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21.5.12

Os corvos de Wotan, parte 2

« continuando da parte 1

Um dos problemas em tentar se interpretar um mito tão antigo como Odin nos dias atuais é a questão de, obviamente, os dias atuais pouco ou quase nada terem a ver com os dias em que os nórdicos cantavam poemas sobre seu Deus no inverno europeu. Isso também nos leva a uma outra questão, mais profunda, que é a antropomorfização do Deus: ora, fica óbvio que o Odin-homem, filho de Bor, não pode ser o Deus do qual tudo emanou, visto que ele mesmo é filho de ainda outro deus. Mas, pelo que sabemos, Bor é citado diretamente apenas uma única vez em toda a Edda Poética, e não há registro algum de culto a este deus (em qualquer época), de modo que mesmo o fato de Odin ter um pai pode fazer parte dessa transformação do Deus em um homem divino, um deus antropomorfizado em um avatar [1].

Pelo menos neste aspecto continuamos no mesmo barco dos ancestrais europeus: temos uma dificuldade muito parecida em nos referir a Deus sem “esbarrar” em antropomorfizações do tipo. Mas isto, longe de ser um problema para o entendimento da mitologia, é na verdade um ponto de encontro entre a modernidade e a antiguidade. É claro que boa parte da simbologia que foi atribuída ao mito de Odin ao longo dos séculos teve muito a ver com o estilo de vida e as ideias, os anseios e os medos, do povo nórdico... É exatamente quando retiram Deus de seu aspecto incognoscível (ao menos para a grande maioria de nós) e os “trazem para baixo”, para nossa realidade humana, é que encontram inspiração para relatar sua realidade em inúmeras histórias fantásticas, baladas poéticas, salpicadas por panteões de deuses e um imenso conjunto de seres mitológicos, simbólicos. E, exatamente por tais histórias terem essas camadas superficiais de simples entendimento, tornou-se possível que chegassem, boca através de boca, mente através de mente, até os nossos dias atuais.

Isso não significa que não tenham muitos elementos ocultos, eternos, escondidos nas camadas mais profundas de sua narrativa. A questão é: e quem terá a lamparina para iluminar tais locais ocultos e descobrir toda a profundidade do mito? Quem, a não ser você? Quem, a não ser todo aquele que busca compreender a mitologia humana, a nossa história mais profunda, com a mente realmente aberta e arejada?

Estas são algumas das histórias mais profundas acerca de Odin... Acendam as lamparinas:

O deus errante
Talvez a mais antiga forma de representação de Odin seja a do deus errante, a vagar pelo mundo dos homens sem um destino exato, carregando um cajado (ou sua lança usual, mas utilizada como cajado), e vestindo um disfarce de nômade (sem elmos, armaduras, nem nada do tipo). Diz-se também que esta versão do deus tinha características xamânicas, que foram preservadas nas versões posteriores, mas que nesta fase eram mais “aguçadas”... Ora, se formos analisar toda a mitologia, há inúmeros casos de deuses errantes, particularmente entre os africanos, os indígenas das Américas e os xintoístas – o que essa ideia nos conecta, historicamente, é com o período pré-histórico em que fomos caçadores-coletores, e não sabíamos nada de agricultura.
Um deus errante não pode, no entanto, ser o patrono de um panteão de deuses, muito menos o governador de um reino como Asgard. Na época dos caçadores-coletores, não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia divina, assim como não fazia muito sentido imaginar uma hierarquia entre as tribos humanas – simplesmente existiam inúmeras tribos, umas amigáveis e outras não, e inúmeros deuses ou espíritos errantes da natureza, uns amigáveis e outros não. Antes da civilização, a espiritualidade era horizontal, não vertical.
Com o surgimento da agricultura, das primeiras civilizações, e da ideia de hierarquia, o mito do deus errante aos poucos foi se transformando no mito do Deus-Pai, o Grande Xamã: não apenas de uma tribo, mas de centenas ou milhares de tribos. Odin era então o deus de todos os povos nórdicos, que agora viviam em vilas e cidades, embora ainda caçassem e guerreassem uns com os outros e, sobretudo, com os povos do sul da Europa.
Talvez por isso, apesar de Senhor de Asgard, Odin nunca tenha deixado de ser também o deus caçador, o deus errante... Você pode achar que o Odin errante jamais exerceu qualquer impacto sobre você, mas isso pode não ser verdade, principalmente se você, como eu, já leu e se maravilhou com os livros do britânico J. R. R. Tolkien – O Hobbit e O Senhor dos Anéis. Ora, ocorre que Tolkien era um grande fã da Edda Poética e, como tal, introduziu em sua Terra Média inúmeros mitos dela. Um deles era exatamente o mago Gandalf, que é totalmente inspirado pelo aspecto errante de Odin, até mesmo na aparência.

Sleipnir
Diz-se que Odin era muitas vezes visto cavalgando pelos ares em seu cavalo de oito patas (mas nenhuma asa), chamado Sleipnir. Esta é mais uma parte do mito que está claramente associada ao xamanismo. Um cavalo de oito patas já pode ser associado aos transes xamânicos, quando supõe-se que, em estados alterados de consciência, provocados por rituais específicos ou mesmo pela ingestão de plantas e/ou cogumelos alucinógenos, os xamãs antigos (assim como os modernos) tinham visões de animais se metamorfoseando em outros animais, ou adquirindo membros extras, dentre outras alucinações do tipo [2]...
Porém, além disso, Sleipnir era um cavalo voador, o que se trata de uma clara menção as “viagens” em transes xamânicos, assim como uma conexão do mundo terreno com o mundo espiritual, celeste. Esta conexão é reforçada pelo fato de Sleipnir ser também capaz de levar seu cavaleiro até o submundo (o mundos dos mortos), e o trazer de volta são e salvo.
Histórias bem mais recentes, medievais, contam que nos dias próximos ao solstício de inverno, as crianças nórdicas deixavam suas botas com cenouras, feno e açúcar, próximas as chaminés das casas, para que Sleipnir viesse e as comesse. Odin costumava recompensar tais crianças com pequenos brinquedos e doces, que no outro dia eram encontrados dentro das botas. Ora, nem preciso dizer o que isso nos lembra nos dias atuais, não é mesmo? Odin é realmente conhecido por diversos nomes...

Geri e Freki
Odin também era acompanhado por dois lobos ferozes, Geri e Freki. Ambos os nomes significam algo como “guloso”, ou até “vorazmente guloso”. Os lobos de Odin eram conhecidos por comerem bastante, realmente: isto, pois Odin sobrevivia apenas de vinho, e mesmo nas festas em seu salão real, deixava toda a carne ou qualquer outro tipo de alimento sólido para que sues lobos devorassem.
Ironicamente, encontramos uma clara referência ao ascetismo espiritual dentre um mito nórdico [3]. Odin era o Grande Xamã e, como tal, a ele apenas o vinho sagrado era necessário – tudo o que precisava para estabelecer seu poder sobrenatural, que provavelmente tinha muito a ver com as visões experimentadas em transes xamânicos. Essa ideia aparentemente estranha é reforçada pelo fato de outras tantas histórias afirmarem que o vinho de Odin é um poderoso catalisador da criatividade poética, e os poucos bardos que um dia tiveram a grande sorte de provar de seu sabor, compunham a seguir as mais belas e profundas baladas de que se tem notícia. Quem sabe, talvez mesmo os Eddas sejam fruto desta divina bebedeira!

» Na próxima parte: Odin, suas visões do mundo espiritual, e uma estranha cabeça falante...

***

[1] O termo avatar vem do hinduísmo e significa algo como a manifestação de um ser imortal em um corpo, um humano mortal como qualquer outro. Este termo obviamente não era utilizado pelos nórdicos, mas eu o estou citando como forma de me fazer compreender melhor.

[2] Para uma análise mais detalhada do xamanismo em geral, recomendo consultarem a série de artigos Xamãs ancestrais.

[3] Uma outra leitura interessante, paralela a esta, seria identificarmos os lobos Geri e Freki como os aspectos bestiais e animalescos da alma. A aventura de Odin também consistiria, portanto, de um grande autocontrole, para que seus lobos continuassem devidamente “adestrados” e controlados, e comessem “somente quando Odin assim o permitisse”.

***

Crédito das imagens: [topo] Georg von Rosen (Odin the Wanderer, 1896); [ao longo] John Howe (Gandalf, 1999); John Bauer (Odin and Sleipnir, 1911)

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7 comentários:

Blogger Vitor Hugo disse...

Cara, muito bom este post, muito bom mesmo, adoro ver um mito, símbolo ou os aspectos de um deus ser esmiuçado igual vc fez neste post, parabéns!!

A sua associação do Sleipnir com xamanismo, muito fod*...

Vc que fez essas associações a partir do seu apanhado de estudos ou leu em algum livro? Tomara que não fique só no Odin!!

Abraço!!
\o

21/5/12 19:29  
Blogger raph disse...

Bem, para compreender melhor como não apenas Odin, mas inúmeros outros deuses que datam da antiguidade, tem associações com o xamanismo, há dois livros que recomendaria a leitura: O espírito e o tempo, de J. Herculano Pires, que fala dos primórdios da mediunidade (embora não cite mitos e deuses); e também o monumental Sobrenatural, de Graham Hancock, que fala do mesmo assunto de uma forma mais científica (embora continue sem fazer associações diretas com mitos e deuses).

Mas, vocês vai me perguntar: "então, o que isso tem a ver com Odin?"; Como vimos na parte 2 (e veremos na próxima), bastante coisa, pois os mitos antigos também carregam a história do espírito humano, e antes de sermos doutores, cientistas, filósofos, alquimistas, sábios, fomos xamãs.

Minhas associações de Odin com o xamanismo são realmente apenas minhas mesmo, por isso que eu alertei para que sejam críticos em relação a elas... Por outro lado, há inúmeras referências na web ao xamanismo no mito de Odin, como nas páginas de Wikipedia em inglês, mas talvez nenhuma delas seja tão "direto ao ponto" como este resumo que estou fazendo...

Pra ser bem sincero, eu não faço a menor ideia de porque "surgiu" essa vontade e essa inspiração de falar sobre Odin, mas tudo começou com uma música, que ainda citarei nesta série.

Abs
raph

21/5/12 20:36  
Anonymous Anônimo disse...

Raph, mais uma vez, com uma série incrível.
Estou ansioso pelos próximos textos!
Abraços.

21/5/12 21:01  
Blogger raph disse...

Valeu Victor, acho que o próximo vai ser o mais legal :) Abs!

22/5/12 09:54  
Blogger Rato Saltador disse...

O interessante que o próprio Gandalf, na cosmologia criada por Tolkien, é algo como um semideus. O livro Silmarillion, que conta as origens da Terra Média, apresenta Gandalf como Olórin, um maiar, espírito que surgiu antes mesmo da criação do mundo. Os maiar estão abaixo apenas dos valar, que são o equivalente aos deuses. Ambos surgiram como emanações da mente de Eru Ilúvatar, o Deus Supremo no universo de Tolkien.

22/5/12 10:54  
Blogger raph disse...

Oi Rato, depois verá como esse seu comentário terá muito a ver com a parte 3 da série :)

22/5/12 11:06  
Blogger raph disse...

Oops, na realidade terá mais a ver com a parte 4, já que os benditos corvos não couberam na parte 3 :)

22/5/12 18:46  

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