Reflexões sobre o sexo, parte 1
O ato sexual ou relação sexual é a denominação geral dada à fase em que dois animais com reprodução sexuada, mais especificamente o ser humano, realizam a ação física de junção dos seus órgãos sexuais, originalmente para a transmissão do gameta masculino ao feminino. Contudo, nem sempre tem uma função reprodutiva.
No mais elevado trono
Ao longo dos tempos o sexo tem sido tratado como um “assunto secundário” no pensamento filosófico. Talvez os antigos simplesmente não achassem o assunto digno das reflexões filosóficas, ou talvez os compiladores de seus ensinamentos tenham tido certo pudor em expor assuntos que normalmente escandalizam o ser social. Escandalizam, isto é, na medida em que dada sociedade é aberta ou fechada ao assunto.
A época medieval na Europa é particularmente lembrada por seu cuidado em relação ao assunto. Não que não praticassem sexo, mas é que evitavam falar abertamente sobre ele; Até mesmo porque segundo a religião dominante da época o sexo deveria ser praticado apenas com fins de reprodução, e toda uma gama de pecados foram associados ao ato libidinoso. De forma que, em certos contextos, era preferível ser considerado um depravado moral do que um depravado sexual – embora as duas classificações andassem de mãos dadas na maioria dos casos.
Montaigne viveu nessa época, e era um filósofo particularmente interessado nesse paradoxo. Ora, se todos fazem sexo, porque falamos tão pouco sobre ele, pelo menos abertamente ou em algum livro de filosofia? Montaigne atribuiu em parte os problemas que enfrentamos com nosso corpo ao fato de eles não serem tema de uma discussão honesta entre pessoas educadas. A literatura e a pintura representativas não tendem a identificar a graça feminina com grande interesse por atividades sexuais, nem a autoridade com o fato de possuir esfíncteres e falos. Representações pictóricas de reis e damas não nos encorajam a imaginar que espíritos tão eminentes possam soltar gases intestinais ou copular. Montaigne recorreu a um francês belo e sem cerimônia para preencher essa lacuna nas artes:
Au plus eslevé throne du monde si ne sommes assis que sus nostre cul. Les Roys et les philosophes fientent, et les dames aussi.
(Mesmo no mais elevado trono do mundo, continuamos sentados sobre nossos cus. Os reis e os filósofos defecam, e as damas também.)
Essa falta de pudor para tratar de assunto tão natural, mas que por alguma razão é sempre resguardado em nome dos “bons costumes”, geralmente faz com que as pessoas associem tais palavras à mente de pessoas vulgares e ignorantes. Mas isso não parece ser verdade, Montaigne foi apenas o primeiro da série de grandes pensadores que passaram a falar abertamente sobre o sexo, até os nossos dias.
No Gênesis bíblico temos uma bela metáfora para a época em que os seres humanos passaram a ter vergonha da nudez alheia. Talvez sirva como uma boa explicação para a origem desse pudor, talvez a “descoberta do bem e do mal” tenha levado o homem a cobrir as partes íntimas e passar apenas a praticar o sexo, mas raramente falar abertamente sobre ele... Isso parece ligar o ato sexual a uma forma obscura de nossa natureza, como se ele fosse algo sujo e pecaminoso, algo que não deveria ter tanta relevância na vida de seres racionais. Será mesmo?
Montaigne chegou a perambular por boa parte da Europa a cavalo, em suas viagens descobriu que uma norma cultural bem aceita em determinado país ou cidade poderia ser diametralmente oposta à outra norma, centenas de quilômetros em alguma outra direção do velho continente. Isso despertou sua curiosidade para terras ainda mais distantes: teve acesso ao livro “Viagem à terra do Brasil”, onde Jean de Léry afirma, por exemplo, que na América do Sul as pessoas gostavam de comer aranhas, gafanhotos, formigas, lagartos e morcegos.
O filósofo, porém, ficou mais curioso com o lado sexual dos índios nativos. Afinal de contas, eles mal cobriam o corpo no calor tropical – era como se ainda não tivessem sido expulsos do Éden... Os homens tupis tinham permissão para desposar mais de uma mulher e eram considerados maridos devotados a todas. Segundo Montaigne, “seu código de ética contém apenas dois artigos: demonstrar coragem em tempos de guerra e amar as esposas.” As esposas pareciam felizes com a poligamia e não se mostravam ciumentas. A única coisa realmente proibida em relação à vida sexual era a proibição em se dormir com um parente próximo.
Montaigne estava maravilhado: “Uma característica interessante de sua vida sexual é digna de nota: nossas esposas mostram-se extremamente zelosas em reprimir o amor e a ternura que outras mulheres despertam em nós; já as esposas tupis são igualmente zelosas em arrebanhar outras mulheres para seus maridos. Mais preocupadas com a reputação deles do que com qualquer outra coisa, elas empenham-se em conseguir o maior número possível de ‘co-esposas’, já que uma ‘família’ grande reafirma o valor do marido.”
O filósofo não encontrou nada de particularmente anormal ou terrível no comportamento sexual desses índios, mas ele fazia parte da grande minoria. Logo depois da descoberta de Colombo, os colonizadores portugueses e espanhóis que vieram da Europa colonizar o novo mundo concluíram que esses nativos eram “pouco mais do que animais”. Um ministro calvinista afirmou que não possuíam nenhum senso moral. Um médico europeu, após examinar cinco nativas e perceber que não menstruavam, concluiu que “não pertenciam à raça humana”...
Não satisfeitos em despojá-los de sua humanidade, os espanhóis começaram a dizimá-los como animais. Por volta de 1534, 42 anos após a chegada de Colombo, os impérios inca e asteca haviam sido destruídos e seu povo escravizado ou assassinado. A hospitalidade inata dos nativos não comoveu os “seres morais do velho continente”: os colonizadores matavam crianças, rasgavam o ventre de mulheres grávidas, arrancavam olhos, queimavam vivas famílias inteiras e incendiavam aldeias à noite.
Montaigne gostava desta frase de Terêncio, um poeta cômico latino que viveu no segundo século a.C.:
Homo sum, humani a me nihil alienum puto.
(Sou homem; nada do que é humano me é estranho.)
Em nossa curta estadia neste planeta, temos erguido civilizações e sociedades das mais variadas culturas e formas de pensamento. Se é verdade que boa parte de nossas sociedades encontram enorme dificuldade em tratar do sexo, não é verdade que ele deva ser relegado a escuridão, como se o ser sexual fosse o maior depravado, o maior devasso.
É exatamente por escondermos o assunto que muitos de nós desenvolvem os mais variados transtornos psicológicos, e passam a agir de forma violenta, como animais que não sabem o que fazer com tamanha força e tamanho instinto trancafiado dentre regras e mandamentos absolutamente hipócritas. Ora, quem foram os maiores depravados no novo mundo, os nativos que andavam semi-nus e eram polígamos, ou os “conquistadores” que viram nisso razão para os exterminar da maneira mais bruta e cruel possível?
Ao longo da história, o ser humano acreditou que, em sendo um animal racional, estava tão acima dos outros animais que não poderia mais praticar atos animalescos. Mas a força que move a vida não pode ser renegada e nem esquecida apenas porque manuais de verdade absoluta assim ditaram. Que o homem ainda está longe de deixar de lado o seu lado animal, e todo o sangue derramado no novo mundo, em pleno Renascimento, é um obscuro lembrete disso...
A seguir, o sexo como força motriz da vida.
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Crédito das fotos: [topo] Sigi Kolbe , [ao longo] treppenstufe
Marcadores: artigos, artigos (41-60), bíblia, filosofia, história, índios, Montaigne, moral, sexo, violência
3 comentários:
O problema em geral do sexo, é que quando nos referimos a ele apenas pensamos nos órgãos físicos, quando é algo mais do que uma relação física ....
Bem lembrado, eu ainda espero "chegar lá" nessa série...
fantástico brother! =D
compartilho dessa ideia
Abrç
End Fernandes
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