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22.2.10

BBB: Cativeiro social

Há muito tempo que os “intelectuais de plantão” se questionam como os reality shows alcançaram tanto sucesso na televisão mundial e, da mesma forma, na brasileira. Infelizmente não podemos nos orgulhar do nível intelectual do nosso programa mais longevo no ramo, o Big Brother Brasil – se, nessas dez edições, conseguimos completar um único dia de conversas consistentes sobre artes, filosofia, ciência ou religião, terá sido muito. Na maior parte do tempo o BBB mais parece uma novela onde os “mocinhos” tentam chegar a um “final feliz”, enquanto os “bandidos” tem seu momento de trunfo, mas sempre são eliminados ao final.

E porque será que gostamos tanto, enquanto sociedade e audiência televisiva, de observar a vida alheia e suas relações sociais – sejam ou não uma “realidade”? Porque será que certas pessoas da camada mais humilde da população chegam até a confundir realidade e ficção quando, ao encontrar pessoalmente um ator ou atriz que fazem algum papel de destaque em uma novela, os alertam para “tomar cuidado com o bandido” ou os atacam por serem eles mesmos os “bandidos” da história?

Talvez a resposta seja “que não temos escolha, pois está em nossos genes” [1]: Segundo a antropologia moderna, a empatia e a imitação talvez tenham sido a base do mecanismo que nos tornou humanos. Ao observarem outras pessoas em seu grupo social, nossos ancestrais começaram a tentar desvendar o que se passava em suas mentes – e, para tal, tiveram que imaginar cada qual como um indivíduo em separado. Segundo a teoria da mente, pela primeira vez nossos ancestrais adquiriram a capacidade de julgar a intencionalidade de outro indivíduo, passando a “pensar como se fossem outra pessoa”, na tentativa de antever suas ações.

Steven Mithen, em seu célebre livro “A pré-história da mente”, teoriza que os hominídeos pré-humanos apresentaram variadas gradações de módulos de inteligência – a inteligência geral, a naturalista, a técnica e a social. Porém, somente nos homo sapiens esses módulos da mente se unificaram em um único grande conjunto, de modo a possibilitar o surgimento da cultura, da arte e da religião humanas. No entanto, observando outras espécies ainda próximas em nosso galho evolutivo, como bonobos e chimpanzés, sabemos que de todos esses módulos, o que mais contribuiu na evolução cognitiva da mente humana foi, sem dúvida, o social.

Nas relações tribais antigas, sabemos que infelizmente estivemos muito mais próximos dos chimpanzés, e sua organização hierárquica em torno dos machos alfa, do que dos bonobos, e sua organização anárquica em torno da troca de favores sexuais, que apesar de escandalizar muitos “moralistas de plantão”, é sim muito benéfica no sentido de amenizar – ou até mesmo, erradicar – a violência entre os membros da mesma tribo, e inclusive entre tribos diferentes. Sim, ao contrário dos bonobos, não resolvemos nossas desavenças com sexo, e sim com força bruta – ou pelo menos assim tem sido nos últimos milhares de anos.

Porém, acima de tudo, sabemos que as relações sociais são baseadas primordialmente em confiança e desconfiança, em alianças e traições. Isso tem sido válido desde as primeiras tribos de hominídeos no sul da África até aos grandes impérios erguidos por seus descendentes, que atreveram-se a cruzar o Oriente Médio e eventualmente alcançar o restante do mundo. Nas relações tribais, muitos defeitos são relevados, mas quase nunca a falsidade e a dissimulação: todo chefe tribal e todo homo sapiens bem sucedido em relações sociais há que ter desenvolvido, em todos esses anos, uma capacidade sem igual de julgar as intenções alheias. Uma expressão falsa, um olhar dissimulado, um sorriso amarelo, e toda a nossa desconfiança entra em ação – algumas vezes, sem necessidade.

Mas nem sempre podemos estar cientes das intenções alheias. Ficamos preocupados, principalmente, em procurar compreender o que os outros pensam e falam sobre nós quando não estão em nossa presença. Nas relações tribais, a intriga e o jogo de alianças podem significar a sobrevivência do indivíduo e seu grupo de amigos. Como então estar à par do que os outros – principalmente os grupos rivais – pensam de nós?

Estima-se que, ainda na época atual, as pessoas passem em torno de 2/3 de seu tempo de interação com outras pessoas falando sobre assuntos de cunho social – ou, em outras palavras, fofocando [2]. Isso surpreendeu até mesmo os maiores entusiastas da psicologia evolutiva. E a explicação para isso é simples: foi através de nossas interações sociais ancestrais, desde as pequenas tribos africanas de onde viemos, que desenvolvemos a linguagem. E a linguagem sim, é o grande catalisador de tudo o que veio depois.

Ainda que mal saibamos nos expressar em bom português (ou no idioma nativo de cada um), é através da análise minuciosa das “sutilezas” da linguagem que nos tornamos animais com módulos de inteligência social especializados. É preciso não só compreender o que é falado, mas também reconhecer o tom de voz, a intencionalidade das expressões, a sinceridade do olhar, etc.

Mesmo com os esforços quase épicos de Pedro Bial, é muito difícil que um dia o BBB se torne um Café Filosófico [3]... Entretanto, não é sem razão que este jogo de cativeiro social nos atrai tanto, contanto que traga os ingredientse que nos excitam as idéias e memórias ancestrais: intrigas, alianças, traições, julgamentos, etc.

Ao contrário das novelas, e ironicamente mais próximo da mitologia, os reality shows raramente trazem personagens que podem ser reduzidos a “mocinhos” e “bandidos”. No uso de suas máscaras de personalidade, no entanto, os mais aptos são aqueles que, apesar de seus inúmeros defeitos morais, se mostram mais alinhados com a coerência e retidão de suas ações, mais fiéis aos amigos e menos dissimulados para com os oponentes. Apesar do peso do carisma e de um sorriso verdadeiro, não há quem sobreviva na tribo sendo falso; e por isso até hoje, após tantos anos, ainda somos capazes de nos irritar tanto com a falsidade.

Seguindo uma lógica parecida, podemos também compreender porque geralmente os excluídos da tribo são os que despertam a maior compaixão do público. Em nossos genes talvez ronde o horror que nossos ancestrais sentiram ao se encontrar nessa posição, sozinhos em meio a natureza selvagem, sem o seu grupo de caça, e dependendo apenas de si mesmos – e de seus deuses – para sobreviver. No BBB, o público faz o papel "divino" de interceder e mudar a história dos excluídos e injustiçados. Nesse caso, a voz do povo é realmente "a voz de deus".

***

[1] Na verdade, não exatamente, mas isso é uma outra história...

[2] Segundo a série de documentários “Evolução”, da NOVA, lançada no Brasil pela editora Duetto.

[3] Meu programa preferido na televisão aberta, da TV Cultura.

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Crédito da foto: Divulgação (Pedro Bial, apresentador e jornalista).

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