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5.6.15

Mergulhando em corações, parte 2

Conto pessoal, da série “Festa estranha”, com depoimentos de Rafael Arrais acerca de suas experiências espiritualistas. Baseado (ou não) em fatos reais. Os nomes usados são fictícios (exceto para pessoas públicas).


« continuando da parte 1

A festa prosseguiu com apresentações de danças tradicionais indianas e curiosos desfiles de moda [1], e Atmaji se parecia com qualquer um de nós, aplaudindo junto com todos, sorrindo junto com todos... Para mim, isto indicava muito mais a sua sabedoria interior do que o contrário. Até aquele momento eu ainda não havia chegado a uma conclusão se ele era mesmo um mestre ou não. Foi somente quando a música começou que eu me decidi...

Atmaji não era somente um sábio conhecedor profundo de diversos tipos de yoga em sua terra natal, ele era um dançarino nato! E ele não dançou de sua cadeira, evidentemente, ele veio para o meio do palco, para o meio da tenda e, com pés descalços sob os tapetes, como boa parte dos presentes, dançou com todos nós... Foi ali que eu me decidi – afinal, eu só poderia acreditar num mestre que saiba dançar ao lado de todos.

Ao som de diversas melodias distintas, dançamos os cânticos de devoção a Krishna e Rama [2], que aposto que muitos de vocês já ouviram algum dia: Hare, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare ô ô... Hare, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare ô ô...

Todos dançavam com total liberdade. Não existia coreografia, nenhuma espécie de passo decorado, nem muito menos danças de casal, embora muitas vezes as pessoas se dessem as mãos ou atravessassem um ou ambos os braços através dos ombros das outras... Dizem que eu mesmo acabei sambando nalgum momento, mas isso não posso confirmar :)

Havia um garoto mais jovem, no final da adolescência, que estava tão empolgado que, num movimento brusco enquanto dançava junto a Atmaji, acabou acertando seu queixo com uma cabeçada involuntária. Eu observei a cena de perto e me impressionei com a forma como ele reagiu, ou melhor, como não reagiu. Apenas sorriu, foi como se nada tivesse ocorrido. De fato, nada havia ocorrido, nada além daquela bela dança de almas numa noite enluarada do centro do Brasil.

Mas toda dança tem seu fim, e ao final daquela dança abriu-se espaço para algo ainda mais belo – os presentes na festa fizeram perguntas ao mestre, e ele respondia, com breves intervalos para um ou outro sorriso [3].

Uma mulher estava triste porque, apesar de ter passado a semana com Atmaji e praticado diversas meditações e rituais de purificação, acabou reagindo mal a uma provocação em casa, e discutiu rispidamente com alguém próximo. Ela se sentia culpada de haver “falhado”, e chegou a chorar enquanto relatava o ocorrido... Após Abhishek haver traduzido a pergunta para o inglês, eis o que seu mestre respondeu:

Você não é o pecado, você é o observador do pecado. Isto já passou, e você não pode fazer nada em relação ao que já foi. Concentre-se no que pode fazer daqui para frente. Ninguém se iluminou da noite para o dia.

Um homem pergunta sobre o que é a iniciação pela qual Abhishek passou, e que todos teriam a oportunidade de passar, se fosse o seu desejo, no dia seguinte. Ele estava especialmente preocupado com a perspectiva de, quem sabe, ter de abandonar a sua religião atual. E o mestre lhe disse:

A iniciação é como a morte para o seu eu mundano, para que o seu novo eu divino possa florescer em todo o seu esplendor. Isso não tem a ver com igrejas, mas com a sua relação com a sua essência divina. Você poderá continuar na sua religião atual, no problem.

Uma mulher quis saber se é possível estar “sempre feliz”, como Atmaji aparentava. E quando passamos por grande tristeza, como fazer para continuar no caminho espiritual? O mestre ficou sério e respondeu:

Eu tento levar a vida com bom humor, esta leveza em relação às coisas é essencial. Mas isso não significa que, se um parente meu morre, eu não deva ficar triste, eu não deva chorar. Nós devemos viver o momento, completamente! Se o momento é de tristeza, viva esta tristeza. Se o momento é de alegria, viva esta alegria. Mas não ignore jamais o que ocorre com você. É preciso, a cada momento, estar muito atento ao que se passa em nosso interior.

Outra mulher relata que esteve presente em todos os eventos com Atmaji ao longo da semana que antecedeu a festa, mas que continuava em dúvida se deveria ou não participar da iniciação do dia seguinte. Ela relatou com convicção que Atmaji apareceu em alguns dos seus sonhos recentes, incluindo o da noite anterior, e acabou lhe convencendo a fazer a iniciação. O mestre, após rir de quase gargalhar, disse assim:

Eu senti que você estava pronta, então fui até o seu sonho para lhe dar a minha opinião sobre o assunto...

Estranho, não? Mas não havia sido a única... A Vânia, minha amiga do Mayhem, a quem conheço há alguns anos e de quem não tenho nenhuma razão para duvidar, já havia nos dito que Atmaji tinha aparecido num de seus sonhos, e que foi por conta disso, principalmente, que havia decidido vir naquela festa. O detalhe é que foi a Vânia quem nos chamou e estimulou a ir (além de mim e do Marcelo, ainda veio outro integrante do Mayhem, o namorado da Vânia), portanto não fosse por essa estranha prática de visitação dos sonhos alheios, quem sabe nenhum de nós teria conhecido o mestre indiano.

Já pelo final da festa quase todos fizeram uma fila enorme para serem abençoados por Atmaji. Eu preferi ficar fora da fila de início, e observar a reação das pessoas após haver meditado um tantinho ao seu lado, o que sempre terminava com um efusivo e prolongado abraço.

Foi assim que percebi que muitos tinham reações espontâneas ao seu lado. Uns riam, como ocorria comigo; uns choravam; e ainda outros (como era o caso de MarciAisha) riam e choravam ao mesmo tempo!

Quando finalmente chegou a minha vez, e ele novamente levou as minhas mãos de encontro as suas, percebi que a energia que sentia não tinha relação propriamente com a pessoa de Atmaji, mas com o espelho que ela havia se tornado. Ele apenas refletia a luz que vinha de algum canto do cosmos, e a luz foi criada para ser refletida.

De olhos fechados, eu tentei me conectar com essa luz, para que ela jorrasse ainda mais, em cântaros, sobre nós, sobre os que estavam naquela festa tão familiar, sobre a vizinhança, o país, o mundo inteiro... Nossas mãos de moviam juntas e em posição de reza, para o alto de nossas cabeças. Não me senti impelido a tal, de fato era como se alguém alheio a nós dois estivesse no comando daqueles movimentos todos... Uma coisa divina, pois de fato somos todos da raça dos deuses.

Então o movimento terminou no peito do mestre, e subitamente eu senti, ainda que por um momento tão breve quanto eterno: era como se eu estivesse mergulhando num coração gigante, como se o mundo inteiro se conectasse por aquele eixo de vermelhidão. Foi então que, numa mesma noite, numa mesma festa divina, eu não somente conheci um mestre, como mergulhei no Coração do Mundo.

Ao final, era desse poema de Rumi que eu me lembrava, inscrito em fogo em minha alma...

Sofreste em excesso
por tua ignorância,
carregaste teus trapos
para um lado e para outro,
agora fica aqui.

Na verdade, somos uma só alma, tu e eu.
Nos mostramos e nos escondemos tu em mim, eu em ti.
Eis aqui o sentido profundo de minha relação contigo,
porque não existe, entre tu e eu, nem eu, nem tu.


Para Vanessa, Marcos, Vinícius, MariAisha, Anny, Edilene, Nilton e Åsa... Foi inesquecível!

***

[1] A Om Namastê, o espaço onde se realizou a festa, além de ter aulas de meditação e yoga, é também uma loja de roupas indianas. Para quem morar em Campo Grande/MS e se interessar, vale a visita.

[2] Krishna é a personificação humana (avatar) do Espírito eterno ou Ser Supremo, representado pelos três grandes deuses hindus: Brâma, Vishnu e Shiva; pela ordem, o criador do universo, o mantenedor, e o destruidor e renovador. Já Rama é um dos avatares do deus Vishnu. Ambos são personagens importantíssimos nos Vedas.

[3] Na realidade houve esta festa num sábado à noite, e uma iniciação na tarde do domingo seguinte, no mesmo local, e que eu não descreverei neste conto. Não tenho certeza de quais perguntas foram feitas num dia ou noutro, pois estive presente em ambos, e em ambos Atmaji abriu espaço para as perguntas das pessoas. As respostas do mestre no texto são em realidade aproximações do que eu me lembro de ter ouvido, conjuntamente com alguns vídeos que tenho visto onde ele expõe o seu pensamento.

» Saiba mais sobre Atmaji em seu site (em inglês): upanisha.org

Crédito das fotos: Om Namastê (o espaço onde foi realizada a festa; obs.: o sujeito dançando é Atmaji)

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3 comentários:

Blogger Rato Saltador disse...

Caro, parabéns pela oportunidade! Só chega a quem tem merecimento, embora quando chegue é tanta luz que nos perguntamos se realmente merecemos. rsrs Enfim, muita paz pra ti na caminhada!

6/6/15 18:36  
Blogger raph disse...

Obrigado Saltador, continuemos no caminho, juntos!

Abs
Raph

7/6/15 02:48  
Blogger Unknown disse...

Ótimo texto, obrigado por compartilhar

7/6/15 14:22  

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