Pular para conteúdo
20.3.13

De falos e orifícios

Os eclesiásticos parecem definitivamente ter dificuldades com a ideia de que nossos falos e orifícios precisam entrar uns nos outros; e, principalmente, que esta dança sexual possa, ao mesmo tempo em que gera vida, nos dar grande prazer.

Em algum canto da antiguidade, em alguma interpretação apressada de Platão, entendeu-se, sabe-se lá como ou porque, que “o sexo era sujo”. Isto, pois o corpo humano era precário, perecível, sempre sujeito a morte. Apenas a alma era “limpa”, imperecível, imortal, e deveria ser nossa grande preocupação mantê-la “tão pura quanto possível”, tão distante dos “prazeres carnais” quanto fosse necessário.

Hoje a virgindade de Maria, a mãe de Jesus, é um dogma da Igreja Católica Apostólica Romana. Isto não quer dizer que os primeiros cristãos tenham acreditado automaticamente que Maria “engravidou do Espírito Santo”, mas sim que a discussão já “se esvaziou” – Que nenhum teólogo deveria continuar perdendo seu tempo com ela.

Muitos não sabem, mas diversos dogmas do cristianismo foram exaustivamente discutidos e, dessa forma, elaborados nos primeiros séculos após a morte e ressurreição do Cristo (pois muitos não constam na bíblia, ao menos não numa descrição direta). Orígenes (nascido em 185), por exemplo, duvidava que Cristo fosse Deus, e também que “um Deus de amor e misericórdia pudesse permitir que um de seus filhos sofresse num inferno eterno”. Já Ário de Alexandria, pouco menos de um século depois, concordava com Orígenes quanto a distinção entre Cristo e Deus, além de simplesmente não compreender o que diabos era exatamente a tal “trindade perfeita”.

Somente em 325, no Concílio de Nicéia, as ideias de Ário (arianismo) e Orígenes foram consideradas heréticas, ou seja: “erradas”. O próprio Agostinho de Hipona, que nasceu décadas após o Concílio, estabeleceu as bases atuais do dogma do Pecado Original [1] – Somente muitos séculos, portanto, após Jesus haver pregado na Galileia. Agostinho foi admirador do neoplatonismo e do maniqueísmo, e embora não admitidamente (no caso do maniqueísmo), ambas as doutrinas, através dele, exerceram profunda influência sobre o cristianismo que se seguiu.

Ora, e se Mani (fundador do maniqueísmo) exerceu alguma influência em Agostinho, certamente esta influência até hoje é percebida no cristianismo. Mani considerava Zoroastro (profeta persa, fundador do zoroastrismo), Buda e Jesus “pais da Justiça”, e pretendia sistematizar suas mensagens individuais numa doutrina de “verdade completa”. E o que o cristianismo herdou de Mani, através de Agostinho, foi exatamente a ideia central do zoroastrismo: que existe uma guerra semieterna entre um “deus bom” e um “deus mau” [2].

O problema é que não termina aí: Mani calhou de chegar a conclusão de que a matéria era “intrinsecamente má”, e a alma, “pura e boa”. Ainda hoje acusam Platão por ter “inserido” esta ideia equivocada no cristianismo, mas mesmo esta concepção é apressada e superficial [3]: se houve culpa de alguém, além dos próprios cristãos da época, que se abstiveram de debater o assunto por mais tempo, esta culpa recaí mais decisivamente no inconsciente de Agostinho – em suas memórias da época em que seguia a doutrina de Mani e, principalmente, em seu vastamente documentado arrependimento da antiga vida boêmia (e sexual).

Estou aqui a condenar Agostinho? Claro que não. Este grande sábio da antiguidade deixou-nos inumeráveis passagens de grande teor filosófico [4]. Porém, na questão do Pecado Original, simplesmente lamento profundamente as conclusões a que chegou...

Afinal, se o ato de comer uma maçã proibida pode ser responsável pela condenação do sexo as trevas, pela eternidade, fica muito difícil saber onde a razão se escondeu nesta teoria. Poderia me estender aqui sobre o assunto de Adão, Eva e a Serpente, mas já falei sobre isso noutros artigos [5], e gostaria ainda de retornar ao problema dos falos e orifícios.

Ora, fica evidente que a Imaculada Conceição é um dogma que se esvaziou dos significados simbólicos dos mitos ainda mais antigos [6], e se revestiu de um supremo puritanismo que pretende “salvar” Maria do ato sexual – como se este fosse alguma coisa relacionada ao “deus mau” do maniqueísmo.

Mas Maria não precisa ser “salva” de nenhum Pecado Original. O sexo não é uma espécie de doença contagiosa, e ninguém se torna “impuro” por praticá-lo. O que nos torna impuros, o que realmente mancha nossas almas, é a ignorância, a intolerância, a falta de empatia, a brutalidade do pensamento ou, para resumir, o próprio “afastamento de Deus”.

Alguém já definiu o puritano como “aquele que se escandaliza ante o fato de que alguém, nalgum lugar, pode estar tendo prazer”. Muitas das vezes, os puritanos são sujeitos altamente sexuais, mas que se viram obrigados a varrer toda sua sexualidade para debaixo do tapete da consciência. Não fosse assim, como seria possível haver tantos eclesiásticos praticando os atos sexuais mais desajustados, quando defendem exatamente o oposto disto? É isto o que ocorre quando “fingimos eliminar nosso lado animal com dogmas e orações”. É este, afinal, o grande pecado: recusar-se a admitir que somos humanos, demasiadamente humanos.

Intrinsecamente, não há problema algum em darmos algumas aberturas para nosso lado animal. Não fosse por isto, pelo que Schopenhauer chamou de “a força da vida” (antecipando em muitas décadas os psicólogos evolutivos), sequer estaríamos aqui para contar a história da espécie. E o sexo, de todo tipo – heterossexual, homossexual, bissexual –, é perfeitamente natural, se encontra na Natureza (e, se vocês tem alguma dúvida, pesquisem por “bonobos” no Google [7]).

Aliás, é melhor, muito melhor, darmos alguma abertura a fera sexual que nos habita, ainda que de vez em quando, do que fingir que ela não está lá, ou pior, acreditar que ela pode ser afastada com orações repetidas da boca para fora, que não passaram pela profundidade da alma.

Pois todo aquele que conhece a alma sabe que, de fato, o sexo é bom, e tem sido bom a incontáveis vidas... Mas sabe também que há algo ainda melhor, uma espécie de gnose deste mistério, um entreolhar da “força da vida”, que anseia por si mesma, mais e mais. Um fogo que arde sem se ver, e que não se apaga nunca, mas pelo contrário: queima cada vez mais alto e forte.

Que há muitos ignorantes que condenaram o sexo as trevas, mas que ao puni-lo com violência e intolerância, praticam pecados no mínimo muito piores do que qualquer promiscuidade envolvida no ato sexual...

Mas aqueles que se largaram no fogo da alma, e queimaram seu antigo corpo, sua antiga ignorância, renasceram junto ao Cristo, e desvendaram enfim o que Zoroastro quis dizer:

Não é o sexo que é mau. Não é o corpo que é mau. Não é a matéria que é má. A maldade reside na alma, e nos olhos, de quem vê... E que é a maldade, senão a suprema ignorância da Natureza?

***

[1] Um contemporâneo de Agostinho, monge ascético (e que jamais foi boêmio), chamado Pelágio, combateu veementemente o dogma do Pecado Original, mas foi considerado herege pelo bispo de Roma.

[2] Isto é, claro, segundo uma concepção altamente superficial do zoroastrismo. Infelizmente, no entanto, ainda que inconscientemente, Agostinho foi influenciado por tal pensamento, e ele se encontra até hoje no cristianismo (basta ter olhos para ver).

[3] Ver O mito da caverna comentado.

[4] Foi, por exemplo, o primeiro a analisar o aspecto psicológico do tempo de forma aprofundada (ao menos, no Ocidente).

[5] Ver Serpentes.

[6] Os mitos sobre filhos gerados por mulheres virgens são numerosos, constituindo uma ideia corrente já muito antes do cristianismo. Mesmo no Oriente, 2 mil ou 3 mil anos antes de Cristo, entidades mitológicas e fundadores de religiões eram considerados “filhos de mães virgens e puras”. Esta virgindade, no entanto, não necessariamente vinha associada de uma “condenação ao ato sexual”. Era, muitas vezes, apenas uma metáfora para “uma divindade que gerou a si mesma”.

[7] Ver 3 chimpanzés.

***

Crédito da foto: Wikimedia Commons (Templo de Lakshana, Índia)

Marcadores: , , , , , , , , , , , , ,

4 comentários:

Blogger Leandro Severino disse...

Profundo Raf, profundo mesmo !.
Parabéns pelo post !.

21/3/13 09:04  
Blogger raph disse...

Obrigado :)

21/3/13 10:04  
Anonymous Samuel Otemi disse...

Bom, eu não sei bem, mas eu penso que durante a história foi corrompida a ideia original de puresa, os gregos tinha uma deusa chamada Vesta, que era representado pelo fogo sagrado, ou agnis Hindu, o culto a vesta eram feito por sacerdotizas virgem. No zoroastrismo
ahura mazda utilizava o fogo sagrado do coração humano para vencer a mentira, que era a representado por angra mainu ou ariman.O que parece é que esta puresa estava relacionado, a verdade da alma,a verdadeira vontade que vence a ilusão do mundo,e não propriamente ao sexo.O grande problema é a visão sectária, a avidia o ser olha apenas uma coisa e se fecha para todo o resto. Normalmente demonizando todo o resto.Nos post anteriores você citou que 95 % da matéria do universo é desconhecida, e mesmo assim ao intepretar o mundo, agem como já sobessem de tudo. Não olha deus ao redor na natureza e nem no silencio "no fogo sagrado de seus corações".Esquecem que há vários niveis de interpretação na mente o simbólico, o espirtual, o holístico, a energética e astral a muitas coisas que se perdem nas escrituras sagradas ao nos fecharmos para nossa ignorância.

Cara, Valeu pela reflexão. Sempre um bom texto por aqui!

21/3/13 11:03  
Blogger raph disse...

Pois é, Samuel... Acho que o grande problema do zoroastrismo influenciando o cristianismo é que os cristãos ou não sabem disso ou, mesmo sabendo, não admitem. Ou, mesmo admitindo, não imaginam que foi uma interpretação bastante superficial do zoroastrismo que "sobreviveu" aos séculos, ao menos dentro do cristianismo.

Abs :)

21/3/13 17:48  

Postar um comentário

Toda reflexão é bem-vinda:

‹ Voltar a Home