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6.12.10

Reflexões sobre o materialismo, parte 3

Continuando da parte 2

A subjetividade é o mundo interno de todo e qualquer ser humano. Este mundo interno é composto por emoções, sentimentos e pensamentos. Através da nossa subjetividade construímos um espaço relacional, ou seja, nos relacionamos com o "outro".

O limite do subjetivo

Há uma outra espécie de materialismo, definida por alguns como materialismo científico ou eliminativo, mas que eu opto por definir aqui como materialismo anti-subjetivo [1] – pois se trata de uma teoria que afirma que somente a matéria já conhecida explica o funcionamento da consciência humana. Trata-se de uma aposta e de um enorme paradoxo:

A aposta
Hoje se sabe que a consciência se parece mais com um processo que coordena decisões de acordo com o fluxo de informação sensorial recebido, ela é como o regente de uma “orquestra mental”. Porém, a análise qualitativa dos fenômenos conscientes complexos, como o amor e as decisões morais, ainda passam ao largo da explicação científica. Este é o famoso “problema difícil”: identificar o que exatamente interpreta informações e elabora respostas morais, em oposto a mera computação das informações.

Richard Feynman gostava de comparar a forma como os físicos modernos trabalham com a detecção das ondas de uma piscina: acaso não fosse possível ver quem mergulhou na piscina há pouco tempo, podemos ter uma boa noção de onde e quando ocorreu o mergulho, assim como o peso de quem mergulhou, apenas analisando a frequência e a amplitude das ondas na superfície da água. A ciência lida somente com o que pode detectar – se ela não detecta o amor ou a moral, ao menos pode detectar o efeito elétrico no cérebro que ocasiona as demonstrações de sentimentos complexos. O que a ciência não pode pretender, entretanto, é que tais sentimentos se resumam ao efeito, ignorando a causa... Ou postulando que a causa está além de nosso controle, que é fruto do mero agitar químico do cérebro, o que em todo caso é basicamente o mesmo que ignorar a causa.

Bahram Elahi, especialista em cirurgia e anatomia, dizia que embora a mente e o cérebro sejam separados, a mente (ou consciência) não é algo imaterial. Ao contrário, é composta de um tipo de matéria muito sutil que, embora ainda não-descoberta, é conceituamente semelhante às ondas eletromagnéticas, que são capazes de carregar sons e figuras (e mesmo videos - figuras em movimento), e são governadas por leis, axiomas e teoremas precisos. Ele teoriza que tudo relacionado a esta "entidade" deve ser considerado como uma disciplina científica não-descoberta, e estudada da mesma maneira objetiva que outras disciplinas (como química ou biologia, por exemplo). A consciência pode, portanto, ser formada por algum tipo de substância material sutil demais para ser medida ou detectada utilizando as ferramentas científicas disponíveis hoje.

Eis a aposta dos materialistas anti-subjetivos: a de que a consciência e seus fenômenos complexos, que exigem não apenas a computação de informações, mas, sobretudo, a interpretação das mesmas, pode ser compreendida apenas levando-se em consideração a matéria já detectada pela ciência.

O paradoxo
Primeiro a ciência moderna, através da neurologia, foi obrigada a aceitar o conceito e a existência da mente subjetiva, para só então tentar reduzi-la a atividades elétricas, efeitos bioquímicos, um mero agitar de partículas no cérebro... Em suma, tentar negar a existência dos qualia.

Qualia são tratados na Filosofia da Mente como sinônimos de subjetividade. Eles significam uma barreira intransponível entre objetivo e subjetivo, entre vivo e não vivo, entre humanos e máquinas. Não sabemos como o cérebro gera a subjetividade, nem se ela pode ser replicada artificialmente. Tentamos padronizar as sensações usando a linguagem, mas as características subjetivas, únicas, de cada sensação, parecem sempre escapar. Quando falamos de algo “amarelo”, por exemplo, não sabemos se essa cor é mais ou menos intensa para nós ou para o “outro”.

Essa inconveniência dos qualia levou filósofos como Daniel Dennet a tentarem negar sua importância ou até mesmo sua existência... Segundo Dennet, a subjetividade é uma ilusão persistente gerada por nosso cérebro, e não existem escolhas, nem morais nem imorais, apenas o resultado do fluxo de partículas no cérebro, de átomos dançando conforme alguma música aleatória definida por nosso meio-ambiente.

Eis o paradoxo: Dennet, ao contrário do que possam pensar, não é alguém que eu condene. De fato, ele é um dos poucos materialistas anti-subjetivos que realmente assumem sua posição enquanto materialistas – a grande maioria simplesmente ignora tal questão, e continuam a viver como se existisse a subjetividade, como se existissem escolhas, como se realmente fizesse algum sentido condenar criminosos ou condecorar heróis de guerra.

Até onde a luz pode chegar
Não há nada de errado com a ciência objetiva, o problema é quando cientistas creem que podem utilizar ciência para adentrar no campo da subjetividade... Da mesma forma que a psicologia não poderá provar que “esta pessoa está sentindo duas vezes mais dor do que aquela outra”, ou que “aquela pessoa ama aquela outra cinco vezes mais do que você ama seu cachorro”, dificilmente a ciência moderna terá sucesso nessa tentativa de equacionar a mente humana, e tratá-la como uma espécie de máquina que programou a si própria.

Já dissemos que toda a matéria é intangível, mas faltou dizer que ela é igualmente invisível em sua maior parte – pois tudo o que vemos com os olhos ou detectamos com instrumentos avançados são frequências de ondas eletromagnéticas, quantas de luz a refletir pelos átomos a dançar no vazio. Nós não vemos a lua, nem a árvore do outro lado da rua, nem mesmo nossas mãos ou as bactérias no microscópio, vemos apenas os quantas de luz, vindos da luz do Sol ou de alguma fonte de luz (tal qual lâmpadas ou vagalumes), a refletir os átomos que constituem as coisas vistas ou detectadas.

Mas mesmo esta matéria que reflete e interage com a luz é apenas uma ínfima minoria – cerca de 4% – de toda a matéria existente em nosso horizonte observável do Cosmos. Todo os resto – 96% – é composto por Matéria Escura e Energia Escura, e só pôde ser descoberto pelos cientistas através de seu efeito gravitacional no movimento das galáxias (assim como nas interações com a força eletrofraca, mas isso já daria outro artigo).

Aí está o limite do subjetivo, segundo os materialistas: 4% da matéria existente no pedaço do universo onde nossa observação alcança. É uma tremenda aposta esta que afirma que o problema difícil da consciência, que o próprio conceito de subjetividade, pode ser explicado e compreendido apenas com o tilintar dos átomos conhecidos. Para sermos materialistas anti-subjetivos, temos de ter muita fé no ínfimo que conseguimos desvelar objetivamente deste Cosmos infinito. Há que se reconhecer sua convicção.

Em breve, o materialismo religioso e a espiritualidade materialista...

***

[1] Por muito tempo o termo utilizado nesta série foi "materalismo subjetivo", somente meses depois da publicação inicial eu achei melhor usar o termo "materalismo anti-subjetivo" no lugar. No blog em geral, passei a usar o termo "materialismo eliminativo", não porque goste mais dele, mas porque tem sido o termo mais utilizado na linguagem comum.

Crédito da imagem: neurollero

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8 comentários:

Blogger Peterson (Pepé) Luiz Jardim disse...

Sensacional o texto

parabens pelo blog eu passo aqui todo dia

=)

6/12/10 23:19  
Anonymous Ronaud disse...

Excelente texto, Raph. É inusitado como certas conclusões surgem espontaneamente nas pessoas depois de um mínimo de observação. Você com seu amplo e admirável estudo colocou perfeitamente em palavras algo que eu vinha sentindo intuitivamente mesmo com minha parca leitura sobre esse fascinante assunto, ou seja, vinha me questionando o porquê dos "cientístas materialistas" insistirem em medir o que não pode ser medido. É como se um casal de repente parasse e começasse a discutir: "Ei, eu te doei 3 amores, e você só me retribuiu 2 amores. Vai logo me passando um amor aí!" Patético, não? Mas é assim que vemos a ciência tentar adentrar o mundo subjetivo. Penso que se quiserem um avanço efetivo neste campo, teriam que mudar completamente a abordagem e, ao invés de querer transformar experiências em estatísticas, adotar cada experiência, cada indivíduo, como um universo a ser desvendado. Uma tarefa hercúlea como esta só se resolve mesmo com o auto-conhecimento, isto é, cada um se desvendando. Enfim, já "tô viajando".

Por outro lado, esta "cegueira" materialista que encontramos no atual cenário científico nos mostra que ainda vai muito tempo até que o auto-conhecimento se torne "coisa de ciência". Mas é bom encontrar vozes como a sua apontando uma nova forma de ver o mundo, sempre com forte embasamento. Muito bom!!!

7/12/10 00:40  
Blogger raph disse...

Oi Peterson,

Obrigado pelas visitas... Estou mais ativo nesse início de mês exatamente porque na metade do mês em diante vou viajar e provavelmente postar muito pouco, mas em Janeiro estarei de volta :)

Abs
raph

7/12/10 10:26  
Blogger raph disse...

Oi Ronaud,

Pois é, obrigado pelo comentário, e concordo plenamente com ele.

Mas devemos lembrar que a ciência não é nem materialista, nem espiritualista, nem monista, nem dualista - a ciência é o estudo do mundo detectado.

Na época de Demócrito, era um estudo tanto objetivo quanto subjetivo. Apenas na ciência moderna é que optaram por desconsiderar o subjetivo.

Mas isso está voltando. Oliver Sacks por exemplo se declara "um cientista romântico"... Não podemos esquecer também do Dr. Sérgio Felipe de Oliveira que é espírita e realiza um belo estudo dos cristais na glãndula pineal, dentre outros (ambos podem ser achados procurando no blog, hehe). Certamente teremos vários outros exemplos, mas então muitos irão dizer "que nesse aspecto eles não estão sendo cientistas"...

Tudo bem, que sejam apenas seres humanos em sua eterna busca por conhecimento, estará muito bom já.

Abs
raph

7/12/10 10:30  
Blogger raph disse...

Gostaria apenas de completar, para dar uma ideia da ciência extritamente materialista.

Numa discussão online uma vez disse que "o amor não se equaciona".

Um estudante de física (que inclusive eu respeito e é meu amigo) respondeu que "não é verdade, por exemplo, podemos medir a quantidade de calorias necessárias para que o corpo continue funcionando e o cérebro em pleno funcionamento, gerando o sentimento do amor."

Eu nem prossegui na discussão, seria um tanto inútil...

Abs
raph

7/12/10 10:33  
Anonymous Ronaud disse...

É, realmente o seu amigo não entendeu o que vc quis dizer. No fim cada um só enxerga o que quer ver. Ou ainda, como encontrei numa incrível frase "perdida" no meu site, atribuída a Francis Bacon: "As pessoas preferem acreditar naquilo que elas preferem que se seja verdade".

Pois então, a ciência pode não ser materialista, mas a quase totalidade dos cientistas é. E esse "contentamento", ou "limitação" ao que é material, quando estamos rodeados de manifestações imateriais, me deixa frustrado com a falta de abertura dos cientistas, por mais que, ainda assim, alcancem resultados práticos fantásticos. Creio que se tivessem uma mente mais aberta, poderiam ir muito além.

7/12/10 21:10  
Anonymous Franco-Atirador disse...

É, parece que a escolha de em que acreditar está enraizada em o que o ser prefere acreditar no fim das contas, ou se este têm lógica suficiente para ser perturbado pelo seu auto-engano, e coragem para enfrentá-lo.

Qualquer semelhança com crentes estafgnados e irracionais NÃO é mera coincidência. Talvez sejam pessoas que se sintas desconfortáveis sem o sentimento de total controle da situação, que não curtam mistérios... enfim, acaba quase sempre caindo no MEDO. Também temos que levar em conta de que esse pensamento cartesiano é fruto do modo como a sociedade tem sido conduzida, refletindo de certa forma seu sistema socio-econômico. Tudo rápido, bem definido, concreto, e se possível embalado para vender. Não é de se duvidar de que hajam intensões econômicas por trás de estudos assim, como sabemos que existem, pois, se é matéria, vc pode colocar em uma pílula e deleitar-se com a ignorância dos que pagam por isso. Enfim, acredito que o holismo está surgindo, mas sou realista, vejo que surje com muito custo contra uma forte correnteza que até sabe sobre aspectos da verdade, mas a encobre e impede de vigorar, pois isto resultaria em uma revolução, e sabemos que não é esse o interesse dos "donos do mundo".

10/9/12 21:34  
Blogger raph disse...

Há muitos séculos os poetas esperam pela revolução. Talvez ela comece dentro da gente... Mudemos a alma, para que a alma mude o mundo.

E, se não se mudar o mundo todo, se não se mudar nem uma cidade, nem um bairro da cidade, pelo menos nos salvamos do dilúvio da irrelevância, da ignorância do ser... Nem que seja apenas em nosso pequeno jardim epicurista.

Ou, como dizia Tagore: "neste Céu de liberdade, Pai, deixe meu país acordar!"

11/9/12 15:03  

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