As mesas giram, mas não pensam
Eu (Raph), Igor Teo, Peterson Danda, Raphael PH e Jeff Alves, antigos membros do Links Mayhem, estamos participando de um novo projeto: Sobre um tema específico cada um dos participantes irá publicar um texto, em uma ordem estabelecida aleatoriamente, formando uma discussão, um agradável bate papo, onde o leitor será levado a refletir e meditar sobre diversos pontos de vista e abordagens do mesmo tema. Eis então o projeto Entrementes. Boa leitura!
O tema da segunda rodada é “Mediunidade”, e coube a mim o artigo inicial [1]...
Como já falei bastante sobre o tema em meu blog [2], optei por abordar aqui a mediunidade sob outro ponto de vista. Digamos que você não acredita em espíritos, ou em consciências incorpóreas. Digamos que você não acredita em vida após a morte e que, acerca da existência de Deus, não pode conceber nada de muito concreto. Então, neste caso, a mediunidade seria o último assunto que deveria lhe interessar, correto? Pois continue lendo, e veja se conserva esta mesma conclusão até o final deste artigo:
Uma festa angustiante
Começaremos a utilizar a imaginação... Digamos que você seja uma senhora que vai na festa de aniversário da própria filha. Sua mãe mora em outro estado e você a vê apenas uma vez por ano, mas as preocupações de sua vida giram em torno de sua filha: Está bem casada? Tem um bom emprego? Já está na idade de ter filhos, mas será que está preparada para ser mãe?
Estes são seus pensamentos do dia a dia no convívio com sua filha, e esta festa deveria te deixar muito feliz e satisfeita: sua filha parece estar feliz e satisfeita, era o que você queria... No entanto, subitamente, você começa a pensar na sua mãe. “Não há de ser nada, e já está tarde” – você pensa, evitando a todo custo à vontade de ligar para ela. A festa continua e todos estão felizes, mas você está profundamente angustiada. Com o que exatamente?
Você dorme angustiada, mas acorda bem melhor. No sonho, parece que conseguiu finalmente falar com sua mãe, e nem precisou usar o telefone. No entanto, lá pelo horário do almoço seus parentes ligam do outro estado: sua mãe teve uma morte súbita na noite anterior. Ela realmente queria falar contigo, e falou. E você sabia. De alguma forma, mesmo sem o telefone, houve esta ligação entre vocês. Teria sido a última ligação? Isso é outra história, mas o que importa é que dois espíritos se comunicaram de ontem para hoje.
O primeiro porre
Continuemos a imaginar... Agora você é um jovem recém chegado à adolescência, e seu irmão mais velho finalmente aceitou te levar junto com ele para a balada. É a tão sonhada iniciação: agora finalmente você também poderá sair da casa dos pais e voltar mais tarde, quem sabe de madrugada. E vai namorar as garotas mais belas dessa parte da cidade. E dançar e se divertir... A vida será uma grande festa!
No entanto, o primeiro lugar que seu irmão te leva é para um barzinho onde se pode beber muito pagando um preço razoável. Mas você nunca bebeu, você não gosta de bebida!
Em todo caso, as horas passam e você começa a ficar incomodado com os olhares dos amigos do seu irmão. São todos apenas alguns anos mais velhos que você, mas te olham como se você fosse uma criancinha, e eles os maiorais, os experientes, os adultos. Seu irmão não deixou que ninguém te forçasse a beber, mas mesmo assim a pressão é muito grande... Você terá de dar pelo menos alguns goles num copo de cerveja, se pretende se enturmar com esse pessoal – se pretende participar dessa tal festa.
E você dá o primeiro gole, e o segundo, e o quinto, e um copo já foi, e depois vários, e lá pela madrugada, já no meio da balada, você já provou tantas bebidas diferentes que já nem se lembra mais que não gostava de beber. Na verdade, você já nem se lembra mais de quem você é exatamente. Os pensamentos se sucedem tão rapidamente que você não consegue mais construir para si um mundo que faça algum sentido. Você desmaia.
Esse foi o seu primeiro porre. Mas, será que haverão outros?
“Ele pode estar transando nesse minuto”
Que tal agora uma universitária cheia de sonhos, prestes a se formar, apaixonada por um cara um pouco mais velho, já formado, que tem progredido no escritório e no contracheque, mas tem trabalhado demais... Vocês quase não se veem mais!
Eles lhe ensinaram que quem ama deve cuidar de sua propriedade, então você cuida da sua: liga para o seu namorado umas 7-8 vezes ao dia. Quando não podem dormir juntos na casa dos seus pais, ou dos pais dele, a ligação noturna é longa e cheia de indagações. Ele é o namorado perfeito, afinal, e é exatamente por isso que você não consegue deixar de pensar nele, e no que anda fazendo quando não está perto de você.
“Todos os homens traem”, sempre dizem suas amigas da faculdade. “Não adianta acreditar em príncipe encantado fiel, se for assim tão encantado, vai encantar outras mulheres também. E, sabe como é, não é? Basta aquele shortinho encravado na bunda, aquela mini saia, e eles não resistem. Na verdade, ele pode estar transando com outra nesse minuto... Já pensou nisso?”.
Com o tempo, você já não sabe mais se essas frases foram ditas por suas amigas, ou se chegaram com o vento... Mas o fato é que você mal consegue se concentrar nas aulas. Está para se formar, mas as notas vão de mal a pior... Para piorar, seu príncipe encantado passou a não atender mais o celular de vez em quando. Agora, atende somente umas 5 vezes ao dia, nas outras está em “reunião de trabalho”.
“Reunião de trabalho”, você sabe bem o que é isso! Antes que fique claro e evidente para todos que está sendo traída, você resolve terminar com seu namorado. Ele finge que não entendeu nada, e diz que ainda te ama... Mas você percebe que ele também se sente aliviado por ter se livrado de você.
Então é isso: não existe príncipe encantado, e todos os homens traem mesmo. “Da próxima vez, os trairei antes” – você pensa, e parece ter sua vida amorosa bem resolvida... Será mesmo?
Shine on you crazy diamond!
E, para terminar: um solteirão convicto que convidou o pai para um show de rock. Mas não qualquer show, e sim o show daquela banda das antigas, de quando o seu pai era o solteirão convicto da vez. “Quem sabe não encontra neste estádio a mãe dos seus filhos, como o seu pai encontrou sua mãe há décadas atrás?” – mas este lhe pareceu um pensamento estranho.
O show começa e você se emociona. Não é só a questão da música ser maravilhosa, mas é a música que o seu pai lhe ensinou a ouvir. O seu pai, que não ia numa show há muitos anos, e que esteve muito triste e deprimido desde que sua mãe se foi há 3 anos, hoje está mais feliz do que nunca, e nem precisou se drogar – a década de 70 ficou para trás, o espírito roqueiro despertou novamente.
Quando toca Shine on you crazy diamond, a preferida de seu pai, e por tabela, também a sua preferida, ele lhe abraça e chora ao final da música: “Sinto que sua mãe está aqui. Ouvimos esta música tantas vezes juntos... Estou aproveitando o momento para me despedir dela de uma vez. Seja onde esteja, sei que ela ainda pode dançar, e isso me basta”.
Estranho de se pensar, logo seu pai que nunca foi lá muito religioso, nem parecia crer que qualquer parte da sua mãe ainda existira, falou dela como se ela estivesse ainda ali, ao lado dele. E não era uma questão de se crer ou não no que se passou, vocês sentiram a mesma coisa, e não era possível usar linguagem para descrever.
Naquela mesma noite, você encontrou a mãe de seus filhos. Quando sua mulher ficou grávida da primeira vez, souberam que era uma menina, e ela te disse: “Quero dar o nome da sua mãe, sinto que conheço ela desde que te conheci”.
***
Falávamos da importância do pensamento na primeira rodada do projeto, e aqui o pensamento está também na essência da mediunidade. Podemos abrir uma enciclopédia e ler, quem sabe, assim: A mediunidade é a capacidade da consciência humana de trocar informações com outras consciências de forma não verbal, influenciar e ser influenciada por elas. Sejam consciências que habitam um corpo físico, sejam consciências incorpóreas. Mas, no fundo, a mediunidade é muito mais uma experiência, como estas citadas nos 4 casos acima.
E, neste caso, nem é tão importante crer ou descrer em espíritos. O primeiro espírito que precisamos crer, conhecer e incorporar, é o nosso próprio. Devemos tomar conta de nosso próprio pensamento, para que este não seja alvo fácil na ventania. Devemos ancorar nossa essência nos altos ideais da existência: no amor, na liberdade, no conhecimento; para que os ventos não venham e a levem sabe-se lá para onde...
Ter uma alma, ter um espírito, ter uma consciência, ter uma vontade capaz de gerar seu próprio pensamento, é uma grande responsabilidade. A mediunidade é também a arte de lidar com tal responsabilidade da melhor forma possível.
A senhora que perdeu a mãe deveria ficar deprimida e triste, ou feliz por ter conseguido conversar com sua mãe uma última vez antes que ela fosse para o lado de lá? O adolescente que tomou seu primeiro porre terá coragem para não beber nas próximas baladas (ou beber moderadamente), ou se tornará um especialista em comas alcoólicos? A universitária ciumenta saberá compreender que amores não são propriedades suas, ou continuará obsessivamente ligada aos seus namorados? O roqueiro terá a sensibilidade suficiente para encontrar com sua mãe, deste lado de cá, ainda outras vezes, ou isso ocorrerá somente nos grandes shows de rock?
Muitas dessas perguntas não trazem uma única resposta, nem muito menos uma resposta perfeitamente racional. Na introdução do Livro dos Espíritos, Allan Kardec explica como viu no fenômeno das mesas girantes [3] algo muito maior do que a mera “força mecânica cega”. Ora, as mesas passaram a responder perguntas, com pancadas no chão que ditavam “sim” e “não”. “As mesas giram, mas não pensam” – notou Kardec, e este foi o início do espiritismo. Acaso as mesas “pensassem” ou agissem por conta própria, ou quem sabe através de alguma força desconhecida da natureza, a mediunidade poderia ser, quem sabe, uma ciência física. Porém, conforme o próprio Kardec notou mais tarde, “não se experimenta com espíritos como se experimenta com pilhas voltaicas”.
Não somos, afinal de contas, nem mesas girantes, nem pilhas voltaicas, nem máquinas incapazes de ter vontade própria. Somos espíritos, temos vontade... Pensemos nisso, e cuidemos disso. Do contrário, outros cuidarão por nós.
***
» Veja todos os artigos do Projeto Entrementes
[1] A sequencia dos artigos desta rodada será: blog Diário do Adeptu (PH); blog Autoconhecimento e Liberdade (Peterson); blog O Alvorecer (Jeff); encerrando no blog Artigo 19 (Igor).
[2] Ver, por exemplo, a série “Para ser um médium”.
[3] Reuniões onde médiuns europeus supostamente levitavam mesas pouco acima do chão, e as faziam girar. Para Kardec, entretanto, era óbvio que existia um fenômeno inteligente por detrás, já que as mesas pareciam “responder perguntas”.
Crédito das imagens: [topo] Mike Agliolo/Corbis/Rafael Arrais; [ao longo] Divulgação (David Gilmour)
Marcadores: Allan Kardec, espiritismo, espiritualidade, mediunidade, Projeto Entrementes, psicologia
10 comentários:
Podia ser colocado um link para as "conversas" anteriores ^^
"Não somos, afinal de contas, nem mesas girantes, nem pilhas voltaicas, nem máquinas incapazes de ter vontade própria. Somos espíritos, temos vontade... Pensemos nisso, e cuidemos disso. Do contrário, outros cuidarão por nós."
Se eu tomasse vergonha na cara cada vez que escutasse uma frase dessas, estaria satisfeito. Mensagens com este sentido tem me perseguido. Não tem jeito mesmo: ou se toma o controle de si mesmo ou se é controlado... tenso... "tenho sido mesa girante"...
Abraços e boa série!
@Bruno: Verdade, vou colocar o link para o Projeto, onde são listados todos os posts de todos os blogs participantes.
@Anônimo: Interessante a sua associação. "Tenho sido mesa girante". Eu nem havia pensado nisso quando escrevi... Mas há muita coisa que também não sei ao certo porque escrevi, e vou descobrindo depois. Nesse aspecto até que não é ruim ser também uma mesa girante - se formos girar, façamos como Rumi que girava em torno do Sol :)
Raph, o texto está excelente, com um grau se sensibilidade altíssima, confesso que além de expandir a consciência ela também é capaz de ativar o anahata.
Sensibilizar conosco mesmo é algo que poucos conseguem, atingir a visão sentimental de que você é um ser mais amplo do que imagina é o que deveríamos fazer antes de questionar o exterior. É mais fácil dizer que Deus, e "fantasmas" não existem do que ver o que realmente existe dentro de nossos seres, essas pequenas histórinhas que você ilustrou mostram isso, são situações que estão sempre presentes em nossas vidas, e que nem notamos, ou melhor, fingimos que não notamos...o grande problema das pessoas é que elas querem se tornar somente inteligentes e racionais, sendo que o sentimental é o que equilibra esse processo de autoconhecimento, o olhar para dentro com razão e emoção.
Você deixou uma grande responsabilidade para eu abordar no próximo texto rs...
Um grande abraço irmão!!!
PH
Que isso, uma das coisas que tentei neste artigo foi exatamente "tocar no assunto sem quase tocar no assunto", pelo menos de forma racional, então sobra muito sobre o que falar ainda :)
Essas "historinhas" são exatamente isso, aquilo que a racionalidade não consegue abranger, e por vezes são postas de lado e esquecidas. O problema de ignorar as "historinhas", de ignorar a alma quando ela quer falar conosco, é que passamos a viver meias vidas, ou tanto pior: as vezes são os outros que vivem por nós, pela "metade que sobrou ignorada".
Abração!
raph
Raph,
Confesso que no comecinho não tinha entendido bem o intuito do texto, o que acabou sendo muito bem exposto no desfecho, principalmente com a afirmação: "O primeiro espírito que precisamos crer, conhecer e incorporar, é o nosso próprio. Devemos tomar conta de nosso próprio pensamento..." Acho que apenas isso sintetiza importantíssima lição, visto que SIM, somos absurdamente "folhas ao vento" levados o tempo todo pelas mais diversas influências, sem nos darmos conta do nosso ser, da importância de cuidarmos de nossos pensamentos que são geradores de posturas, atitudes e sentimentos que teremos daí em diante, adquirindo maior responsabilidade perante a vida, pois neste caso já não podemos atribuir mais tais acontecimentos a própria sorte.
Excelente, cada vez mais sábias explanações!
Bjs
Yara.
É isso querida, precisamos ser cada vez mais médiuns de nós mesmos, até que incorporemos, finalmente, nosso próprio espírito :)
Bjs
raph
Concordo plenamente com a Yara e o Raph. Já que estamos falando de mente e mediunidade, creio que uma boa compreensão de si mesmo e do funcionamento da sua mente como um todo é fundamental. Já abri mão de me desenvolver como médium duas vezes, uma quando estava saindo da adolescencia, pq tive incorporações inconscientes em terreiros de umbanda e isso me assustou muito e outra, já com vinte e alguns, quando as coisas fugiram de controle e frequentei um centro cardecista por algum tempo. O estudo ocultista associado ao estudo da psicologia analítica me ajudaram, apesar de não ter sanado todos os desequilíbrios. Pode-se considerar a influencia de uma entidade externa ou de arquétipos criando identidades, ou mesmo pensamentos tomando forma e tentando dominar o restante do psiquismo, acho que tanto faz para o primeiro passo, que é ter controle dos proprios pensamentos e sentimentos. Conhecer os pensamentos e sentimentos recalcados e escondidos no submundo da mente, ou o que quer dizer uma entidade, é importante, mas mais importante é manter o controle sobre sua mente, não permitindo que nada disso tome as rédeas no fim das contas. Autocontrole, apesar de todas as influencias externas e internas, manter o equilíbrio das forças é tão importante que é retratado no arcano que liga a esfera do psiquismo a esfera do sol.
Pela minha experiência com a mediunidade, acredito que exista espaço tanto para médiuns passivos quanto para os "ativos", que na realidade se aproximariam mais dos magos, ou magistas, do ocultismo. E eu não quero aqui dizer, de forma alguma, que uns são "superiores" aos outros, tampouco "mais evoluídos espiritualmente". No fundo, tudo que importa é a conexão que temos com o Amor.
Eu não aceito incorporar, mas provavelmente incorporaria sem grandes dificuldades se aceitasse, pois consigo sentir aos espíritos em torno. Apenas digo a eles que posso eu mesmo auxiliar, e se forem "espíritos de cura", que "curem" junto comigo. Tem dado certo :)
Gostei da explanação, nossas experiências neste mundo servem para que possamos crescer e galgar lugares melhores na espiritualidade. Claro, se fizermos as coisas certas e dentro dos preceitos religiosos.
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