Pular para conteúdo
16.12.11

Tendências da fé, parte 3

« continuando da parte 2

Texto de Adjiedj Bakas e Minne Buwalda em "O futuro de Deus” (A Girafa) – pgs. 66 a 70. Tradução de Silmara Oliveria. As notas ao final são minhas.

O mundo árabe – incluindo os países muçulmanos das regiões central e sul da Ásia
O mundo árabe em geral apresenta uma cenário religioso uniforme, assim como os países muçulmanos de outras partes do mundo. Nos lugares onde o Islã reina, dificilmente há espaço para outras religiões, exceto alguns pequenos grupos tradicionais, como os cristãos cópticos no Egito, os cristãos armênios e zoroastrianos no Irã, os mandeístas no Iraque e os cristãos siríacos no Líbano.

A principal divisão no Islã é entre sunitas e xiitas, mas existem também grupos menores de longa e rica tradição. O Sufismo, por exemplo, a variação mística do Islã, conhecido pelas práticas religiosas extáticas como a dança dos dervixes e pela poesia, tende a ser mais tolerante em relação às outras religiões do que o Islã “normal”, que é, acima de tudo, totalmente baseado no Alcorão e se opõe à expressão religiosa pessoal dos sufistas [1]. O mesmo se aplica aos ismaelitas, que vivem na Síria e em outros tempos dominavam o mundo árabe, do Marrocos ao Iraque; o fato de que os judeus e os cristãos podem viver em paz na Síria e no Líbano se deve principalmente à tolerância dos ismaelitas.

As últimas décadas presenciaram um fortalecimento do fundamentalismo nos países muçulmanos. Com origem em países bem organizados, como o Egito e a Arábia Saudita, o movimento fundamentalista se espalhou para todos os cantos do mundo, principalmente para os países muçulmanos com governos centrais enfraquecidos, como o Afeganistão e o Iêmen, e para regiões com uma grande diáspora [2] muçulmana, como a Europa Ocidental. Dessa forma, existem cerca de 20 milhões de muçulmanos vivendo na Europa atualmente [3].

A principal característica dos vários países muçulmanos é que a religião está ganhando espaço nos assuntos políticos e judiciais. Essa tendência é chamada de “Islamitismo”. Em países como a Malásia e Indonésia, há partidos islamitas de linha dura que querem impor a lei islâmica a todos os habitantes do país, até a quem não for muçulmano. Na Indonésia, onde 90% das pessoas são muçulmanas, vários governos regionais aprovaram leis inspiradas na charia, incluindo condutas obrigatórias de vestimentas, testes de leitura do Alcorão para os alunos e casais que desejam se casar, além de grupos de combate a vícios estruturados de maneira vaga, inspirados naqueles da Arábia Saudita e no Afeganistão na era do Talibã. Em 2008, o governo da Indonésia aprovou uma lei antipornografia, cujas restrições referentes às vestimentas e expressão artística puniram grupos de não muçulmanos, banindo a cultura tradicional balinesa e prejudicando sua economia, que depende do turismo na ilha [de Bali] [4].

Índia
Tradicionalmente, a Índia é uma região onde a religião e a espiritualidade desabrocharam. Ao caminhar pelas ruas de Varanasi, em Nova Délhi, Bombaim, Amritsar ou Jaipur, pode-se sentir e ver religião em cada esquina, seja Hinduísmo, Islã, Budismo, Sikhismo, Jainismo ou Zoroastrismo. Por muito tempo, a Índia teve soberanos religiosos. Em aproximadamente 250 d.C., o Rei Ashoka, que era budista, governou o Império Máuria, que ocupava a região que hoje vai do Afeganistão a Bangladesh. Sob o domínio hindu, o subcontinente indiano foi governado por reis feudais locais, chamados de maharajas. Nos séculos 17 e 18, essa Grande Índia foi novamente unificada e governada por imperadores mongóis e muçulmanos. Em 1947, com a saída dos colonizadores britânicos, e região foi dividida em República da Índia (hindu), Bangladesh e Paquistão (muçulmanos). Os governos que se instalaram nesses três países foram explicitamente seculares, em uma tentativa de acalmar as tensões religiosas.

Na Índia, há uma minoria muçulmana tradicionalmente tranquila, tolerante e não ortodoxa. Porém, influenciados pelo movimento islamita internacional, que possui esconderijos no vizinho Paquistão, os conflitos entre os muçulmanos e hindus na Índia estão aumentando de novo. [...] Ao mesmo tempo, a religião predominante na Índia, o Hinduísmo, perdeu influência na vida da população por causa dos governos seculares.

O sistema de castas da Índia foi oficialmente abolido com a Constituição de 1947. Para os chamados dalits, os 16,2% da população indiana sem casta e considerados “intocáveis”, isso fez uma grande diferença. O governo indiano fornece aos dalits bolsas de estudo em universidades e depois os contratam como funcionários públicos [5]. Historicamente, como sua posição na classe social inferior foi automaticamente associada a ocupações consideradas impuras, os dalits trabalhavam principalmente como artesãos, limpando latrinas e canos de esgoto ou então varrendo ruas. Hoje, trabalham como engenheiros, médicos, advogados, arquitetos, gerentes, profissionais de TI e empresários de sucesso. Até o atual Presidente Pratibha Patil da Índia é descendente dos dalits.

Porém, o sistema de castas ainda predomina em grandes regiões rurais da Índia, apesar da política secular oficial do governo. Mas, em uma cultura global, com televisão em todos os vilarejos, as pessoas podem ver que existem outras formas de viver. Atualmente, muitos dalits de regiões rurais da Índia se convertem ao Marxismo ou Cristianismo em busca de emancipação.

China
A China tem uma história religiosa muito rica. Chang’an, a antiga capital chinesa durante a Dinastia Tang (618-907), era a cidade mais cosmopolita do mundo, com mais de 1 milhão de habitantes, e tolerância religiosa total. Como era o ponto final da Rota da Seda, a cidade atraía muitos estrangeiros, de localidades distantes, como Japão, Pérsia, Império Khmer e Bizâncio. Os mosteiros budistas ficavam ao lado dos santuários confucianos, os templos zoroastrianos próximos às igrejas cristãs nestorianas. As santidades taoistas e os altares nas residências eram utilizados para venerar os antepassados. Muitos dos imperadores eram budistas, outros eram confucianos e alguns eram ateus [6].

Depois de 1949, quando o Partido Comunista assumiu o controle do Império do Meio, a religião foi desencorajada porque, como Marx tinha dito: “a religião é como ópio para as pessoas”. Mas a religião nunca desapareceu por completo, pois os seguidores continuaram suas práticas silenciosamente com os altares montados em suas casas [7].

Depois que a China abriu sua Cortina de Bambu em 1979, a religião começou a ser tolerada novamente. Em 1982, a liberdade religiosa se tornou parte da Constituição da China; porém, essa tolerância ficou limitada a cinco religiões: Budismo, Taoísmo, Islã, Protestantismo e Catolicismo. As outras religiões ainda encontram repressão. O novo movimento religioso Falun Gong, baseado nas práticas qigong tradicionais, como tai chi e controle da respiração, mas que também enfatiza os conceitos morais e as virtudes como o pacifismo, cresceu rapidamente na década de 1990: as fontes do governo chinês indicam que havia 70 milhões de adeptos no país até o ano de 1998. O Partido Comunista começou a se sentir ameaçado por essa nova “seita” e baniu-a em 1999. Em 2001, esmagaram o Falun Gong, que o governo considerou algo inaceitável, depois que 10.000 membros do movimento foram a Pequim protestar por causa de seu ostracismo oficial. Entretanto, outras religiões seguem bem, contanto que não interfiram na política oficial [8].

[...] Uma das religiões que está claramente em alta na China é o Budismo. Tradicionalmente, era popular entre os pobres da China, simplesmente porque o Budismo prega a aceitação dos fardos mundanos e enfoca o esclarecimento pessoal e o futuro. Essa aceitação impede que os não religiosos se revoltem contra os religiosos e pode explicar a tolerância do Presidente Hu Jintao. A população rica da China tradicionalmente apresentava uma tendência maior ao Taoísmo, porque este enfoca o aqui e o agora, principalmente o viver em harmonia com o acúmulo de riquezas. Mas, atualmente, a população bem-sucedida da China apresenta uma tendência maior ao Budismo. Para os jovens estressados, é uma pausa nos conflitos e competições.

A popularidade crescente da fé reflete um desejo por um sentido na China, com muitas pessoas cada vez mais atraídas aos ensinamentos do Budismo de rejeição ao materialismo e ênfase na natureza da vida transitória. [...] O Islã também está crescendo na China. Tradicionalmente, há comunidades muçulmanas relativamente grandes nas principais cidades, a maioria da tribo Hui. No estremo ocidente da China, na Província de Xinjiang, os povos Uygur e Kirgyz acentuam suas razões islâmicas, em parte para proteger a cultura local e enfatizar sua tendência ao separatismo político.

[...] Uma outra religião que está bem na China é o Cristianismo. Os números oficiais mostram que a quantidade de cristãos aumentou de 14 milhões em 1997 para 21 milhões em 2006, mas esses dados excluem as igrejas nos lares e as igrejas clandestinas. Uma estimativa modesta diz que, em 2010, havia mais de 80 milhões de cristãos na China. As igrejas nos lares são particularmente populares, embora o governo tenha estabelecido um limite informal de 25 pessoas para cada “reunião religiosa não autorizada”.

Em seu livro O regresso de Deus, Micklethwait e Wooldridge sugerem que os chineses são atraídos ao Cristianismo porque cada cidade chinesa possui um clube ou rede de cristãos empresários e pessoas que querem se juntar ao clube dos bem-sucedidos. Os pesquisadores mencionam um depoimento de um convertido: “Na Europa, a igreja é velha. Aqui, é moderna. A religião é um sinal de ideais superiores e progresso. A riqueza espiritual e a riqueza material andam juntas. É por isso que vamos vencer” [9].

***

[1] Toda grande religião tem sua vertente mística e verdadeiramente esotérica. No Islã, o sufismo; No cristianismo, os gnósticos e martinistas; No judaísmo, a Cabala (kabbalah), etc. Como todos estes são geralmente mais religiosos que eclesiásticos, se preocupam muito mais em sua religação com Deus (religare) do que em ditar preceitos morais e/ou importunar os praticantes de outras religiões com tentativas de “evangelização forçada”; E tampouco se preocupam em participar de uma elite de “escolhidos por Deus”, pois que em todo o canto que olham veem a verdade: que só existe um Deus, e que ele preenche todo o Cosmos (incluindo nós mesmos).

[2] Comunidades religiosas provenientes de migrações.

[3] Kadafi uma vez chegou a admitir que o “plano muçulmano” era “conquistar” a Europa pelas altas taxas de natalidade. Como vimos, à juventude muçulmana realmente cresce em todo mundo, mas o resultado não foi muito favorável aos ditadores islâmicos...

[4] Uma charia no desfile de Carnaval carioca deveria afetar o turismo no Brasil de forma bem semelhante. Sorte que escapamos dessa.

[5] Nesse sentido, governos seculares foram uma grande benção para a Índia... Há que se ter equilíbrio e harmonia numa sociedade, e às vezes uma visão mais secular e pragmática é necessária ao progresso. O sistema de castas é a grande “chaga cármica” da Índia.

[6] Parecem fábulas, mas em momentos de nossa história, grandes metrópoles ecumênicas efetivamente existiram. Que a antiga Atenas, Chang’an, Al Andalus e a Nova Iorque do final do século 20 não sejam jamais esquecidas, como exemplos de como a humanidade pode conviver em liberdade e tolerância. Esperamos que o Brasil hospede uma dessas, em se consolidando como potência mundial.

[7] Quem compreende a reencarnação sabe que a religiosidade humana jamais desaparecerá, por mais que se exterminem todos os religiosos de um povo – enquanto existir seu povo, eles voltam, eles sempre voltam...

[8] O governo chinês finge que preza a liberdade e os direitos civis, e os governos do resto do mundo fingem que acreditam. Enquanto a balança comercial com a China lhes favorecer, para eles estará bom assim.

[9] Algo me diz que a “teologia da prosperidade” também fará muito sucesso lá do outro lado do globo. Para o deus do consumo, estará tudo muito bom.

***

Crédito das imagens: [topo] Reza/Webistan/Corbis (um dervixe dançando); [ao longo] Paul Howard/Demotix/Corbis (protesto pacífico de seguidores do Falun Gong, em frente a embaixada da China em Londres; eu optei por não mostrar imagens de torturas praticadas pelo governo chinês em praças públicas, mas está tudo no Google).

Marcadores: , , , , , , , , , , , , ,

3 comentários:

Anonymous Mariana disse...

Raph, eu morei 6 meses na China e lá conheci alguns chineses católicos que reclamavam bastante sobre a ingerência que o governo chinês faz nas igrejas. O Partido não permite que o Vaticano escolha os padres e os bispos. Só chineses filiados ao Partido Comunista (ou aprovados pelo Partido Comunista) podem ser padres e bispos e etc, segundo me contaram.

Houve mesmo um protesto que reuniu umas mil pessoas(me disseram; não fui lá ver) em uma faculdade/curso católico de teologia em Pequim porque o PC tinha tirado o antigo reitor católico e colocado um figurante do partido que nem católico era.

Mas assim, a maioria dos meus professores lá se disse a favor da ação do governo, e em partes eu entendo o argumento deles: O Vaticano é muito mais política que religião, e há um grande temor por parte do governo que o papa venha a controlar as ideias políticas de grandes massas de chineses usando o cristianismo. Só para citar um exemplo: a China ainda tem políticas que incentivam o filho único, e o aborto é muitas vezes incentivado pelo Estado por motivos de planejamento econômico. A política do Vaticano sobre família, de "não pode usar nem camisinha", vai diretamente contra isso.

21/12/11 13:19  
Blogger raph disse...

Oi Mariana,

Sim, certamente podemos compreender o "pé atrás" dos governantes chineses com o catolicismo.

Mas já no caso do Falun Gong e da repressão aos tibetanos, para citar alguns exemplos, a posição do governo chinês é praticamente indefensável...

Abs
raph

21/12/11 13:36  
Anonymous Mariana disse...

Ah, certeza. Não quis nem entrar nesse mérito.

21/12/11 14:35  

Postar um comentário

Toda reflexão é bem-vinda:

‹ Voltar a Home