou ameaçado está agindo injustamente, isso me parece sempre claro a todos não?

(I.) Certamente, a vida é sagrada e não deveria caber aos homens julgar ou decidir quem se vai e quem fica. Na realidade nunca coube, e aqueles que se acharam no direito de efetuar tal julgamento estavam equivocados, como nossa conversa já deve ter deixado claro até aqui...

(S.) Sim, conforme falamos de liberdade e fraternidade, esperamos que isso tenha ficado claro... Mas, e quando alguém pratica uma injustiça consigo mesmo, isso é passível de repreensão e julgamento?

(I.) Você fala do suicídio?

(S.) Não somente o ato de se matar, mas qualquer ato consciente que vise prejudicar a manutenção da própria vida... Ora, acabamos de afirmar que a igualdade sempre se aplica a um conjunto de seres, e que como a justiça universal também está atrelada ao conceito de igualdade, ninguém teoricamente poderia ser injusto consigo mesmo... Porém, o que dizer daqueles que intencionalmente atentam contra a própria vida, seja em curto prazo – um ato direto de suicídio –, ou à longo prazo – geralmente através de vícios em substâncias nocivas a vida –?

(I.) Realmente havia me esquecido dessa possibilidade. Como me pegou novamente em sua armadilha lógica, vou deixar que você mesmo continue a expor uma solução enquanto eu continuo nesta profunda reflexão.

(S.) Pois bem, minha intenção não era pregar peças em você meu amigo, mas apenas fazer com que todos possam chegar a uma conclusão mais completa, se conseguirem seguir este fio de idéias.
Ora, se é viável afirmar que ninguém é desigual para consigo mesmo, me parece que não podemos prosseguir e afirmar que ninguém é injusto para consigo mesmo...
Ocorre que, embora tenhamos sido criados iguais, e todos sejamos responsáveis por nossas próprias escolhas; e embora resida exatamente nesses conceitos o cerne do que estivemos discutindo sobre a justiça divina e universal, não podemos nos apressar e esquecer de uma coisa: embora não sejamos a Eva que mordiscou a maça proibida [1], todos temos ainda um débito que talvez nunca possamos quitar, e que por isso mesmo deve ser sempre respeitado.
Me diga, meu caro I., se alguém lhe pedisse emprestada uma roupa fina para comparecer a uma festa, o que você esperaria dessa pessoa nos dias seguintes a festa em que ela foi com sua roupa?

(I.) Que me devolvesse, conforme o combinado...

(S.) E o que você diria se a roupa fosse devolvida com rasgos ou manchas permanentes?

(I.) Que a pessoa foi descuidada!

(S.) E se, digamos, ela nem chegue a lhe devolver nada, não iria atrás dela para cobrar satisfações?

(I.) Certamente, iria cobrar uma nova roupa ou o valor da antiga, se ela encontra-se arruinada...

(S.) E você julga que estaria agindo conforme a justiça, pelo menos a justiça dos homens, correto?

(I.) Correto, não que eu vá ficar muito revoltado se alguém arruinar uma roupa minha, mas sem dúvida seria uma coisa injusta...

(S.) Pois bem, isto já é o suficiente para eu encerrar a exposição...
O que diriam então, amigos, de uma roupa preciosíssima que nos foi ofertada no início da vida, a qual formos encumbidos de preservar da melhor forma possível, visto que é nosso veículo essencial na existência – não seria um ato injusto rasgá-la e arruiná-la de forma intencional?
Ora, conforme expomos no início de nossa conversa, todos somos parte da substância-primeira (ver conclusões do cap. X) [2], e embora ainda não tenhamos discutido sobre o que exatamente forma nossa alma, e mesmo que sejamos apenas um corpo formado por poeira de estrelas distantes, ainda assim esta poeira nos foi emprestada, e não nos pertence – ainda que simplesmente porque somos incapazes de criá-la por nós mesmos.
Dessa forma, já viemos para a existência com pelo menos este débito e esta responsabilidade: a de cuidar e preservar o veículo de nossa própria vida, a começar obviamente pelo próprio corpo. Concluindo, ainda afirmo que todo ato que atenta contra a própria vida é injusto, e cada vez mais injusto na medida em que temos consciência plena deste ato. Digo isso porque, apesar de sermos responsáveis por nossa própria vida, por nossas próprias escolhas, é impossível crer que somos os criadores de nós mesmos... Ora, se uma substância não pode criar uma outra substância, e se somos todos parte da substância-primeira, se todos somos os devedores desse empréstimo sagrado, obviamente que estaremos sendo justos, cada vez mais justos, na medida em que preservamos nossa própria existência, e compreendamos cada vez mais os mistérios que a encerram.
Todos estão de acordo?

***

[1] Conforme a nota existente no livro: Em sua análise mais aprofundada o mito de Adão e Eva se refere ao estágio em que os seres tiveram consciência de si próprios, de sua individualidade, e também das noções de “bem” e de “mal” (poderia-se também dizer: quando deixaram o estágio de animalidade). No caso em questão, a personagem alude a visão menos aprofundada mesmo: uma alegoria que sugere que os filhos de Adão e Eva estão em débito com Deus por conta do “ato pecaminoso” de Eva.

[2] No capítulo em questão temos uma discussão em torno da célebre pergunta: "Porque existe algo, e não nada?" – Já postei um trecho deste capítilo no blog: "Como criar um universo". Notem que o objetivo da exposição de trechos do livro no blog não visa uma espécie de marketing (até mesmo porque nem sei ainda quando terminarei de escrever a obra), mas sim colher comentários e interpretações dos leitores...

***

Crédito da foto: sadheartgirl

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5 comentários:

Anonymous Heverton disse...

S. deu um xeque-mate bonito em I.

17/8/10 21:47  
Blogger raph disse...

O legal é que nesse "jogo", quem leva xeque-mate também sai vencedor :)

Abs
raph

18/8/10 00:29  
Anonymous Heverton disse...

I. certamente não será o mesmo depois disso.

18/8/10 10:01  
Blogger Samuel Otemi disse...

Este textos me fez lembrar deduzir a partir de imagens em minha mente o quão complicado é a questão do suicídio.Me lembrei de imagens de um documentário que o ser hipnotiza o outro tirando sua consciência do seu corpo físico e o ser para de sentir dor, ou quando um ser leva um acidente e ele sente tantas dores em diversas partes do corpo que ele passa a não ter mais consciência da dor.As vezes um ser passa por experiências tão terríveis que a sua consciência se anula se perde ele não tem mais consciência de qualquer coisa. Mas isto justifica tirar a vida para não sentir mais dor?Segundo a Wikipédia no Judaísmo – No judaísmo, o sacrifício é conhecido como korban, palavra oriunda do hebreu karov, que significa "vir para perto de Deus”.Eu me lembrei também de um episódio de um anime japonês chamado Inuyasha nele os irmão lutavam entre si e no meio da luta Inuyasha meio-yokai (meio demônio) corta o braço do seu irmão sesshomaru (todo yokai) eles lutavam pelo tesouro do seu pai que era uma espada a Tesaiga forjada a partir dos dentes do seu pai também yokai.No episódio que eu me lembrei foi o qual ele recupera o braço. Os dois irmãos se juntaram para lutar contra um inimigo comum no desenho era Narak uma representação de legião (o que é muitos e não é nem um). O interessante desse episódio é que quando seshomaru supera seu orgulho e os laços de ódio com seu irmão o seu braço cortado simplesmente se recupera. Bom o que tudo isto tem a ver com o tema do texto. Ao criarmos amarras internas nós perdemos a consciência para nosso sensorium em diversos níveis internos e externos e isto nos afasta de Deus e todas amarras que fazemos tanto consigo mesmo ou com o próximo tornam reais e se manifestam tanto no corpo físico como em nossas atitudes com a pessoas ao nosso redor e com nosso próprio self essa relação de causa e efeito que é o karma.Para superar um Karma a exemplo com base no que o autor de Inuyaha quis passar você precisa retirar essas amarras ou Sacrificá-las ou superá-las e com base no judaísmo esse sacrifico siguinifica que você apartir disso deve volta-se para o uno o espírito superior ou seja esse renascimento siguinifica que não será mais possível olhar para trás e ter as mesmas bases anteriores terá que caminhar por bases mais elevadas.E Nisto se configura a complexidade do suicídio porque não há essa superação e diante disso o suicida limita a sua evolução até esse sacrifício poder ser realizado e se afasta do espírito sagrado que há dentro dele. O ponto de um suicida fazer justiça consigo mesmo é realizar esse sacrifício.
Gostei do texto, Valeu.

18/8/10 10:03  
Blogger raph disse...

Oi Samuel,

Obrigado pelos comentários.

Mas acho que seria melhor deixar claro que suicídio e sacrifício são duas coisas distintas.

Um soldado que vai para guerra defender a paz, um bombeiro que entra num prédio em chamas para salvar vidas, um ativista que arrisca a vida para trazer a opinião pública para as questões que eles acredita serem corretas, todos esses fazem sacrifícios. Ainda que estejam equivocados em suas crenças, eles não arriscam a vida de forma inconsequente, e segundo suas consciências estão agindo em prol de algo maior.

Morrer tentando salvar vidas, principalmente, quase nunca será um suicídio.

Já seres que atentam contra a própria vida por estarem "entediados com a existência", esses quase sempre serão suicidas, principalmente quando tem consciência plena de seus atos (não estão sob efeito de drogas, remédios ou doenças).

E ainda poderíamos estender muito a conversa. Lembrando de seres que se suicidam porque creem que vão para "um lugar melhor", e etc.

A principal questão do trecho que postei, entretanto, é apenas procurar lembrar que nós não criamos a nós mesmos (seja nosso corpo, seja nossa alma), e que portanto atentar contra nós mesmos sem razão, e de forma consciente, é um ato injusto.

Abs!
raph

18/8/10 10:35  

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