Pular para conteúdo
13.9.10

Definição da saudade

Depoimento de Dr. Rogério Brandão, médico oncologista clínico, de Recife/PB. Fonte original: Pensador.info (mas existem inúmeras variantes circulando por e-mail ou em outros sites)

Médico cancerologista, já calejado com longos 29 anos de atuação profissional, com toda vivência e experiência que o exercício da medicina nos traz, posso afirmar que cresci e me modifiquei com os dramas vivenciados pelos meus pacientes. Dizem que a dor é quem ensina a gemer. Não conhecemos nossa verdadeira dimensão, até que, pegos pela adversidade, descobrimos que somos capazes de ir muito mais além. Descobrimos uma força mágica que nos ergue, nos anima, e não raro, nos descobrimos confortando aqueles que vieram para nos confortar.

Um dia, um anjo passou por mim...

Meu anjo veio na forma de uma criança já com 11 anos, calejada, porém por 2 longos anos de tratamentos os mais diversos, hospitais, exames, manipulações, injeções, e todos os desconfortos trazidos pelos programas de quimioterapias e radioterapia.

Um dia, cheguei ao hospital de manhã cedinho e encontrei meu anjo sozinho no quarto. Perguntei pela mãe. E comecei a ouvir uma resposta que ainda hoje não consigo contar sem vivenciar profunda emoção.

Meu anjo respondeu:
- Tio, disse-me ela, às vezes minha mãe sai do quarto para chorar escondido nos corredores. Quando eu morrer, acho que ela vai ficar com muita saudade de mim. Mas eu não tenho medo de morrer, tio. Eu não nasci para esta vida!
Pensando no que a morte representava para crianças, que assistem seus heróis morrerem e ressuscitarem nos seriados e filmes, indaguei:
- E o que morte representa para você, minha querida?
- Olha tio, quando agente é pequena, às vezes, vamos dormir na cama do nosso pai e no outro dia acordamos no nosso quarto, em nossa própria cama não é?
(Lembrei minhas filhas, na época crianças de 6 e 2 anos, costumavam dormir no meu quarto e após dormirem eu procedia exatamente assim.)
- É isso mesmo, e então?
- Vou explicar o que acontece, continuou ela: Quando nós dormimos, nosso pai vem e nos leva nos braços para o nosso quarto, para nossa cama, não é?
- É isso mesmo querida, você é muito esperta!
- Olha tio, eu não nasci para esta vida! Um dia eu vou dormir e o meu Pai vem me buscar. Vou acordar na casa Dele, na minha vida verdadeira!

Fiquei boquiaberto, não sabia o que dizer. Chocado com o pensamento deste anjinho, com a maturidade que o sofrimento acelerou, com a visão e grand e espiritualidade desta criança, fiquei parado, sem ação.
- E minha mãe vai ficar com muitas saudades minha, emendou ela.
Emocionado, travado na garganta, contendo uma lágrima e um soluço, perguntei ao meu anjo:
- E o que saudade significa para você, minha querida?
- Não sabe não tio? Saudade é o amor que fica!

Hoje, aos 53 anos de idade, desafio qualquer um dar uma definição melhor, mais direta e mais simples para a palavra saudade: é o amor que fica!

***

Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), o progresso no desenvolvimento do tratamento do câncer na infância foi espetacular nas últimas quatro décadas (no Brasil). Estima-se que em torno de 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas, se diagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados. A maioria dessas crianças terá boa qualidade de vida após o tratamento adequado... Infelizmente não foi o caso da criança citada no depoimento.

Crédito da imagem: Chris Jones/Corbis

Marcadores: , , , , , , ,

10.9.10

Biocosmos

Texto de James Gardner em "O universo inteligente" (Ed. Cultrix) – Trechos das pgs.138, 139, 142, 143, 146 e 147. Tradução de Aleph Eichemberg e Newton Eichemberg. As notas ao final são minhas.

Originalmente apresentada em artigos científicos [...], minha hipótese do Biocosmo Egoísta [1] sugere que, ao tentar explicar a ligação entre a vida, a inteligência e as qualidades antrópicas do cosmos, a maioria dos cientistas convencionais tem olhado, em essência, pela ponta errada do telescópio. A hipótese afirma que a vida e a inteligência são, de fato, os fenômenos cosmológicos fundamentais, e que todas as outras coisas – as constantes da natureza, a dimensionalidade do universo, a origem do carbono e de outros elementos no coração das supernovas gigantes, o caminho traçado pela evolução biológica – são secundárias e derivadas. Nas palavras de Martin Rees, minha abordagem se baseia na proposição de que “o que chamamos de constantes fundamentais – os números que importam para os físicos – podem ser consequências secundárias da teoria final, em vez de manifestações diretas do seu nível mais profundo e fundamental.”

Comecei a desenvolver a hipótese do Biocosmos Egoísta como uma tentativa de prover dois elementos essenciais que faltavam no novo modelo de evolução cosmológica introduzido pelo astrofísico Lee Smolin. Smolin tinha apresentado a intrigante sugestão de que os buracos negros seriam portais para novos “universos bebês”, e que uma espécie de dinâmica populacional darwinista recompensa os universos mais aptos a produzir buracos negros com a descendência mais numerosa. A proliferação de populações de universos bebês emergindo do ventre (metaforicamente falando) de “universos mães” chega assim a dominar a população total do multiverso – um conjunto teórico de todos os universos, mães e bebês. Além disso, os universos propensos a produzir buracos negros exibem, coincidentemente, qualidades antrópicas, segundo Smolin, respondendo assim pela natureza bioamigável do cosmos “médio”, mais ou menos como um efeito colateral incidental [2].

[...] À primeira vista, a hipótese do Biocosmo Egoísta pode parecer incorrigivelmente antropocêntrica. Certa vez, Freeman Dyson, comentando as coincidências aparentemente milagrosas exibidas pelas leis e constantes físicas da natureza inanimada – fatores que tornam o universo tão estranhamente favorável a vida –, disse: “Quanto mais examino o universo e estudo os detalhes de sua arquitetura, mais evidências encontro de que o universo devia saber, em certo sentido, que estávamos chegando”.

[...] Ver o cenário da origem e da evolução da vida na Terra como uma sub-rotina menor num processo ontogenético inconcebivelmente amplo [3], por meio do qual o universo se prepara para a replicação, é diferente de pôr a humanidade no epicentro da criação. Longe de oferecer uma visão antropocêntrica do cosmos, a nova perspectiva relega a humanidade e sua provável descendência (biológica ou mecânica) a equivalentes funcionais das mitocôndrias – que antes eram bactérias de vida livre, cujos talentos especiais foram explorados no passado distante, quando foram ingeridas e depois forçadas a atuar como organelas no interior de células eucarióticas.

A essência da hipótese do Biocosmos Egoísta é que o universo que habitamos está no processo de ficar impregnado de vida cada vez mais inteligente – mas não necessariamente vida humana ou sua sucessora. Nessa teoria, a emergência da vida e da inteligência cada vez mais competente não é um acidente sem significado num cosmos hostil, em grande parte isento de vida, mas está no próprio âmago da vasta maquinaria da criação, da evolução cosmológica e da replicação cósmica.

[...] Ao avaliar o aparente milagre de um universo favorável a vida, devemos obviamente ficar céticos diante do pensamento ingenuamente otimista e das histórias “fantásticas”. Mas não devemos ser tão arredios às novas abordagens a ponto de deixar de saborear o espanto diante da capacidade quase miraculosa da ciência de penetrar mistérios que antes pareciam impenetráveis – o que foi perfeitamente captado pelo grande inovador britânico Michael Faraday ao repudiar o ceticismo a respeito de sua capacidade quase mágica de evocar o gênio da eletricidade introduzindo um imã numa bobina. Como disse Faraday: “Nada é maravilhoso demais para ser verdadeiro se for consistente com as leis da natureza [4]”.

Se a hipótese do Biocosmos Egoísta estiver correta, isso significa que não somos apenas a prole de poeira das estrelas, mas também os arquitetos de universos apinhados de estrelas que ainda virão. Isso significa que a física e a química prenunciam misteriosamente os detalhes da biologia de maneira muito específica e que a emergência a vida e da inteligência é um clímax previsível da impressionante, mas sem vida, sinfonia da natureza. Isso significa que, contra todas as expectativas, as leis impessoais da natureza forjaram de alguma forma – de maneira surpreendente e miraculosa – sua própria compreensão [5]. E, o que é ainda mais estranho, fizeram isso catalisando a evolução de um primata consciente num planeta obscuro que ousa sonhar que desvelará os segredos supremos de todo o universo.

***

[1] Eu particularmente não acho que o termo “egoísta” se enquadre bem dentro do conceito da teoria – até mesmo porque, como muitos biólogos hoje concordam, o altruísmo pode ser uma evolução das espécies –, mas como quem deu o título foi o autor, preferi mantê-lo assim mesmo.

[2] Ou seja, você não está enganado, essa teoria postula que todos nós somos literalmente “criadores de universos”, “universos em formação”, ou parte de uma inteligência que, quando plenamente evoluída, será capaz de gerar novos universos “bebês”. O curioso é que essa possibilidade teórica, que certamente soa como uma heresia para muitos espiritualistas – principalmente os mais ortodoxos –, para a cosmologia é tão somente uma possibilidade a ser considerada frente às evidências da natureza, como qualquer outra.
Certamente Gardner tem consciência de que tão cedo não poderemos saber se universos “bebês” podem mesmo ser criados ou não, mas é revigorante observar como o pensamento científico livre de dogmas pode operar quando aliado a nossa peculiar capacidade de imaginação.
Vale notar também que o autor da hipótese – cientista materialista – aposta numa evolução futura através da vida mecânica e da inteligência artificial... Mas, para quem compreende as possibilidades evolutivas da reencarnação através de todo o cosmos, é desnecessário recorrer às máquinas – nós mesmos já somos uma fornalha cósmica de potencialidades ainda insondáveis.

[3] A teoria de Gardner retira não somente o ser humano e o planeta Terra do centro do cosmos, mas postula que o próprio universo é apenas mais um universo dentre infinitos universos a “flutuar” num multiverso hipotético. Geralmente nossa cabeça entra em pane quando consideramos a imensidão de um universo, imagine se considerarmos infinitos universos em um cosmos infinito... Em todo caso, é tudo uma questão de escala, pois no fim o infinito é infinito – não faz sentido nos preocuparmos com suas dimensões.

[4] Ou, em outras palavras, o sobrenatural muitas vezes é apenas o natural ainda incompreendido pela ciência – embora em tantas outras seja apenas algo inexistente mesmo. Por isso é sempre válido utilizarmos o pensamento lógico e nos basearmos nas lições da natureza quando vamos avaliar áreas de conhecimento em que a ciência ainda não pode adentrar totalmente, ou não pode sequer começar a explicar seu mecanismo.

[5] Esse trecho me remeteu a célebre frase de Carl Sagan: “nós somos uma forma do cosmos conhecer a si mesmo”. De qualquer forma, é sempre curioso como os cientistas tem uma implicância com o termo “pessoal”. Muitas vezes, um ser pessoal pode ser classificado apenas como um ser consciente, ou um superintelecto consciente, que nada tem a ver com os deuses antropomórficos de inúmeras religiões... Talvez, todas elas tenham apreendido um pedacinho deste superintelecto, e onde não encontraram explicações para seus atributos, atribuíram-lhe características humanas.
Entretanto, afirmar que é a própria vida superevoluída do cosmos que tem o potencial de arquitetar e gerar novos universos “bebês” não resolve a questão primordial até mesmo óbvia: “e quem ou o que diabos arquitetou o multiverso?”

***

Crédito da imagem: Roger Johnston

Marcadores: , , , , , , , ,

20.8.10

O que é a vida?

Texto de James Gardner em "O universo inteligente" (Ed. Cultrix) – Trechos das pgs.53 a 55. Tradução de Aleph Eichemberg e Newton Eichemberg. As notas ao final são minhas.

Essa questão tem uma história sabidamente longa e turbulenta, estimulando poetas e céticos, filósofos e mecânicos quânticos, biólogos e místicos, a oferecer um desnorteante pot-pourri de explicações radicalmente diferentes. A vida é um fenômeno único e fundamentalmente diferente da não vida, opinou o filósofo francês Henri Bergson. Bergson teorizou que a vida é irresistivelmente impelida a níveis cada vez mais altos de realização evolutiva por uma misteriosa força vital (élan vital), que é inteiramente ausente na matéria não viva [1].

Absurdo, objetou o cético Robert Morrison. A palavra vida é apenas uma convenção lingüística que empregamos para descrever uma classe especial de objetos materiais que têm algumas incomuns características termodinâmicas e comportamentais. Além do fato de partilharem certas propriedades, as coisas vivas são indistinguíveis de pedras sem vida:

“A vida não é uma coisa ou um fluido mais do que o calor o é. O que observamos são alguns conjuntos incomuns de objetos separados do resto do mundo por certas propriedades peculiares, como crescimento, reprodução e maneiras especiais de lidar com a energia. Esses objetos, escolhemos chamar de coisas vivas [2]”.

A arma secreta da vida, concluiu o pioneiro da física quântica Erwin Schrödinger num livro intitulado What Is Life? [O Que é a Vida?], é sua capacidade única de metabolizar: exportar desordem para o ambiente circundante em forma de calor irradiado e excrementos enquanto importa ordem desse ambiente em forma de alimento e energia [3].

[...] O livro de Schrödinger foi uma inspiração para toda uma geração de cientistas que criaram, basicamente a partir do zero, o enorme empreendimento científico hoje conhecido como biologia molecular. Em particular, Schrödinger antecipou e inspirou a épica façanha de James Watson e Francis Crick: a descoberta da estrutura do DNA.

[...] Watson revelou que foi a conjectura de Schrödinger que inspirou seu insight:

“Schrödinger argumentou que a vida pode ser pensada em termos de armazenamento e transmissão de informações biológicas. Os cromossomos seriam assim meros portadores de informação... o livro de Schrödinger teve muita influência. Muitos dos que seriam os principais atores do Primeiro Ato do grande drama da biologia molecular, inclusive Francis Crick (ele mesmo um ex-físico), leram What Is Life? e ficaram impressionados, como eu”.

Watson tirou uma importante conclusão filosófica de sua descoberta do fundamento molecular da vida e da hereditariedade: que a vida não é tão diferente assim da não vida, e que a matéria viva não abriga segredos inerentemente impenetráveis:

“Nossa descoberta põe fim a um debate tão antigo quanto a espécie humana: Será que a vida tem alguma essência mágica, mística, ou é, como qualquer reação química produzida numa aula de ciências, o produto de processos físicos e químicos normais? Haverá alguma coisa divina numa célula que a traga a vida? A dupla hélice respondeu a essa pergunta com um definitivo Não”.

Ironicamente, seu mentor intelectual (Schrödinger) chegou precisamente à conclusão oposta em What Is Life?, ao observar que a característica que define a vida – sua capacidade para produzir e prolongar a existência de uma ilha de ordem contínua, incessantemente fustigada por um mar de aleatoriedade e de desordem movida a entropia – é uma forte evidência da existência de um “novo tipo de lei física” que governa o comportamento da matéria viva [4].

***

[1] Mesmo antes da descoberta do DNA, muitos filósofos antigos e recentes têm concebido esta idéia de uma força vital a impulsionar os seres a evoluir. Schopenhauer, por exemplo, fala em uma força que nem sempre está interessada em nossa felicidade – tudo o que ela “deseja”, em realidade, é garantir a procriação da espécie. Desnecessário dizer que muitos biólogos evolutivos concordam com ele.

[2] Há muitos que se dizem materialistas, crendo que isso significa simplesmente que não crêem em espíritos ou assombrações. Outros acham que ser materialista significa dar grande valor a bens materiais e riquezas, etc. Não, ser materialista significa crer que apenas a matéria já detectada explica todo o funcionamento da vida e da consciência. Sim, detectamos apenas em torno de 4% da matéria do universo, os materialistas têm uma fé enorme nesta aposta... Dito isso (e também considerando que nem todos os céticos são materialistas), para reduzirmos seres a coisas, consciências a máquinas biológicas, antes é preciso comprovar que coisas ou máquinas são capazes de interpretar informações e elaborar respostas morais e emocionais em geral, ao invés de apenas computar informações e/ou imitar comportamentos de seres que consideramos vivos. Para começar, seria bom alguma máquina finalmente passar no teste de Turing.

[3] Geralmente se considera esse mecanismo anti-entrópico singular dos seres vivos apenas no campo da ordem do organismo em si. Se fomos pensar em toda a ordem de armazenamento de informações no cérebro, independente de entropia “exportada” para fora do corpo, temos uma outra grandeza de ordem a ser analisada. Poucos cientistas pensam nisso...

[4] Moral da história: “Pouca ciência afasta, muita ciência aproxima”... De que afasta? De que aproxima? De Deus (seja como for), do Cosmos, dos mistérios ainda insondáveis da natureza, daquilo que somente os grandes gênios da ciência ousam considerar...

***

Crédito da imagem: Bill Varie/Corbis

Marcadores: , , , , , , ,

18.8.10

O homem que se lembra do céu

Texto de Nicolas Grimaldi em "Sócrates, o feiticeiro" (Edições Loyola) – Trechos das pgs.7 a 10. Tradução de Nicolás Nyimi Campanário. As notas ao final são minhas.

“Quando o servidor trouxe a taça de veneno que acabara de preparar, Sócrates olhou-o, como era de seu costume, um pouco por baixo com seus olhos de touro e perguntou-lhe se com esse veneno ele poderia fazer uma libação a uma divindade.” Fédon, 117 b

Sócrates era um feiticeiro. O testemunho é do próprio Platão. “Ouvindo-lhe”, diz-lhe Mênon, “parece que fui drogado. Tu me enfeitiçastes tão bem que não sei mais o que penso”. Essa magia constituía o charme de Sócrates. Ele encantava. O efeito de suas palavras era tão arrebatador quanto a música. Como se tratasse de um transe dionisíaco, era-se possuído. Alcibíades confessava não poder ouvi-lo sem ficar totalmente a sua mercê. Acusá-lo de feitiçaria era reconhecer-lhe o poder, do mesmo modo que aqueles que o admiravam. E, com efeito, designando-o em As nuvens como o mais célebre dos sofistas, Aristófanes não mostrava um Sócrates capaz de persuadir qualquer um sobre qualquer coisa? [1] Ora, vangloriando-se de ser capaz de fazer qualquer pessoa perder o sentido da realidade, de fazê-la experimentar o falso como mais evidente que o verdadeiro e o real como mais inconsistente que o irreal, a sofística também era uma feitiçaria. Até mesmo os discípulos que viam em Sócrates o mais cáustico crítico dos sofistas não deixavam de reconhecê-lo, eles também, como uma espécie de feiticeiro, de mágico ou de xamã [2]. Quando Sócrates tem apenas algumas horas a mais de vida, ou alguns momentos, é menos o desaparecimento de seu amigo que Fédon lamenta que a perda do encantador: “Onde encontraremos um mágico tão perfeito depois que nos abandonares?”

E, contudo, esse xamã, esse feiticeiro, sempre é o ponto de referência como o próprio exemplo do que deve ser um filósofo [3]. Ele não apenas parece ter encarnado o modelo humano de filósofo, mas além disso nos faz remontar a origem da filosofia à sua maneira de pensar e de argumentar. O que precisamos tentar compreender é por que o primeiro dos lógicos, o inventor da dialética praticou filosofia como uma feitiçaria.

[...] O que torna Sócrates um feiticeiro é, em primeiro lugar, o fato de ele ser um curandeiro. A maior parte dos males que afetam o corpo, explica ele a Cármides, se originam na alma; mas “a alma só pode ser curada por meio de discursos que agem como encantamentos”. Sócrates pretendia livrar a alma se suas dores unicamente com a magia de suas palavras, como as parteiras que recorrem a drogas para aliviar as dores das parturientes. [...] Fédon ficava maravilhado, sentindo gratidão: “Como soube nos curar!”. [...] O segundo [traço] é devolver cada um a si mesmo ao restaurar o sentido de sua identidade. Isso é o que Sócrates faz tanto com Alcebíades como com aqueles cujos tormentos ele evoca no Teeteto. O terceiro traço característico de um xamã é ser habitado por espíritos ou escolhido por alguma divindade. Ora, há divindades que aparecem nos sonhos de Sócrates para anunciar-lhe o futuro ou para exortá-lo à poesia. É por se sentir investido pelos deuses de uma missão de justiça que Sócrates interroga, questiona, e põe à prova a competência de que se vangloriam os notáveis atenienses. É também um espírito divino, um demônio [4], uma voz sobrenatural que o contém quando ele poderia se desviar do destino que lhe foi atribuído pelos deuses. Quanto a permanecer em sua cela e ali esperar a morte em vez de fugir, não apenas as Leis em uma célebre prosopopéia o comprometeram a isso, mas também o que o próprio Deus lhe prescreve [5].

Há por fim um quarto traço característico em que se reconhece o poder sobrenatural de um xamã: poder libertar-se de sua existência corporal, às vezes conhecer o êxtase, e “elevar-se aos céus porque já esteve lá”. Ora, não há temas mais constantes que esses nos discursos socráticos. Preparar-se, por meio de todos os tipos de exercícios ascéticos, para desatar os nós que mantêm a alma vinculada ao corpo, chegar gradativamente até a insustentável visão do absoluto não são a base do ensinamento do Fédon e da República? Por fim, a metáfora ascendente, a oposição entre as aparências de baixo e as realidades lá de cima não teriam sido tão pesadamente ridicularizadas por Aristófanes nas Nuvens se elas não tivessem sido, notoriamente, tão repetitivas nos discursos de Sócrates [6].

***

[1] Se ainda existem críticos céticos em relação à própria existência de Sócrates enquanto ser real – e não apenas um personagem da obra de Platão –, é principalmente devido à obra de Aristófanes, ironicamente uma sátira de Sócrates, e também ela mesmo uma crítica, que hoje podemos ter evidências fortes de que ele realmente existiu. Foi satirizando ao grande filósofo que nada deixou escrito que Aristófanes nos deixou o legado da confirmação de que “algum Sócrates existiu”.

[2] É muito comum encontrar críticos que se opõe a filosofia das idéias de Sócrates afirmarem que ele era um dos maiores sofistas, senão o maior. Ocorre que, antes é preciso indagar-se: e será que tais críticos realmente compreenderam a filosofia de Sócrates? Eu, de minha parte, posso afirmar que é praticamente impossível compreendê-la apenas no campo da linguagem e da teoria – é preciso vivenciá-la!

[3] O que é o grande paradoxo da filosofia moderna: elevar Sócrates ao patamar de precursor da filosofia ocidental, para depois ignorar solenemente o fato de que ele foi um místico – não no sentido metafórico ou estrito a linguagem, mas no sentido real e objetivo. Ele foi um iniciado nos Mistérios de Elêusis e em inúmeros outros, além de citar constantemente o Oráculo de Delfos como catalisador de sua busca pela sabedoria. Mas, e o que os “filósofos modernos” sabem sobre isso? Muito pouco, quase nada... Eis o paradoxo.

[4] Para os gregos da época demônios (daemons) eram espíritos que faziam uma espécie de intercâmbio de informações entre o reino dos homens e o reino divino. Poderiam ser bons ou maus, sendo que os que influenciavam Sócrates poderiam ser comparados, em realidade, ao que hoje chamamos de anjos ou arcanjos. Claro que os mesmos seres que deturparam esse conhecimento irão prontamente discordar.

[5] Sócrates não fugiu da prisão, Buda fugiu de seu palácio, Jesus não fugiu da cruz. Seres de consciência elevada que vem a Terra geralmente colocam sua missão acima da própria vida – inclusive por compreenderem que sua vida perdurará e que a missão é o que importa.

[6] É interessante como nesse livro curto e escrito de forma brilhante, Grimaldi tenha exposto inúmeras evidências de que Sócrates era um xamã, edificando a concepção de uma filosofia das idéias, para ao final tentar desconstruí-la com uma filosofia secundária atribuída ao próprio Sócrates no livro Parmênides. Ocorre que, para compreender o Parmênides, Grimaldi teria de deixar a filosofia de lado, e adentrar a religião. Pois o Uno que está em discussão não é apenas uma teoria lógica edificada em números e geometria, mas a própria essência do problema da origem das coisas, do "porque existe algo, e não nada". Não deixa de ser um bom exemplo da perplexidade que Sócrates provoca até hoje na filosofia moderna.

***

Crédito da imagem: parte da pintura de Raphael Sanzio para a Sala da Assinatura no Vaticano (percebam que enquanto Platão aponta para os céus desconhecidos, Aristóteles prefere permanecer no solo conhecido - o último remete a ciência e a racionalidade, e o primeiro remete a religião e a intuição, sendo que tais conceitos jamais foram mutuamente excludentes)

Marcadores: , , , , , ,

9.8.10

Pornografia científica

Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.443 a 446. Tradução de Claudio Angelo. As notas ao final são minhas.

[Alguns trechos do livro trazem um diálogo entre dois personagens fictícios, I.M. é uma espécie de crítico das idéias expostas no livro, enquanto que M.E. é uma espécie de heterônimo que reúne o pensamento de ambas as autoras:]

I.M.: Então quais são as implicações morais da visão de vocês [1]?

M.E.: Biólogos que abordam a hereditariedade e a evolução de maneiras diferentes em geral têm valores e objetivos sociais parecidos. A maioria se opõe ao racismo; a maioria quer um mundo melhor e mais justo, e assim por diante. O grande problema é a imagem pública das diversas idéias biológicas [2]. Como muitos biólogos enfatizam o aspecto genético do comportamento humano, seus pontos de vista muitas vezes são interpretados de forma a levar à crença generalizada de que comportamentos comuns (em geral repreensíveis) são “genéticos”, “naturais” e, como doenças monogenéticas simples, inevitáveis. Isso é bobagem, mas é a maneira como as ideais dos biólogos são percebidas, e a maioria deles não faz nada para mudar essa percepção [3].
Uma visão mais ampla da hereditariedade e da evolução torna explícitos a riqueza de possibilidades abertas diante de nós e o fato de que nossas atividades, como indivíduos ou grupos, constroem o mundo em que vivemos [4]. Especificamente, reconhecer que temos uma história e podemos planejar o nosso futuro, que somos capazes de construir mundos imaginários compartilhados e explorá-los e persegui-los sistematicamente expande em muito a nossa liberdade. A plasticidade do comportamento humano é imensa. Com base no conhecimento atual, ninguém pode negar o poder da construção social histórica e explicar o status quo comportamental e social apenas em termos de genes e memes. Não podemos transferir o poder e a responsabilidade explanatórios para essas entidades!

I.M.: Isso é uma critica da sociobiologia humana, não é?

M.E.: Isso é uma crítica de “persona pública” dessa disciplina, o que em grande parte é culpa dos sociobiólogos. Queremos ser justas e claras: a maioria dos sociobiólogos não acredita que sejamos escravos dos nossos genes. O problema é que alguns deles tendem a promover uma imagem pública vulgar de “tendências” geneticamente determinadas [5]. Para isso eles ridicularizam seus oponentes, erguendo espantalhos e destruindo-os em triunfo, interpretando cada padrão de comportamento, da piada ao estupro, como manifestação de uma adaptação evoluída selecionada em algum momento do passado. O livro A natural history of rape [Uma história natural do estupro], de Thornhill e Palmer, é um exemplo perfeito desse gênero.
Eles não afirmam não ser possível sobrepujar a manifestação de um comportamento como a propensão ao estupro, mas sugerem que isso é muito difícil por se tratar de um comportamento embutido num módulo mental que evoluiu [6]. Nem é preciso dizer que não existe nem sombra de evidências para essas alegações evolutivas. São apenas histórias inventadas [just so stories].
[...] Eles estão sugerindo que é impossível mudar a tendência comportamental por meio de educação e mudança social? Com certeza os defensores dessas visões diriam que não. Diriam que, ao contrário, esses fatores ajudam a saber como moldar a sociedade e educar as pessoas para que elas superem os problemas associados ao lado desagradável de nossos comportamentos evoluídos. Mas ninguém nos diz como construir uma sociedade na qual tendências ao estupro evoluídas geneticamente não possam se manifestar. Essas pessoas e suas obras não trazem nada de significativo além de descrições suculentas e vendáveis de comportamentos sexuais e um punhado de platitudes sobre como evitar ou controlar impulsos inadequados – por exemplo, dando cursos de comportamento sexual a adolescentes do sexo masculino antes que eles aprendam a dirigir ou aconselhando mulheres jovens a se vestirem com discrição (ninguém defendeu ainda a adoção do cinto de castidade masculino).
Há pouco conteúdo real nessa pornografia “científica” soft. Este é um exemplo extremo, claro; Nem todas as histórias sociobiológicas humanas são tão vazias. O problema é que a oposição a elas não é tão forte quanto deveria ser nas fileiras de sociobiólogos mais sérios. [...] E suas versões vulgarizadas são muito populares.

I.M.: Porque elas são tão populares? Que tipo de necessidade elas satisfazem? Talvez isso possa dar uma pista sobre o tipo de visão de mundo que elas refletem.

M.E.: É provável que não exista só uma resposta. Talvez elas satisfaçam uma necessidade de pensar em termos de causas únicas, como na física clássica. Como as leis de Newton explicam os movimentos dos corpos celestes, os genes mendelianos explicariam o comportamento humano. A complexidade é explicada de uma forma simples e científica. Mas há um outro lado nesse fascínio com os genes. Os genes são vistos como elos com nosso passado distante, com os nossos ancestrais, que nos governam de uma maneira irracional e misteriosa.
Há algo de muito romântico nessa noção – na eterna força escura e profunda dos genes a nos guiar [7]. E essa combinação peculiar do romântico com o científico é incorporada a muitas das histórias evolutivas dos sociobiólogos. Talvez seja isso o que torne essas explicações baseadas nos genes tão atraentes para as pessoas [8].

***

[1] A teoria exposta pelas autoras ao longo do livro identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir. Veja também meu comentário em outro trecho do livro publicado neste blog – “Astrologia genética”.

[2] É interessante como eu, que nem sou cientista, muitas vezes sou confundido com um em discussões online, apenas porque me mantenho algo informado sobre a divulgação científica mais atual. Talvez seja sorte em escolher os autores certos, mas acredito que no geral as pessoas mal se esforçam para ler sobre ciência – ao primeiro cientista (ou pseudo-cientista) que lhes traz uma teoria que combine com sua visão de mundo, dão-se já por satisfeitas... É mais ou menos por isso que muitos crêem piamente que os memes de Dawkins explicam a evolução não-física, quando em realidade os memes são muito mais entidades místicas do que elementos genuinamente científicos.

[3] Ou seja: quem não gosta de vender livros? Escreva o que o povo quer ler, ou invente uma nova teoria mirabolante baseada em genes, e venderá bem... Ocorre que raramente essa prática auxilia no desenvolvimento de nosso conhecimento e nossa ciência em geral, por razões óbvias.

[4] Não posso deixar de citar o Chefe Seattle: “Sabemos que a terra não pertence ao homem. O homem pertence à terra. Todas as coisas são interligadas, como o sangue que nos une. O homem não tece a teia da vida – ele é apenas um fio dela. O que fizer à teia, fará a si mesmo.”

[5] Esta é a atual ilusão persistente do determinismo. Anteriormente este papel já coube a deusa Fortuna (e mitos similares), depois a “mão de Deus”, depois aos governantes totalitários (que se diziam infalíveis e/ou representantes divinos), e hoje cai na conta do genecentrismo. Isso é mais sério do que parece, pois somos “educados” pela mídia a pensar que os genes determinam muito do que somos ou iremos ser, embora nem científico isso seja (e mesmo que fosse, a ciência tampouco é infalível).

[6] O pior de tudo é que essas teorias se valem de conceitos de psicologia evolutiva que podem fazer sentido, mas que devem ser analisados de maneira bem mais ampla e profunda... Por exemplo, em “A pré-história da mente” o arqueólogo Steven Mithen argumenta que os hominídeos pré-humanos apresentaram variadas gradações de módulos de inteligência – a inteligência geral, a naturalista, a técnica e a social. Porém, somente nos homo sapiens esses módulos da mente se unificaram em um único grande conjunto, de modo a possibilitar o surgimento da cultura, da arte e da religião humanas. Desnecessário dizer que o estudo de Mithen é muito mais profundo do que essas teorias de “módulos do estupro”.

[7] Eis que, mesmo num mundo científico-materialista, o lado misterioso, os antigos mitos e arquétipos continuam forçando-se adentro da imaginação humana. Ocorre que pode ser bastante perigoso lidar com eles no campo errado – não se trata de uma ciência exata e racional, mas de uma experiência que deve ser compreendida em seu contexto correto. Obviamente que a maior parte de nós já se perdeu desse contexto há muito tempo; mesmo os que se dizem religiosos muitas vezes rezam na verdade para o deus do consumo, e são tão materialistas quanto muitos ateus.

[8] “O gene da fé”, “o gene da racionalidade”, “o gene do bom humor”, “o gene da homossexualidade”, etc. – e o que seria tudo isso senão um politeísmo genecêntrico? Mas, se a “ciência” diz que sim, quem dirá que não?

***

Crédito da foto: Divulgação/"This Ain't Star Trek XXX"

Marcadores: , , , , , , , , , ,

27.7.10

Poemas vivos

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

Manuel Bandeira (poema "Preparação para a morte")

***

A morte não é nada.
Apenas passei ao outro mundo.
Eu sou eu. Tu és tu.
O que fomos um para o outro ainda o somos.

Dá-me o nome que sempre me deste.
Fala-me como sempre me falaste.
Não mudes o tom a um triste ou solene.
Continua rindo com aquilo que nos fazia rir juntos.

Reza, sorri, pensa em mim, reza comigo.
Que o meu nome se pronuncie em casa
como sempre se pronunciou.

Sem nenhuma ênfase, sem rosto de sombra.

A vida continua significando o que significou:
continua sendo o que era.
O cordão de união não se quebrou.
Porque eu estaria fora de teus pensamentos,
apenas porque estou fora de tua vista?

Não estou longe,
Somente estou do outro lado do caminho.
Já verás, tudo está bem.
Redescobrirás o meu coração,
e nele redescobrirás a ternura mais pura.
Seca tuas lágrimas e se me amas,
não chores mais.

Atribuído a Sto. Agostinho

***

Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro,
Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,
Os Deuses despem-te mais:
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês que são teus iguais.

A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não estás morto, entre ciprestes.
Neófito, não há morte.

Fernando Pessoa (poema "Iniciação")

***

Sob a impressão de tais poemas, espero conseguir extrair do Alto a inspiração necessária para a próxima série de artigos – Quase Morte...

Crédito da foto: vribeiro

Marcadores: , , , , , , , , ,

9.7.10

Sobre quem os mitos falam?

Queremos pensar em Deus.

Deus é um pensamento. Deus é uma idéia.

Mas a sua referência é algo que transcende o pensamento. Ele existe além da existência...
Além da categoria de ser ou não ser.
Ele existe ou não?

Nem existe, nem não existe.

Qualquer deus, qualquer mitologia ou qualquer religião são verdadeiros nesse sentido...
Assim como uma metáfora do mistério humano e cósmico.

Quem pensa que sabe, não sabe.
Quem sabe que não sabe, este sim, sabe.

Há uma velha história que ainda é válida. A história da busca. Da busca espiritual...
Que serve para encontrar aquela coisa interior que você basicamente é.

Todos os símbolos da mitologia se referem a você.

Você renasceu? Você morreu para a sua natureza animal e voltou à vida como uma encarnação humana?

Na sua mais profunda identidade, você é Deus.
Você é um com o ser transcendental.

Texto de Joseph Campbell para a introdução da última entrevista de "O Poder do Mito", sobre "As Máscaras da Eternidade".

***

Crédito da foto: drona

Marcadores: , , , , , , ,

13.6.10

Newton, Einstein e Deus

Texto de Marcelo Gleiser no Caderno Mais! da Folha de São Paulo. Baseado em uma versão mais completa, publicada em inglês no blog 13.7: Cosmos and Culture. Retirado do blog de Alam Kenjiminowa. As notas ao final são minhas.

Talvez isso surpreenda muita gente, mas tanto Newton quanto Einstein, sem dúvida dois dos grandes gigantes da física, tinham uma relação bastante íntima com Deus.

É bem verdade que o que ambos chamavam de "Deus" não era compatível com a versão mais popular do Deus judaico-cristão [1].

Numa época em que existe tanta disputa sobre a compatibilidade da ciência com a religião, talvez seja uma boa ideia revisitar o pensamento desses dois grandes sábios.

No epílogo da edição de 1713 de sua obra prima "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural" (1686), Newton escreve que o seu Deus (cristão, claro) era o senhor do Cosmo e que deveria ser adorado por estar em toda a parte, por ser o "Governante Universal". Essa visão de Deus pode ser considerada panteísta, se entendermos por panteísmo a doutrina que identifica Deus com o Universo ou que identifica o Universo como sendo uma manifestação de Deus [2].

A visão que Einstein tinha de Deus, devidamente destituída da conotação cristã, ecoava de certa forma a de Newton. Einstein desprezava tudo o que dizia respeito à religião organizada, em particular a sua rígida hierarquia e ortodoxia [3].

Para ele, um Deus que se preocupava com o destino individual dos homens não fazia sentido. Sua visão era bem mais abstrata, baseada nos ensinamentos do filósofo Baruch Spinoza, que viveu no século 17. Numa carta dirigida a Eduard Büsching, de 25 de outubro de 1929, Einstein diz: "Nós, que seguimos Spinoza, vemos a manifestação de Deus na maravilhosa ordem de tudo o que existe e na sua alma, que se revela nos homens e animais" [4].

Em 1947, numa outra carta, Einstein escreveu: "Minha visão se aproxima da de Spinoza: admiração pela beleza do mundo e pela simplicidade lógica de sua ordem e harmonia, que podemos compreender".

Como essas posições podem ser usadas no debate sobre a compatibilidade da ciência com a religião?

De um lado, ateus radicais como Richard Dawkins, Christopher Hitchens e Sam Harris argumentam que não pode haver uma compatibilidade, que a religião é uma ilusão que precisa ser erradicada, que o sobrenatural é uma falácia [5].

De outro, existem vários cientistas que são pessoas religiosas e até mesmo ortodoxas, e que não veem qualquer problema em compatibilizar seu trabalho com a sua fé. O fato de existirem posições tão antagônicas reflete, antes de mais nada, a riqueza do pensamento humano. Nisso, vejo um ponto de partida para uma possível conciliação [6].

É verdade que o ateísmo radical está respondendo a grupos fundamentalistas que tentam evangelizar instituições públicas. "Guerra é guerra e devemos usar as mesmas armas", ouvi de amigos. Mas o pior que um fundamentalista pode fazer é transformar você nele.

Einstein e Newton encontraram Deus na Natureza e viam a ciência como uma ponte entre a mente humana e a mente divina.

Para eles, adorar a Natureza, estudá-la cientificamente, era uma atitude religiosa. Acho difícil ir contra essa posição, seja você ateu ou religioso. Religiões nascem, morrem e se transformam com o passar do tempo [7]. Mas, enquanto existirmos como espécie, nossa íntima relação com o Cosmo permanecerá.

***

[1] Como sempre digo por aqui, raramente algum livre-pensador terá a mesma visão de Deus que outro. Somente os que seguem dogmas, ou os que atacam ferozmente os dogmas, têm uma visão ou um conceito mais homogêneo do que quer que seja Deus.

[2] Muitos teístas criticam o panteísmo afirmando que Deus não pode ser a mesma coisa que sua obra, assim como uma pintura não é a mesma coisa que um artista. Porém, se a pintura é a manifestação do artista, o universo pode ser a manifestação de Deus. Um panteísta pode achar que absolutamente toda a natureza é sagrada, portanto, mas não quer dizer que afirme que Deus é limitado ao universo. Até mesmo porque do nada, nada se faz, e daí se tira - pela lógica - que Deus é "algo mais do que o tudo".

[3] Por "religião organizada e/ou ortodoxia", leia-se Igreja (ekklesia). A religiosidade, ou Religião (religare), é muito mais do que isso.

[4] O belíssimo conceito que Espinosa (eu prefiro usar seu nome latino) fazia de Deus é resumido no primeiro capítulo de sua "Ética". Mas talvez possa ser resumido ainda mais na frase "uma substância não pode criar a si mesma". O Deus de Espinosa é tão somente - pela lógica - a Primeira Substância, da qual tudo o mais se irradiou.

[5] Vale lembrar que inúmeras doutrinas religiosas concordam que o sobrenatural não existe. Complexo, entretanto, é afirmar que já sabemos tudo sobre o natural - obviamente ainda nos falta muito a desvendar.

[6] Eu certamente não concordo com muitas crenças ou descrenças de Gleiser, mas isso não me impede de admirá-lo por sua inteligência e bom senso, além é claro do trabalho exemplar na divulgação científica. Muitas vezes a discussão sobre a existência de Deus é absolutamente inútil, é quando um "deus-barreira" serve apenas para se interpor entre o entendimento dos seres. Busquemos então o ponto de encontro, e não um debate infindável sobre a discórdia.

[7] As Igrejas (ekklesia) são fundadas e esquecidas, é verdade. A Religião (religare), porém, é sempre um mesmo caminho. Caminho talvez infinito, mas que é trilhado por cada um, e não há sábio ou cientista que possa fazê-lo por você...

***

Crédito da imagem: Guto Lacaz (exposição "Einstein no Brasil")

Marcadores: , , , , , , , , , , ,

9.6.10

A comunicação simbólica como sistema de herança

Texto de Eva Jablonka e Marion J. Lamb em "Evolução em quatro dimensões" (editora Cia. das Letras) – Trechos das pgs.241 a 245. Tradução de Claudio Angelo. As notas ao final são minhas.

Nós já sugerimos que nossa capacidade de se comunicar por meio de símbolos está na raiz de muitas das coisas que nos tornam tão diferentes de outros animais [1]. Os seres humanos têm um método único de transmitir e adquirir informação. O que queremos agora é examinar o sistema de comunicação simbólica de um ponto de vista mais focal, o do sistema que fornece uma quarta dimensão à hereditariedade e à evolução. Queremos tentar caracterizar esse sistema especial de herança da mesma forma como fizemos com os sistemas genético, epigenético e comportamental e ver o quanto ele é similar a cada um desses sistemas [2].

Existe pelo menos uma semelhança superficial entre a maneira como transmitimos informação através da fala e a maneira como os animais usam seus diversos cantos e chamados, então será que o sistema simbólico funciona da mesma maneira que o sistema de herança comportamental? Ou será mais parecido com o sistema genético? O DNA é chamado de “linguagem da vida”, e dizemos que nossas características estão “escritas nos genes”, portanto deve haver semelhanças óbvias entre os dois sistemas. Quais são elas? Que traços o sistema simbólico compartilha com outros sistemas de transmissão de informação, e o que o torna tão diferente e especial?

Existe uma propriedade importante compartilhada pelos sistemas genético e simbólico, mas que está ausente na herança comportamental. Símbolos e genes podem transmitir informação latente, ao passo que a informação precisa ser usada antes de ser transmitida ou adquirida por meios comportamentais. É fácil ver isso se pensarmos como um canto ou uma dança são transmitidos. Consideremos três casos: transmissão através do sistema genético, transmissão através do sistema comportamental e transmissão através do sistema simbólico. Para o exemplo genético, podemos usar as moscas-das-frutas do gênero Drosophila, que têm cantos e danças muito bonitos. As canções são entoadas pelos machos, que produzem-nas vibrando as asas (...) Cada espécie tem cantos e danças característicos, que permitem às moscas identificarem a própria espécie. Esses cantos e danças são inatos e sabe-se um bocado sobre sua genética, mas o ponto importante é que eles serão herdados mesmo que os pais nunca cheguem a executá-los (talvez porque um cientista malvado tenha arrancado suas asas) (...) Em outras aves e mamíferos, no entanto, o canto deve ser executado na frente dos indivíduos para que eles possam aprendê-lo. Somente ouvindo um canto é que os indivíduos poderão obter a informação que lhes permitirá reproduzi-lo. Em outras palavras (...), não existe informação latente que possa pular gerações.

Isso não acontece com a transmissão através do sistema simbólico. Seres humanos podem transmitir uma canção ou dança uns para os outros mesmo que sejam desafinados ou tenham dois pés esquerdos. Não é preciso cantar uma nota ou dar um passo de dança, pois podemos transmitir a informação necessária para a reprodução de uma canção ou de uma dança usando discos ou filmes, ou mesmo com instruções escritas ou orais. Não é preciso agir de imediato em cima de informações simbólicas para que elas sejam transmitidas. Ainda que a cultura capaz de interpretá-las permaneça intacta, elas podem permanecer latentes por gerações [3]. As informações para construir o Terceiro Templo têm sido transmitidas entre os judeus por quase 2 mil anos, mas o templo ainda não foi construído. E a receita da sopa da vovó pode ser passada entre várias gerações de uma família até que alguém resolva preparar a sopa de novo.

Os sistemas genético e simbólico são parecidos porque ambos podem transmitir informação latente, mas o sistema simbólico pode fazer muito mais do que isso. Como símbolos são convenções compartilhadas – signos socialmente pactuados –, eles podem ser mudados e traduzidos em outras convenções correspondentes. Teoricamente, seu potencial de tradução é ilimitado. Uma instrução em inglês que seja dada em letras romanas também pode ser dada em código Morse, num semáforo ou em código binário de computador. Os símbolos podem até mesmo ser “traduzidos” entre sistemas: a idéia de Jesus na cruz pode ser expressa em linguagem, em imagens, na dança e em mímica. “Perigo” pode ser expresso por uma palavra, uma imagem, um assobio. Uma história pode ser transmitida oralmente depois de ser decorada; pode ser transmitida também por meio de uma canção ou pantomima; pode ser transmitida por escrito; e, hoje em dia, pode ser transmitida também através de filmes, TV e jogos de computador. Assim, embora a informação simbólica seja como a informação genética no sentido de que é codificada e traduzível, o potencial de tradução da informação simbólica é muito maior que o da informação no sistema genético. Já que podemos “traduzir” símbolos de uma forma para outra e separar e combinar diferentes formas e níveis seguindo princípios gerais de coerência, é enorme a quantidade de informação simbólica que pode ser gerada.

(...) [Porém], a informação simbólica é muitas vezes transmitida de adultos para crianças com quem eles não têm parentesco (como na escola), de crianças a adultos e entre indivíduos da mesma faixa etária [4]. Nesse ponto, o sistema simbólico se parece com o sistema comportamental de outros animais. Mas há uma diferença significativa: instruções ativas são importantes nos sistemas de transmissão simbólica. Em outros animais, o aprendizado social em geral não envolve ensinamento intencional, mas para os humanos este é essencial, pois é o próprio sistema simbólico, e não apenas a cultura local que ele produz, que precisa ser culturalmente adquirido [5]. Por exemplo, embora as pessoas discutam o papel do aprendizado e o tipo de aprendizado envolvido, ninguém duvida de que é necessário muito aprendizado para uma criança compreender e usar a linguagem. A necessidade de aprendizado e instrução é vista ainda com mais clareza em outros tipos de sistema simbólico: nos ensinam o sistema simbólico da leitura, nos ensinam o sistema simbólico da matemática, nos ensinam como entender e participar dos rituais da nossa cultura. O arcabouço necessário para a interpretação das informações simbólicas precisa ser aprendido.

***

[1] A teoria exposta pelas autoras ao longo do livro identifica quatro “dimensões” – quatro sistemas de herança que desempenham um papel na evolução: a genética, a epigenética (ou transmissão de características celulares, alheias ao DNA), a comportamental e a simbólica (transmissão através da linguagem e de outras formas de comunicação). Elas argumentam que esses sistemas são capazes de fornecer variações sobre as quais a seleção natural pode agir. Veja também meu comentário em outro trecho do livro publicado neste blog – “Astrologia genética”.

[2] Nada expõe de forma mais contundente a importância da capacidade de interpretar símbolos entre os seres humanos do que os casos de crianças selvagens – perdidas ou abandonadas em áreas selvagens e “criadas” por animais selvagens. Como no caso de Amala e Kamala, “criadas” por lobos em florestas da Índia, onde foi constatado que, após serem “salvas”, elas eram em realidade “pouco mais do que lobos”. Entretanto, vale também lembrar que o ser humano é um ser de potencialidades, e suas potencialidades de consciência e interpretação simbólica, uma vez despertas, o colocam sempre muito acima dos outros animais (que não têm tais potencialidades).

[3] Exemplos pela história não faltam. Os evangelhos de Nag Hammadi, encontrados em vasos séculos e séculos após terem sido escritos, nos trouxeram preciosidades como “O evangelho de Tomé”. Já o conhecimento contido nos manuscritos da Biblioteca de Alexandria, no entanto, infelizmente não teve a mesma sorte, e foi perdido em fogueiras acesas por seres ignorantes.

[4] Para o sistema simbólico a hereditariedade é apenas uma das formas de transmissão. Nesse sentido, ele é muito mais abrangente do que o genético, enquanto ainda tem muito mais possibilidades de transmissão e tradução que o comportamental. Não é difícil deduzir, diante dessa reflexão, que ele é o sistema de evolução da informação mais completo que conhecemos.

[5] A educação é, portanto, o cerne do desenvolvimento humano. Por isso verificamos que todos os sábios se preocuparam tanto em desenvolver as potencialidades de seus discípulos, ainda mais do que deixar manuscritos para a posteridade. É que eles sabiam que o sistema simbólico se transmite muito mais pela interpretação e pela compreensão do que pela escrita, que é apenas uma ferramenta da mente.

***

Crédito da imagem: Liz_D.S

Marcadores: , , , , , , , ,